Liberdade ou Solidão



Prólogo


Geralmente, quando começam a ler um livro, as pessoas tendem a julgá-lo segundo a visão do mundo capitalista do “tempo é dinheiro”. Procuram fórmulas mágicas que lhes dêem solução para seu vazio interior, assim como um enfermo que procura um remédio. Caso a leitura não corresponda às suas expectativas ou caso não compartilhem da mesma idéia do autor ficam apáticas. Quando isso ocorre, muitos abandonam a leitura por julgá-la chata e tediosa, não conseguem suportar o desafio assumido no princípio. Na vida as pessoas tendem a fazer o mesmo: mal decidem algo, refutam o que decidiram e voltam a ponto de partida. É claro que todos são livres para decidir entre continuar o desafio ou relutar em fazê-lo. No entanto, ficarão a vida toda como pessoas que fraquejaram e, depois que o desafio não mais existir, terão saudades do mesmo e desejarão ardentemente voltar no tempo e agir de outra maneira.
Liberdade ou solidão é uma narrativa onisciente de um jovem que busca sentido para a sua vida. Quem nunca se perguntou para o sentido da existência? É a primeira pergunta que se faz quando se toma consciência de nossa condição humana. O jovem nessa busca, com sua rebeldia, e muitas vezes diante de moldes alienantes, dá sinônimos ao que pensa ser a liberdade e, no entanto, de todos os períodos da vida, é o que mais se sente sozinho. Mas é bom lembrar que se sentir sozinho não implica necessariamente em estar sozinho.
É preciso estar atento aos seguintes fatos: A modernidade está fazendo com que o ser humano perca a sua capacidade de admiração. O imediatismo faz com que ele deixe de viver a vida como um processo e, o hedonismo faz com que ele, em sua ânsia de prazer, deixe de viver a alegria presente nas pequenas coisas.
Viver é aprender a viver, sonhar é aprender a buscar, sofrer é aprender a contornar os obstáculos e chegar é sempre ter a coragem de partir.

Lembrança persistente


Se não somos sujeitos ao destino, eis a comprovação de nossa liberdade; se, do contrário, a ele somos sujeitos, nele encontramos o rumo para nossas vidas sedentas de sentido.

Sempre fui o último dos primeiros, regozijo-me por não ter sido o primeiro dos últimos. À minha frente, as letras do livro de química estão embaçadas por estas palavras que fazem eco em minha mente e não me deixam em paz enquanto não as coloco neste papel. Não sei nem por quê me ponho a escrever, afinal de contas, qual é a semelhança disto com Criometria?
Na verdade, enquanto leio, o que me inquieta é a lembrança de uma pessoa que insiste em ditar fatos que cogito. Já que cogitar é existir, darei provas de minha existência ao falar da existência desta pessoa...

Vítor já estava se acostumando com sua melhor amiga: a solidão. Trabalhava, estudava, sonhava... Buscava no mundo sentido para a sua existência, existência lograda por vários fatos de sua vida.  Sentia-se como o centro do mundo, o centro de todas as atenções. Seu coração não deixava o seu corpo descansar, suas reflexões a respeito do que as pessoas pensavam dele o deixavam numa angústia recôndita que se manifestava em todos os momentos nos quais se encontrava sozinho no jardim ou no quarto antes de dormir. Tinha ânsia pela liberdade que buscava paulatinamente em vários momentos de sua vida ao introjetar sentimentos de solidão e independência diante das pessoas. O preço de sua liberdade parecia solidão, no entanto, sempre que se angustiava com a mesma, se dirigia a várias alternativas de sociabilidade: “ninguém é uma ilha”. Buscava nas pessoas, nas torcidas de jogos de futebol, nos clubes, nas festas, na música escutada ao último volume, em sua guitarra e nos momentos de religiosidade, algo que pudesse preencher seu vazio interior, alguma emoção que pudesse dá-lo o sentido para a vida. Seu ego não tinha alegria e nem tristeza, somente vazio. Tentava buscar na razão, algo que pudesse convergir sua vida.
Como no mundo estamos sujeitos ao contínuo vir a ser, a vida de Vítor passaria por mudanças que mais tarde demonstraram a ele que tudo converge para a realização. Mas como não podemos erguer uma casa a não ser do chão, ou chegar ao último degrau a não ser pelo primeiro, trilhemos os degraus de sua preciosa existência.


Sistema da verdade vital


A primeira forma de conhecer uma estrela é a sua luz, nunca se poderá conhecer as pessoas a não ser por suas atitudes.
               
Um dia, sozinho no jardim, Vítor parecia sonhar. Sua mente elevou-se às alturas. Este êxtase durou horas. À noite, contemplando o céu, viu uma estrela solitária, mas brilhante. Pensou consigo. “Talvez esta luz que aqui chega seja de uma estrela que já não brilhe mais. Assim deveriam ser as pessoas, fontes de luz que se irradia mesmo na ausência”. Movido por um ímpeto de inspiração correu para dentro de seu quarto e, tomando de uma caneta e um papel, escreveu até que chegasse a uma conclusão aparentemente plausível:

Deparando-me com os vários propósitos filosóficos, estabeleci dois pressupostos às vezes considerados díspares e outras vezes considerados imanentes em um único ser: a consciência e a emoção. Tais elucubrações foram feitas no intuito da busca da verdade universal que rege a vida do Ser Humano.
Primeiro analisei a diferença de intensidade dos sofrimentos do gênero humano de uma pessoa para outra. Verifiquei que o mesmo ocorre com maior intensidade naquelas pessoas que o desejam por um sentimento sado-masoquista que acompanha a todos os seres. Muitas pessoas não têm nem mesmo a consciência desse fato, o que faz com que elas, pela simples adesão à ciência de si mesmas, possam encontrar a solução para a maior parte de seus problema. Este é o grau da consciência de que todo o destino se concentra na mão de quem para ele se dirige.
Muitos acontecimentos encadeiam-se contrariamente à vontade do ser humano, no entanto, o que permanecem são somente os reflexos destes acontecimentos que fazem com que o Ser tenha atitudes de acordo com o seu grau de consciência. Se a pessoa se encontra apática em relação ao mundo, qualquer acontecimento inesperado, por menor que seja, pode causar um grande descontrole emocional, já que ela não está imunizada contra ele. Portanto, o sofrimento não pode ser universalizado como tal, na mesma intensidade e com as mesmas atribuições para todas as pessoas. Ele existe, mas pode ser deletado pela consciência ou apenas minguado. Lembro, porém, que poder, não significa ter vontade de, ou ter necessidade de, pois isto varia de indivíduo para indivíduo. Na verdade, a emoção torna-se necessária na vida dos seres, pois, para experimentar emoções alegres, é preciso ter como referência as emoções tristes. É exatamente por este fato que muitas pessoas só se dão conta de que muitos sofrimentos são minúsculos quando se deparam com um sofrimento de maiores graus. Daí é que se originam os vários sofrimentos causados pela lembrança de uma vida onde muitos dizem a famosa exclamação: “eu era feliz e não sabia!”.
Deve-se tomar precaução, porém, contra o fato de que qualquer emoção (boa ou má) não turve a razão. Isto acarretará maiores descontroles para a vida do indivíduo. Neste sentido, a emoção e a consciência revezam-se como o dia e a noite.
Intrínseca à consciência temos a vontade que vai propiciar ao indivíduo o sentido da existência, já que o mesmo, por causa da consciência, pode ser perdido ao se descobrir as inúmeras futilidades às quais o indivíduo estava atribuindo um inestimável valor. A vontade, imbuída da esperança, irá fazê-lo escolher um dos vários caminhos que podem levá-lo à realização.
A liberdade aqui, não consiste em escolher todos os caminhos possíveis, mas sim, dentre os vários caminhos, escolher o melhor. Assim, escolhendo o caminho mais eficaz, o homem entrega-se a ele integralmente sem restrições ou indecisões que poderiam fazer com que ele não se realizasse plenamente. Todavia, de nada adianta conhecer, escolher e não agir. É preciso ter coragem para assumir este caminho. Esta coragem fará que ele aja sem o receio de ofuscar a visão com a claridade da verdade, sem o demasiado valor atribuído às renúncias que fará.
O amor neste Sistema é o valor supremo, é o horizonte sempre visto e sempre buscado, é o ponto de partida e o destino para o qual tendem todas as ações.
Desse modo, o Sistema da Verdade Vital, também pode ser chamado de Sistema Vital da Verdade, pois, da mesma maneira que a vida só terá sentido quando se tiver uma verdade-guia, esta verdade somente terá sentido se for utilizada para a vida, verdade e vida estão em dialética. Sua composição é feita de três atitudes intrinsecamente ligadas: Consciência, Vontade e Coragem; e de três valores regentes destas atitudes: o Amor, a Esperança e a Liberdade.


Sensação desconexa


O passado aos olhos do presente é como o sol, cuja beleza é extraordinária, mas dificilmente pode ser contemplada.
           
Vítor achava que todo sofrimento só teria sua intensidade realmente cognitiva se a pessoa o permitisse. Mas a si suas teorias não serviram de maneira eficaz. Abriu um livro no qual dizia: “médico cura a ti mesmo”. Estas palavras ressoavam em sua mente como alguém a lhe dizer que outro regia sua vida. Vítor voltou à sua teoria falando com seus botões: “Sou dono do que sinto”. Na verdade queria sofrer; sua vontade de viver emoções fortes e sua ânsia pelo futuro davam a ele um prazer inefável.
Um dia fez uma viagem à sua terra natal. Lá reviu velhos amigos e parentes. Emotivamente tudo parecia perfeito, todos lembravam o passado com os olhos do presente. Lembrar o passado não nos deixa tristes enquanto o fazemos; este, por pior que tenha sido, sempre nos dá uma sensação de fortaleza. Vítor se sentia orgulhoso por haver passado por tantas vicissitudes e em ter superado os seus momentos difíceis. Mas há acontecimentos que não nos tornam melhores. Ao voltar, Vítor foi tomado de um sentimento de nostalgia; lembrava das pessoas que tinha, sem intenção, magoado. Ao rever estas pessoas percebeu que nada tinha ficado da mágoa que o martirizara por anos; no entanto, a lembrança de seu erro, insistia em macular os momentos felizes que revivera. Queria voltar ao passado e agir de outra maneira (quem não o deseja), mas o passado não existe, apenas insiste.
Ao voltar à sua casa e à rotina diária, já estava começando a voltar àquele estado de vazio no qual se recolhia. Ao passar próximo a um amigo, uma angústia tomou conta de seu ser. Aquele amigo de tantas horas não o cumprimentara. Estaria magoado com ele? Não o tinha visto? Decidiu por fim àquela amizade? Ofendemos as pessoas sem este propósito, isto fazia com que Vítor acreditasse na primeira das hipóteses. “Médico cura a ti mesmo”. Começou então a imaginar o que as pessoas pensavam dele, pois se soubesse qual seria a reação das pessoas diante de qualquer palavra ou atitude sua, poderia falar e agir com segurança. Nem mesmo os seus escritos o aproximavam mais das pessoas, pois não desejava ser refutado no que dizia, apesar de conhecer a ineficácia de suas teorias na prática.
- Interessante na teoria, - dizia um amigo, numa mesa de bar, após Vítor ler em voz alta para seus colegas do ensino médio, o “Sistema da Verdade Vital” - mas difícil e quase impossível na prática.
- Adalberto, como pode dizer ser quase impossível algo que em nem propus? Não coloco propostas para uma vida plena, só falo, como ela seria se...
- Não se engane Vítor, você coloca uma proposta sim, e o que é pior, muitas vezes se confunde ao analisar as atitudes humanas. Veja só: para eu me sentir feliz tenho como referência a tristeza? Você se esqueceu de um detalhe, não é a presença do sofrimento que origina em sua ausência a alegria, mas a alegria em si mesma. Os seres valorizam a ausência, é por isso que, ansiosos e saudosos, não conseguem viver o presente intensamente.
- Tudo bem, aceito a discordância, realmente proponho atitudes a serem tomadas, mas o que poderia confirmar a ineficácia de tais atitudes?
- Não coloque palavras em minha boca, eu não falei que as atitudes propostas são ineficazes para uma vida melhor, só mencionei a confusão que você fez ao analisar o homem de forma behaviorista. Na verdade, sou empirista, o que você propõe é algo que ainda não possui comprovação, por isso, ainda não é plausível.
Estavam no bar e todos contemplavam a eloqüência de Adalberto ao contradizer o que Vítor falava em êxtase. Nenhum dos outros entrou na discussão, preferiram ser expectadores. Os três tinham suas próprias opiniões, mas se reduziam ao movimento da cabeça afirmando, o à sua inércia discordando; esta última atitude foi observada com mais freqüência enquanto Vítor falava. Ao reparar nisso, Vítor sentiu-se como uma ave que leva um tiro e cai no chão sofrendo, anteriormente à queda, a dor que punge por causa do tiro.  A formatura se realizaria em três dias e decidiram não desfazer aquele círculo de amigos, porém este, naquele dia, perdeu um componente por causa de seu orgulho ferido.
Somos humanos e se não aceitamos nossas limitações, nunca poderemos seguir adiante sem ter medo de ser felizes. Vítor, por não saber disso, isolou-se das pessoas. Queria conhecer a si mesmo, mas pensava que a solidão era a única maneira de fazê-lo. Fisicamente estava diante das pessoas, mas esquivava-se quando o assunto era a sua pessoa. Decidiu nunca mais dizer aos outros o que realmente sentia; o que só foi possível por pouco tempo, já que os sentimentos fazem do corpo um turbilhão como a água o faz ao ferver dentro de uma panela de pressão. Precisava liberar suas emoções de alguma forma...”Médico cura a ti mesmo”. Imaginava-se numa vida totalmente desregrada, sem nada que o impedisse de ser livre, sem sofrer as conseqüências dessa liberdade. Seu conceito de liberdade ultrapassava todas as teorias que insistem em afirmar a Liberdade Humana. Seu conflito interior juntado às constantes leituras deu origem a várias reflexões que se alternavam em momentos de lucidez, de loucura ou êxtases. Escrevia, não sabia para quem nem para que, mas escrevia. Brincava com as palavras e teorias dos grandes filósofos da antiguidade e tentava encontrar um caminho próprio, o verdadeiro caminho para a sua única meta: a felicidade.







O tempo: incógnita de nosso existir


Silêncio e inércia: primeiros sinais da morte, eis a razão para o pavor que estes insistem em injetar no ser humano.

Durante a formatura, Vítor saiu fora de si, estava exultante com todas as festividades e homenagens que sua turma, a mais promissora nos últimos dez anos, recebeu naquele dia. Em uma celebração ecumênica lhe deram o certificado de conclusão do ensino médio, contemplava-o como se contemplasse seu futuro; naquele momento, sua alegria transformou-se em esmagadora angústia diante da incerteza do futuro a partir de então.
Terminou satisfatoriamente o segundo grau, mas não sabia o que fazer. Em outras ocasiões, aquelas férias seriam aproveitadas integralmente na esperança de retornar no próximo semestre aos estudos com a mesma tenacidade. Contudo, agora, não havia mais volta, era preciso decidir. O que fazer? Quem não é livre anseia por ser, e quem o é, enfrenta o dilema da existência na escolha do próprio destino. A ausência da rotina, que o libertara das grades, deixou-o no meio do deserto no qual se viu perdido. Seus escritos continuavam manifestando a certeza que desejava ter, a visão daquilo que somente ele parecia enxergar...

Na modernidade, a dúvida mais contundente talvez seja em relação ao fator tempo. O ser humano vive atrás de tempo para fazer tanto e, no final das contas, acaba se perdendo no emaranhado da vida, de rotinas, problemas e, o que é pior, de muito vazio interior.
Parece que ninguém mais sabe parar e descansar. É admirável depararmos muitas vezes com o exemplo de muitas pessoas que, deixando a rotina fatigante, param para descansar debaixo de uma árvore ou que se retiram em algum lugar de muito silêncio; atitude que pode parecer estranha para o mundo de hoje, um mundo materialista (onde tempo é dinheiro), de ação, de movimento (onde ficar parado é atrasar-se diante da corrida capitalista), e do barulho (onde o silêncio é escasso e causa sensação de desconforto).
Quando o ser humano pára para um lazer é bombardeado por inúmeras alternativas que só lhe trazem barulho e movimento. O jovem é a maior vítima desta realidade intrínseca ao modernismo. Ao procurar o descanso ou a diversão, sai de si através de músicas que devem ser escutadas em alto volume, de filmes e notícias que têm o toque sadista da violência e da morte. Vive um outro mundo que parece semelhante ao seu, mas, se comparado, lhe dá uma sensação de triunfo pelo mesmo fato de não estar vivendo momentos tão dolorosos quanto os que estão sendo passados. Esquecem-se de sua realidade por alguns minutos, para viver realidades afrontadoras e dizer: “minha vida poderia ser pior!”.
Quando sobrevêm o silêncio e o momento estático, juntamente, aparecem os sentimentos de insegurança diante do futuro, a ansiedade por este futuro e, o deslocamento do presente certo para o futuro incerto.  O ser humano vive o medo do silêncio, pois está acostumado ao movimento que não deixa que se encontre consigo mesmo. Quando isso acontece, verifica quão vulnerável é e, quanto caminho ainda está à espera de seus pés de peregrino, peregrino da vida. “o caminho se faz ao caminhar”, é o que deve animá-lo a sempre parar, descansar, levantar-se e prosseguir.
O ser humano se preocupa tanto com o seu futuro que se esquece de viver o momento presente (isso, supondo que este possua um espaço). Pinta um futuro multicor onde não há tristeza, sofrimento, nem dor, mas, ao chegar ao momento esperado (o futuro que se torna presente), cai numa decepção tal, que o faz exclamar, novamente e com ironia: “dias melhores virão”. É certo que depois da chuva vem a bonança, mas a preocupação com o futuro só o faz esquecer todos os dias, horas, minutos e segundos de sua vida, de que vive para viver, não para planejar. O futuro é algo a ser construído com o presente, mas como fazer isso se não se vive o presente pensando no mesmo futuro? Com certeza a fantasia do pensamento é o que torna a vida mais cheia de ansiedades. O ser humano se esquece de que o futuro não existe e que não é ele que impulsiona a vida, mas sim a idéia que se tem dele. Constrói uma casa de mármore com alicerce de barro porque nunca parou para construir o alicerce com segurança. Preocupa-se tanto com o telhado da casa (futuro) que se esquece de sua base (o presente).
Outro erro é refugiar-se num passado de contradições, dúvidas e de momentos não vividos (já que estes foram preenchidos por preocupações e formulações para o futuro). Deixa-se de viver o momento presente novamente. Os questionamentos deixados para trás, agora são válvulas de escape a uma sensação de inquietação, de morbidez e de sentimento de culpa. Espera-se por algo, deixa-se de viver o momento presente e a saudade se faz permanente.
Como vemos, o tempo e a situação do homem neste são o que mais dirige o ser humano ao seu caos. Todo sofrimento proveniente desse caos poderá tornar-se crescimento para uma deleitosa realização pessoal se bem direcionado, mas, se não, poderá mergulhá-lo em maiores sofrimentos e angústias. Oxalá o homem caminhe em concordância com o tempo e com o amor, único alternativo para uma verdadeira realização.

Dias de festa


Não há nada de novo no mundo para aquele que se apega ao constante vir a ser da matéria, tudo é novo para aquele que acredita no poder das emoções transformadoras.

Vítor sempre acreditou na força do amor, mesmo sem saber como defini-lo. Se este era entrega, era preciso descobrir a quem ou a que. Sabia que o amor possui forças incomensuráveis, no entanto tinha medo de agir. Sua visão limitada da vida fazia com que ele cerceasse as oportunidades que lhe apareciam. Sentia-se terrivelmente só, mas se deleitava nesta solidão. Na verdade, aspirava à liberdade, mas desejava ter uma marca estigmatizada no mundo. Conseguiu emprego numa escola da periferia dando aulas no ensino primário e se orgulhava de dizer a todos a sua profissão. Adiou, por um tempo, a angústia que o atormentava retornando à antiga rotina de estudante. Assim que o ano terminou e a rotina se afastou novamente, voltou a encontrar-se consigo mesmo no dilema de sua existência.
Enquanto todos se preparavam para as comemorações de final de ano, Vítor foi tomado de uma sensação inquietante. Dissimulou tão bem uma aparente alegria, que não deixou que ninguém percebesse seu estado de espírito. Na verdade, não tinha nada lhe desagradar, mas todas aquelas comemorações, pareciam-lhe sem sentido. Silenciosamente, deixava a todos e, trancado em seu quarto, punha-se a escrever:
21 de dezembro: é interessante a tendência que temos em guardar tudo o que possuímos, principalmente aqueles objetos que nos lembrem uma atividade exercida em algum período especial de nossa vida. Este caderno em que escrevo, por exemplo, recorda-me todo este ano de luta na licenciatura. Algumas páginas tomadas por planejamentos de aulas recordam-me a reciprocidade do trabalho exercido, e isso, é tudo o que me alegra. Sem pensar, acumularia pilhas de papéis pensando na sua utilidade para o futuro. Talvez eles nunca seriam vistos novamente. Talvez, outra pessoa os veria, porém não se deleitaria nem um pouco com eles, como eu o faço nesse momento. Cada vez que olho para as coisas que me cercam, vejo-as com outros olhos. Parece que já não é a mesma cama, mesma mesa, mesma televisão, mesmo rádio...Parece que em minha volta, tudo se modifica a cada segundo em que volto o olhar. O passado insiste em aparecer, o presente insiste em ser tomado de lembranças e ansiedades e o futuro...o futuro? Este nunca chega, sempre é esperado, mas nunca é vivenciado. O passado pode até mesmo ser pior que o presente, mas é sempre mais valorizado que este.

Momentos de depressão


Nem tudo o que existe possui um sentido aparente; há coisas que não é necessário ao ser humano conhecer para que passem a ter sentido existir.

Por um ano investiu suas forças na educação de crianças e adolescentes. Sentia-se feliz neste trabalho, mas nunca deixou a impressão de que algo lhe faltava. O sofrimento humano, muitas vezes, só aparece quando sentimos que algo que não é, poderia ter sido. Desta forma, Vítor tinha atitudes que demonstravam certeza diante do caminho a seguir, mas, interiormente, era perturbado por correntes em sentido contrário, como um barco em um oceano em plena tempestade. É evidente, que possuía motivos de sobra para festejar, mas não estava satisfeito consigo. Quem poderia entender tal atitude? 
Madrugada de 25 de dezembro: é Natal. Todos festejam e eu, automaticamente, ponho-me a analisar as atitudes humanas. Todos pensam saber o que querem. Todos pensam estar realmente vivenciando um momento de emoção. Na verdade tudo é ilusão. Tudo o que procuramos encontrar na aparente emoção vista nos acontecimentos vivenciados por outros, é apenas o aumento de nossa mente que sempre busca aquilo que não se tem. Quando pego no violão e toco várias músicas a respeito de minha situação, quando pego na caneta e escrevo o que sinto, esvazio o meu ego e não tenho mais nada a dizer. O que antes era o objetivo, já não tem importância alguma. O que antes era o sentido para a existência tornou-se um poço de recordações. Os homens fingem saber o que querem, mas, na verdade, ninguém sabe sequer por quê se existe, a única certeza que se tem é que se existe. Porém, se existir não tem sentido, nada do que almejo tem sentido. Talvez nunca ninguém chegue a ler o que agora escrevo; o certo é que escrevo por escrever e o sentido para escrever está neste mesmo ato. Deixar de viver procurando sentido para este viver é o que faz com que fiquemos a vida inteira procurando porquês para o que não há, ou nunca se encontrou sentido: a vida.








Momento de lucidez


Quando não se pode argumentar a ausência da felicidade é que se percebe os momentos que realmente são importantes.

            Há pessoas que quando se embriagam ficam mais pessimistas que outrora. Outras quando se embriagam parecem ter certeza de todas as decisões a serem tomadas. Há também as que agem totalmente diferente que o de costume. Vítor, na tarde daquele dia de comemorações, parecia bem mais otimista que à noite anterior. Não tomara nenhuma bebida alcoólica, mas parecia inebriado de uma alegria vinda das frases que escutara naquele dia. Na Igreja, nas ruas, tudo parecia mudado. Nem mesmo os mendigos que interceptavam seu caminho em outros dias estavam presentes ao longo da estrada. Uma força misteriosa punha na boca de todas as pessoas um sorriso cheio de esperança. Pensou consigo: “de onde vinha o sentimento que me mergulhava na angústia na noite passada? De onde vem este sentimento de felicidade que envolve os corações neste dia?”. E registrou:
Tarde do dia 25 de dezembro: se prestássemos atenção em cada um de nossos atos, passaríamos a vida inteira em reflexões fúteis que não nos levariam a nada. Por exemplo: por que comecei a escrever estas linhas há dias atrás? Na verdade, um ego vazio procura preencher-se de alguma forma. Todos buscamos algo que nos infle o ego. Todos julgamos os outros que, de alguma forma, parecem estar ilusoriamente preenchidos. Não só julgamos como afirmamos ser apenas ilusão o que essas pessoas pensam e sentem no exato momento de nossa percepção. Somos livres, mas não sabemos o que é a liberdade; somos conscientes, mas insistimos em turvar nossa razão; temos vontade, mas não temos coragem para assumir esta vontade; esperamos por algo, mas insistimos em nos entregar ao egoísmo que busca a felicidade sem o amor. A vida converge para a realização, mas nós insistimos em torná-la mais sinuosa que as estradas ao longo de uma cordilheira. Insistimos em viver a vida ou as emoções vividas por outros. É evidente que desejamos exatamente aquilo que não temos, só animamos a agir quando não podemos mais fugir. Com certeza, todos nós temos um pouco de “Maria vai com as outras”. É imprescindível que vivamos nossa vida, que tenhamos iniciativas transformadoras que partam de nós mesmos, que apliquemos a nossa liberdade, a nossa esperança e o nosso amor à consciência que descobre nossa real vontade e, com coragem inigualável, age.


De volta ao sentido


O acaso é a forma que a vida encontrou de trazer ao ser humano possibilidades às suas atitudes, mas ai daquele que lhe outorgar a chave de sua felicidade.

É verossímil como a facilidade de estar num mar de vazio e solidão é tão incidente quanto o aglomerado de preocupações que podem rodear a vida de uma pessoa, mesmo que esta não corra atrás dos problemas. Quando a emoção e a razão se desequilibram, o homem encontra-se desgovernado e sem sentido para a vida. Mas Vítor se sentia feliz. Pressentia que algo de novo, viria trazer um novo ingrediente para a sua vida rotineira. Acostumara a conviver com sua companheira de todos os tempos. Não se estranhe! Já falei sobre ela outras vezes: a solidão.
Um dia, por ocasião do aniversário da empresa na qual agora trabalhava, voltou mais cedo para casa, tomou o violão e foi para a praça distrair-se naquela bela tarde. O sol brilhava com intensidade, mas o calor não era sufocante. Um delicioso vento acariciava a quem se dispusesse a sentar sob a sombra daquelas árvores. Eis o maravilhoso cenário no qual iniciava mais uma história que marcaria sua vida.
Do violão saíam melodias belíssimas, mas nunca ouvidas. Vítor tocava nas cordas, como um mago ao pronunciar palavras mágicas. Cada nota penetrava em seus sentidos com desenvoltura e formou uma imagem em seu pensamento, a bela imagem de uma mulher que outras épocas tentou namorar. Sua lembrança persistia e Vítor percebeu que estava novamente apaixonado por ela. “Mas como?” – pensou – “há anos que não a vejo. Agora ela já deve estar terminando o primeiro período na faculdade de Psicologia. Mesmo que ela quisesse voltar a essa possibilidade, poderia ter receio de prejudicar seus estudos...”. Essas idéias não lhe enleavam o espírito. Antes, o deixavam numa sensação de arrebatamento a um plano supra-sensível por lembrar-se daquela que gostava, mesmo sabendo da impossibilidade de tê-la ao seu lado.      
  O acaso sempre prega peças ao ser humano, mas é necessário sempre tirar proveito delas para que a vida se torne mais agradável. A magia daquela tarde não se manifestava somente pelos fenômenos da natureza, manifestava-se pelos sons produzidos em seu violão e, mais ainda, no que estava por acontecer. Viu que no banco de trás, sentara-se uma mulher taciturna, todavia não se virou para ver quem era, sabia que era uma mulher pelo perfume inebriante que exalava no ar. Continuou tirando notas do violão que faziam virar-se para ele todos os que passavam e lhe dizerem com um sorriso: “boa tarde!”.
            Quando silenciou. Notou que já estava escurecendo, pois já eram seis horas da tarde, então se virou para guardar o violão e seus olhos não puderam acreditar no que estavam vendo: Jéssica estava no outro banco a escutar todas as melodias produzidas por ele. E, mexendo nos cabelos, virou-se e disse:
- Não pare. Já estava quase chegando aos céus com esta melodia.
- Já é tarde e, além do mais, não quero você longe de mim. Prefiro-a aqui na terra – Vítor estranhou a si mesmo, parecia ter a resposta formulada para qualquer indagação de Jéssica, apesar da surpresa de a estar vendo após tantos anos.
Jéssica, com um sorriso forçado, disse com um tom de marasmo:
- Pelo menos alguém no mundo não me quer mandar para o espaço!
Com essas palavras Vítor sentiu nela uma sensação de vazio interior. Talvez ela estivesse se recuperando de alguma mágoa ou ressentimento. Aproximando-se e sentando-se, perguntou delicadamente:
- O que está acontecendo com você? O que a aflige?
Jéssica, olhando sempre para o chão, disparou a falar como se estivesse esperando que alguém perguntasse por isso há anos.
            - Sinto que, de tanto buscar sentido para a vida, vivi sem sentido, não porque esta não o tivesse, mas porque o seu sentido não pode ser encontrado fora da vida. Para tudo buscava respostas racionais, para toda ação buscava sentido plausível. Quando uma ação não correspondia a uma lógica aparentemente racional, pensava ser uma ação fútil que me levaria ao mesmo ponto de partida, apenas alargando o caminho a percorrer. Por tudo isso, várias vezes, tive possibilidade de mandar embora a solidão, mas, por aderir à dicotomia entre a razão e a emoção, não o fiz...
            Vítor escutava atentamente a tudo e via nela o reflexo das mesmas inquietações de seu íntimo e, voltando-se para sua amiga, por medo de se arrepender como das outras vezes em que não agiu, atirou ao mar todos os seus temores e disse procurando achar-lhe os olhos que ainda se fixavam numa formiga do chão:
- Sinto o mesmo que você. E, talvez, não me sentiria assim se você tivesse dito sim a uma proposta que lhe fiz há algum tempo atrás. Portanto, se você se sente sozinha é porque você mesma quer.
- Agora é diferente. Tudo na vida tende a mudanças. Eu mesma, quando entrei na faculdade, notei que minha vida estava se tornando muito rotineira e monótona. O entusiasmo do início foi se apagando e agora vejo que realmente ainda falta alguma coisa em minha vida. Não sei se você me entende!
- Nunca deixei de esperar que esta ocasião surgisse em minha frente. Talvez, você me queira como a um amigo em quem confiar as suas decisões, angústias e incertezas, mas não posso deixar de dizer o que sinto. Se você disser que não, continuaremos amigos, mas, se disser que sim...
Enquanto dizia essas palavras, os olhos de Jéssica voltaram-se para a lua cheia – nenhuma outra noite seria tão magnífica para aquele momento – e, interrompendo Vítor que ainda falava disse:
- Claro que sim Vítor. Sei o que sente, é o mesmo que sinto. É por isso que vim aqui. Não pude mais resistir à vontade louca de estar ao seu lado!
Vítor não sabia o que fazer. Sempre foi cheio de iniciativas no que se tratava do trabalho. Sempre teve respostas para qualquer enigma que as pessoas lhe apresentassem, porém, quando tinha que falar o que sentia ou agir de maneira que tivesse reciprocidade em sua ação, cogitava os meios, fadava os caminhos e, só depois, agia. Foi o que aconteceu após aquele sim. Mas, nessas horas, não se pode superestimar a razão, é preciso deixar a emoção agir. Ela, demonstrando sua timidez, falava sobre assuntos que nada de importante tinham para o momento. Vítor, olhando para os seus olhos que fugiam e se aproximando de seus lábios, consumou o que deveria ter feito bem antes. Nesta hora não se pode definir a sensação, já que o intelecto parece ser guiado a um lugar supra-sensível onde os seres alados não têm medo de perder as asas e despencar no abismo, um lugar onde a magia transcendental é de poder incomensurável: era o amor dando sentido novo para tudo. Qualquer outra definição seria mais tola ou mais brega que esta.


Vencidos pelo banal


Na vida tudo está sujeito à ordem da fugacidade, não por causa efemeridade das situações, mas sim, porque almejamos à eternidade.

            Geralmente, quando fazemos um relato de algum acontecimento, deixamos nossa emoção agir e falamos dos detalhes mais insignificantes. Estes, quase sempre fizeram parte daquilo que se tornou a realidade, mas um verniz místico faz com que transformemos uma simples casa em um grande cenário de acontecimentos que por mais corriqueiros que fossem, deixaram seu ferrete sobre a vida; um pobre jardim torna-se o mais suntuoso e rico em espécies floríferas jamais visto em nenhum castelo de realeza inigualável. É bom lembrar que o verniz protege nossa história, mas, muitas vezes, esconde o real. Bom seria se, ao relembrar algum fato, os sentidos estivessem aguçados tanto para os acontecimentos alegres quanto para os tristes.
            Como todos estamos sujeitos às vicissitudes da vida, Vítor não poderia prever o que estava por acontecer. No princípio, tudo era maravilhoso. A curiosidade e o mistério eram os combustíveis para os diálogos de Vítor e Jéssica. Por alguns meses, a distância um do outro era algo extremamente penoso aos dois. Partilhavam tudo. Vítor falava de seu trabalho, de suas conquistas e de sua insegurança devido ao corte de gastos na empresa. Jéssica falava de suas aulas na faculdade, dos acontecimentos engraçados que lá se passavam e de seus familiares. Parecia que formavam o perfeito par.
No entanto, com o passar do tempo, surgiram o marasmo e as decepções provindas da rotina e das desconfianças. Neste mundo, duas pessoas que se amam, deveriam tomar um manual que ensinasse as atitudes devidas nas diversas circunstâncias do relacionamento. As pedras atiradas pelo caminho, não foram obras de inimigos, mas de amigos. Perguntaria você: “como amigos verdadeiros poderiam fazer mal a duas pessoas que se amam”. Mas não se pode esquecer que as palavras possuem o seu poder diversificado e conspícuo em cada ocasião em que são pronunciadas. Um simples comentário pode gerar desconfianças, apesar da boa intenção do mesmo...
- Vítor, você não me disse que iria para casa ontem quando daqui saiu?
- Sim Jéssica, mas quando passei pela rua de Douglas, este me chamou para participar da confraternização de aniversário de sua irmã e, não achei, nada demais parar um pouco. Além do que, você não quis sair comigo ontem à noite.
- Ah! Então admite que foi à festa de sua ex-namorada por vingança a mim?
- De forma alguma, você sabe muito bem que ainda somos amigos apesar dos pesares.
- Não pode haver amizade entre um homem e uma mulher, ainda mais, quando estes um dia disseram um ao outro que se gostavam.
- Nunca dissemos isso. Meu namoro com ela foi uma forma infantil que encontramos de afastar a solidão. Você mesma sabe disso; por que desconfia de mim?
E assim passavam horas em discussões fúteis que a nada levavam. Ambos se sentiam presos e, para Vítor que colocava a liberdade como um dos patamares da realização, isto significava o caos. Para ele, o amor levaria à liberdade, não à escravidão, logo, se eles não se sentiam livres, na verdade – pensava ele – não se amavam.
            Vítor desejava muito mais do que encontrar Jéssica nas situações triviais do dia-a-dia. Queria viver momentos mais expressivos de emoção, fantasiados pelo que ele imaginava ser realmente a alegria a dois ao lado daquela com a qual imaginava que dividiria o restante de sua vida. Jéssica, porém, acostumada ao cotidiano vulgar, presa em seu quarto a ler e a escutar canções de sua situação, não apreciava esses momentos esperados e, além de tudo, nunca acolhera mudanças. Quando Vítor, aproveitando as férias da faculdade de Jéssica, a chamava para passear em algum lugar ou participar de alguma festa, ela secamente lhe dizia:
- Eu não quero ir, se você quiser, vá sozinho.
Vítor, tentando disfarçar sua desilusão, falava dissimulando um romântico apaixonado:
- Sem você, nada tem graça!
E ficavam os dois em silêncio, sem nada dizer. O silêncio inquietava a ambos e, enquanto Vítor observava Jéssica, notava a sua ansiedade e mecanicidade em olhar a todo o momento o relógio. Era como se pensasse: “o tempo não passa!”. Sentindo-se desprezado, Vítor deixava aquela casa mais só do que quando lá chegara.
É estranho como duas atitudes antagônicas podem ser ao mesmo tempo nocivas para um relacionamento. No princípio de suas dificuldades, a pedra no caminho era a desconfiança. Quando se desconfia de algo, esta desconfiança pode ter duas faces: a do ciúme possessivo na qual um se acha dono do outro e do ciúme mascarado na qual um joga suas incertezas nos possíveis deslizes do outro. Em ambos, pelo menos, Vítor pensava: ”Tenho algum valor para aquela que tem medo de me perder”. Mas, quem ama verdadeiramente, não tem medo de perder a pessoa amada, já que o amor é o sentimento que faz com que duas pessoas, por mais separadas fisicamente que estejam, sintam-se unidas eternamente. Agora, Vítor começava a enxergar a realidade “nua e crua”, como ela lhe aparecia. Se antes seus passos eram motivos de seus desentendimentos, agora a dor da indiferença era a causa de seu penar. Primeiro o ciúme, depois a indiferença, pedras que juntadas a outras, cada vez mais bloqueavam o caminho de Jéssica e Vítor.
É necessário, não deixar de analisar ambas as realidades. Bem diz o ditado: “quando um não quer, dois não brigam”. Se por um lado Vítor se sentia desprezado, por outro, Jéssica se sentia um fantoche em suas mãos. Jéssica também era alvo das desconfianças de Vítor. Sua beleza não o deixava em paz, pois, todas as vezes que saíam juntos, olhares se voltavam para ela atraídos por um estranho encantamento. Este era o motivo de seu determinismo em não sair acompanhada de Vítor. Quando ia à casa de algum parente, ao chegar de lá, era bombardeada por inúmeras interrogações. E, para completar, era obrigada a escutar todas as lamentações daquele que se achava o centro das atenções. Já não podia dizer o que sentia sem mentir, já não podia falar de seus amigos ou amigas sem ser alvo de desconfiança, já não podia falar de seus estudos, pois estes não mais interessavam a Vítor. Ambos atiraram pedras ao caminho, e, as atiradas por Vítor foram o orgulho e a desconfiança.
Passavam os dias. Vítor decidira arrastar aquela situação, pois acreditava que o tempo era o melhor remédio para que as coisas se ajeitassem. Chegando à casa de Jéssica, como de costume, encontrou-a saindo do banho. Ela não o viu, mas o perfume do banheiro difundiu-se por toda a sala e seus cabelos e ombros ainda molhados realçavam-lhe ainda mais a beleza. Saindo do quarto, com um vestido exuberante, ela se dirigiu à porta, para onde Vítor acompanhou-a. Parada e encostada no marco da porta, fixou os olhos na lua nova entre as nuvens e disse:
- Vou sair com minhas amigas.
E Vítor, fingindo não entender, disse:
- E aonde vamos?
- Nós vamos a uma festa. Uma amiga me deu um convite! – e frisou – vou com minhas amigas.
Vítor já havia decidido não mais criar intrigas. Entendeu perfeitamente que ela desejava ir sozinha à festa, mas, apesar do ciúme a aflorar, não disse nada; apenas, curvou-se para dá-la um beijo e sentir o maravilhoso perfume que exalava do corpo de Jéssica. A volúpia que se inflamou em seu corpo o fez esquecer de todos os desentendimentos dos últimos dias. Ela, desviando o olhar e os lábios, disse friamente:
- Preciso de um tempo para pensar.
Vítor caiu em si e percebeu que toda aquela abstração de minutos atrás não correspondia à realidade. Tentou descobrir o motivo de tal decisão fazendo a ela várias perguntas para as quais pedia respostas com o olhar fixo no seu. Nada o convenceu da separação. Sabia que pedir um tempo para pensar é uma maneira delicada e desonesta de dizer adeus. Vítor saiu sem olhar para trás, sem vontade chorar, não desejava fazer nada.
No outro dia, as conseqüências eram-lhe visíveis. Ao sair para o trabalho, ia vagarosamente. Atravessando uma avenida, nem mesmo reparou que o sinal vermelho para pedestres piscava, preste a abrir para os carros. Quando estava no meio da avenida, o sinal de trânsito abriu e uma moto interceptou seu caminho. Vários carros iam e vinham sem parar. Perplexo, não conseguia sair do meio da avenida até que um motorista, percebendo o seu perigo, parou o carro a fim de dar-lhe passagem. Atitude exaustiva para este que teve seu carro amassado por uma caminhonete que vinha logo atrás. Continuando o caminho, passou no corredor de um mercado de discos e escutou uma música que lhe fez lembrar dos acontecimentos dos últimos dias. As lembranças insistiam em atormentar-lhe o espírito. Seus olhos, ainda sob ação da noite mal dormida, viam Jéssica em todas as mulheres que passavam. Na verdade, ele tinha a esperança de encontrá-la em alguma rua na qual entrasse lhe dizendo que havia se arrependido de “pedir um tempo”. Como um autômato, Vítor pôs-se a correr. Tinha vontade de aplicar murros a paredes e liberar toda aquela amargura, mas sabia que mesmo se o fizesse nada mudaria. Sentiu-se fraco e sem coragem para enfrentar mais um dia de trabalho e ligou avisado que não compareceria por motivo de saúde. Voltou para casa. Uma apatia o acompanhou durante todo aquele dia. A vida continuava a lhe pregar peças e, em meio àquelas sensações, ria sem motivo. Sentindo apetite depois deste longo dia resolveu comer algo. Comia como um selvagem, pegava os pedaços de carne com as mãos e rasgava-os com os dentes. Tamanha era a distração que, juntamente com o último pedaço de carne, mordeu o dedo indicador. Riu como um louco e, sem qualquer motivo, rompeu em prantos. Tudo isso era a prova de que, novamente, um vazio se instalara em seu ser e a esperança de afastar a solidão esvaiu-se como uma gota d’água num deserto.
Ter vontade de fazer tudo
E não conseguir fazer nada,
Eis a sensação que não refuto
Após o desprezo de minha namorada.


Tentativa frustrada


               Feliz aquele que, mesmo passando por momentos difíceis, sabe mostrar aos outros que a felicidade é possível; tanto o peregrino quanto o caminho chegam ao destino.

            Vítor voltou à mesma vida de antes. Quase nada do que aconteceu nos últimos meses correspondeu às suas expectativas. Resolveu não mais lamentar pela sua solidão. Pelo menos algum amadurecimento aqueles acontecimentos lhe trouxeram. Percebeu que novamente deixara suas emoções turvarem a sua razão e atribuiu a elas o amargor que agora sentia.
            Apesar de quase sempre estar pensativo ou até mesmo pessimista diante da vida, todos os que com ele conviviam procuravam-no, a fim de resolverem seus problemas. Ele, sem nada dizer, escutava atentamente e, somente depois, com um sorriso incessante, dizia algo que pudesse clarear o caminho de quem o procurara. Sempre recebeu elogios por essa simples atitude e nunca soube realmente porque nele depositavam tanta confiança. Talvez a solidão estivesse moldando um ser desvencilhado de si mesmo e voltado para os outros. Sabia que a falsa humildade, utilizada para arrancar elogios das pessoas, é pior que o orgulho declarado; pelo menos este age. Mas nunca deixou que o orgulho tomasse conta de si nessas ocasiões. Preferia agir sem argumentar em nada poder ajudar, sabia que a simples escuta do outro é uma das maiores ajudas que podemos dar a quem nos procura.
            Quando alguém lhe perguntava sobre a fonte daquela felicidade que dele se irradiava, respondia: “finjo que sou feliz e acabo sendo”. Mas, o que não podia negar, é que a esperança nunca o deixou. Esperava ardentemente por algo novo, mas não sabia o quê. Tinha reminiscências de uma outra vida, totalmente diversa da que tinha verdadeiramente. Em sonhos apareciam-lhe imagens de atitudes extravagantes, porém dotadas de grandes emoções. Ao acordar, todas as lembranças se apagavam de sua mente. Esforçava-se todo o dia para lembrar o sonho da noite anterior, mas nada conseguia. Por fim, declarou todos os sonhos banais, forma que encontrou para não mais se ocupar em constantes esforços mentais na tentativa de lembrá-los.
            Durante o dia trabalhava numa multinacional, durante a noite lecionava numa escola da periferia. Trabalhando desordenadamente começou a construir a sua vida num projeto que parecia envolver mais alguém, só não sabia quem. Comprou um lote e nele construiu uma pequena casa. Projetava todo o seu desejo de consumo numa tentativa de preencher-lhe o vazio interior no qual se encontrava. Comprou aos poucos os eletrodomésticos e móveis que iriam equipar sua nova casa, comprou um carro e uma moto. Para quem busca uma estabilidade financeira, aquela seria uma situação ideal para um homem que não tinha mulher e nem filhos.
            Trabalhava incessantemente e, dessa maneira, procurava não cogitar sobre o sentido da vida ou sobre o destino para o qual tendem todas as coisas... Enganou a si quando pensou que poderia enganar ao tempo. Sua falta de sentido e a ausência de um horizonte no qual pudesse se mirar o deixavam cada vez mais inseguro. Tinha receio de encarar novos desafios. Mas o tempo instigava-o a agir e, para isso, contou com a colaboração de um amigo. Quem poderia vencê-los? Nenhum ser humano, por mais determinado que seja, pode se livrar das garras desses dois feiticeiros da vida: o Tempo e o Tédio.          



Incógnita


Sonhar é descobrir que o pensamento tem o poder de transformar o imutável.

            Em um dia de feriado, Vítor saiu em seu carro sem saber para onde. Queria simplesmente sair e embrenhou-se em caminhos jamais imaginados por ele. Após algumas horas, entrou em uma estrada deserta. Esta seguia longas distâncias sem se desviar para nenhum dos lados. De repente, uma estranha sensação tomou conta de seu corpo, seu pensamento voava para lugares que desconhecia, sua alma parecia estar acima de seu corpo a observá-lo e a estrada já não parecia existir. Esqueceu-se do tempo e até mesmo da razão do que fazia. Seu pé afundara no acelerador de modo que o carro voaria longas distâncias, caso fosse dotado de asas. Seus olhos bebiam o crepúsculo com um esplêndido deslumbramento até que se escureceram e em sua mente eram passados fleches, como um filme mal acabado ou um sonho estranho de quem cochila diante de uma televisão. Mas não podia compreender como isso aconteceu, aliás, nem mesmo procurava fazê-lo. Aquela visão era maravilhosa, nunca poderia deixar de contemplá-la. Seu corpo viajava pelo espaço como um espaço-nave. Rapidamente viajou pelo universo passando por astros e planetas, desviando de asteróides que vinham em sua direção, aproximou-se de Saturno e ultrapassou Plutão, avistando gigantescas estrelas cujo tamanho muito superava o Sol. Dentro de alguns instantes, estava sendo atraído para um buraco muito além da Via-láctea. Era um buraco negro que sugava tudo ao redor. Tentou desviar-se do mesmo, mas não pôde escapar. Sua vista escureceu de forma desoladora e tudo se apagou de sua mente.
            Vítor acordou em um lugar estranho. Parecia continuar a sonhar, pois tentava mexer-se e não conseguia. Apesar de acordado, não conseguia abrir os olhos. Era como se estes estivessem colados. Forçava-os tentando abri-los e nada conseguia. Quando se acalmou. Acordou. Teria sonhado que tinha acordado ou ainda estava dormindo? Não podia compreender o que estava fazendo ali. Na verdade, não se lembrava de nada do que acontecera.  Estava perdido, mas sabia o que fazer. Tomado por uma sensação de segurança sentou-se na relva. Próximo dali, uma cigarra cantava tão alto que parecia estourar-se. Uma forte neblina não deixava que Vítor visse um metro à sua frente. Levantou-se e passou as mãos pelo corpo na tentativa de enxugá-lo um pouco.
            Seguiu a estrada logo em frente. Conhecia aquele lugar e, agora, já sabia aonde iria. Caminhou por uma hora continuamente e chegou a um barraco onde era esperado. Era um barraco pequeno, possuía somente um cômodo de seis metros quadrados. Era feito de pinhos tirados dos caixotes encontrados nos passeios da cidade, e de barbantes. Não resistia à menor chuva que houvesse, por isso, ele era sempre reconstruído num trabalho exaustivo de catar caixotes dos passeios próximos aos grandes mercados de frutas.
Mas, o que estaria fazendo ali? Quem eram aquelas pessoas? Por que o esperavam tão ansiosos naquele local de condições subumanas? Vítor não tinha dúvidas, sabia exatamente a resposta para todas essas perguntas.


Vida desregrada


Não se pode se esquivar da realidade da sociedade simplesmente argumentando que todos têm a vida que querem; quem, sendo livre, não optaria pela paz?

            Vítor, olhando para os companheiros, percebeu a inquietação de seus amigos. Já passavam das dez horas da noite e todos o esperavam para mais uma noite de aventuras. Vítor era chamado de Mancara pelo grupo e era seu líder, apesar de não ser o mais velho. Os demais eram seis adolescentes que pareciam manifestar sua revolta contra o mundo a todo instante. Suas roupas maltrapilhas não lhes tiravam a coragem, antes a davam. Não tinham vergonha delas, era a marca registrada que os fazia serem temidos e, para eles, este temor era sinônimo de respeito. Quando Vítor chegou, fizeram o maior alarde e, Medero disse a ele:
            - Onde você tava? Nóis só tava te esperando. Aonde a gente vamos dessa veis.
            Mancara disse efusivamente:
            - Vamo descê a alameda que termina no centro e largar brasa nas moda dos clube. Lá eu vou dizê o que a gente fazemo.
E todos gritaram:
- Vamo nessa!
            Desceram então pelo caminho combinado, completamente bêbados, gritando e derrubando latões que estivessem à frente. Todos, totalmente seguros do que iriam fazer, entraram no clube, acompanhando uns aos outros, depois que o primeiro deles deu um soco certeiro no recepcionista deixando-o desacordado. Todos se afastaram quando eles entraram, afinal de contas, ninguém teria coragem de interromper o trajeto da turma dos “Boca de inferno”.
            Por muito tempo infundiam terror a todos e, os poucos que os enfrentaram, quando sobreviviam, deixavam a cidade para nunca mais voltar. Todos nasceram e cresceram nas ruas e as visitas na cadeia onde, vez por outra, um “tirava férias”, serviam-lhes de utilidade para aprender alguns truques necessários para a vida e para a morte; também foi lá que aprenderam a ler para ajudar aos traficantes na conexão de narcotráfico.
            Dentro do clube dividiam-se em dois grupos: Batola, Cotego, e o mais novo, Biboco ficavam próximos à portaria e, Medero, Patoca e Tanoy iam para o fundo. Mancara, como chefe do grupo, divertia-se como os demais, atento a qualquer “urgência”. Quando entravam em algum clube, eram os “reis do pedaço”. Comiam e bebiam de quem lhes aprouvesse tomar. Agarravam à força qualquer garota que lhes interessasse e roubavam-lhe um beijo tácito de terror. Não se preocupavam com os Gambés (apelido dado aos policiais). Quando um deles provocava uma briga, todos se atiravam em cima do infeliz que se metera com eles. Quando viaturas de polícia, bem equipadas, apareciam, escapavam por entre os dedos dos policiais. Todavia, não se preocupavam em fugir. Dessa vez, iriam a outro clube onde tudo iria começar tudo como antes. A noite era uma criança e o dia não existia para eles. O tédio era enfrentado com as drogas que conseguiam facilmente através das muambas que eles próprios contrabandeavam.
           
Veja o que vive na rua,
Fruto da sociedade;
Que na violência ele atua
Não é nenhuma novidade.

Tenha limpa a consciência:
“Outros são os culpados, não eu!”
Omita sua deficiência
Sendo religioso ou sendo ateu.

Não se trata de religião
Falar, pensar e agir,
Pois, na hora da confusão,
Não conseguirá fugir
E essa revolta contra o mundo
Terá que admitir.


Os revoltados também amam


Ah! Se todos realmente admitissem o poder do amor, não existiria o preconceito que exclui e aumenta os males da sociedade.

            Mancara falava pouco. Um simples sinal que desse era o suficiente para que todos agissem, um olhar seu impunha o respeito do grupo. Todos o tinham como o exemplo da perfeição e da segurança, embora isso não correspondesse ao que acontecia em seu interior. Apesar de tanta ação e emoção, apesar de tantas garotas que seduzia e usava como um objeto, apesar de tanto reconhecimento e soberania, tinha no íntimo um enorme vazio. O êxtase temporário proporcionado pelas drogas, as noites de aventuras e, tudo que envolvia a vida nas ruas, não era o suficiente para afastar a solidão em que vivia. Mancara, apesar de tudo isso, era um ser humano e, como nenhum ser humano consegue fugir da inexorável força do amor, este para ele, não era algo démodé. Mancara amou, isso é prova de que amar não é privilégio de somente alguns, ser amado sim. Apesar de sua vida não parecer admitir um amor verdadeiro, Mancara amou incomensuravelmente e, para surpresa sua,, também foi amado.
            O nome dela era Lísia e não tinha nada de especial se a compararmos com as demais garotas, mas, para Mancara, algo lhe emanava do ser e lhe preenchia o íntimo com a essência embriagante do amor. Por ela, Mancara prometeu deixar aquela vida, constituindo uma família que seria o ícone de todos que seguissem o mesmo ideal. Mas como tudo na vida não chega à perfeição sem a persistência humana, aquele relacionamento tinha os seus dias contados. 
            Mancara não era aceito pelos familiares de Lísia e, de todas as maneiras, fizeram tudo que puderam para separá-los. A família de Lísia também era pobre, mas não aceitavam o relacionamento de Lísia e Mancara, pois sabiam de onde Mancara provinha e não acreditavam que ele fosse capaz de trocar aquela vida por outra. No princípio, tinham uma certa confiança em Mancara, mas ele, acostumado ao estilo de vida anterior, traiu essa confiança. E a confiança é como um vaso raro, porém frágil, uma vez destruída, nunca mais é recobrada.
            Muito fez Mancara para sair daquela situação, propôs a Lísia que fugissem e construíssem suas vidas longe dali, mas Lísia, apesar do amor a Mancara, não podia deixar de amar os seus pais. Optou pela serenidade, mesmo correndo o risco de nunca mais vê-lo. O espírito de Mancara não foi forte o bastante para agüentar aquela pressão dos familiares de Lísia. Sempre fora determinado a conseguir o que quisesse, mas, quando o assunto é amor, não se pode dominar. O amor não é um animal que possa ser preso em uma jaula até sua domesticação, pelo contrário, é ele que domina a pessoa e a faz trilhar os caminhos da plena liberdade: eis o paradoxo. “Racionalista” como tentava ser, decidiu não se deixar mais dominar pelo amor e abandonou Lísia. Nunca tantas barreiras haviam se interposto em seu caminho como agora.
            Meses depois, folheando um jornal do dia anterior, viu nele a foto do carro do pai de Lísia. Havia muito tempo que não se fabricavam carros daquele modelo e, naquela região, nunca se vira um carro daquela mesma cor. Mas o que estaria fazendo no jornal? Rapidamente procurou a página na qual se encontrava a seguinte matéria: “família morre em acidente de carro...” Forte como era, chorou amargamente. Sentiu-se pusilânime diante da vida. Como um poder dos céus poderia permitir tal acontecimento desastroso? Como resposta, sentiu-se confortado por uma força provinda do infinito e, concomitantemente, pôs-se a rezar a quem quisesse escutá-lo nos céus. E em sua memória se desenhava o rosto de Lísia, sublime e majestoso.


Inconsciência


Tudo na vida tem um porquê, mas nem todo porquê é cognoscível.

            Pensando no destino que levara aquela que realmente amou com as forças de sua alma, Mancara entrou no ônibus e, do contrário das outras vezes, passou pela roleta pagando a passagem. Neste dia, resolveu colocar as roupas que conseguira meses atrás para se encontrar com Lísia. Não eram caras, mas o faziam respirar aliviado nos locais onde passasse, sem que ninguém escondesse a bolsa ou desviasse de seu caminho. Sentou-se atrás de um painel no qual notou uma das tiras metálicas solta. Seus olhos absorviam o conteúdo do jornal nele afixado: “Governo repreende, com violência policial, passeata de grevistas”; “Dez pessoas são vítimas de um tiroteio na favela”; “Corrupção e narcotráfico andam juntos”; “Movimento de sem terras acaba em morte”; “Empresa privatizada demite funcionários em massa”; “Elefante que nasceu no jardim zoológico passa bem”. Riu alto e seu riso era uma mistura de ironia e ira. O ser humano regrediu a tal ponto de não mais ser valorizado em si e suas atitudes não podem mais ser chamadas animalescas, já que os animais parecem ser os únicos responsáveis pelo equilíbrio do planeta.
            Um executivo de baixa estatura e queixo erguido, ricamente trajado, entrou no ônibus e sentou-se ao lado de Mancara. “O que estaria fazendo naquele ônibus, um senhor que talvez possuísse inúmeros carros?” Mancara se perguntava. Não havia mais lugares e, por isso, antes de sentar-se, titubeou em seguir para o fundo, mas, para sua triste sorte, não o fez. Sentou-se e, imediatamente, abriu o computador portátil que trazia. Uma estranha sensação tomou conta de Mancara, alimentou um profundo ódio àquele senhor. Nunca o havia visto, mas seu ego dizia que aquele era o seu inimigo mortal. Como se desvencilhar de tais pensamentos? Era preciso superá-los. Seria possível não dar crédito a eles? Mas, o fator psicológico é o ápice do real. Vítor tanto cogitou sobre seu ódio àquele desconhecido que não pôde mais se dominar, arrancou a tira metálica que havia observado minutos antes e encravou-a no pescoço daquele senhor. Aproveitando-se da gritaria das pessoas que não conseguiam entender o que havia acontecido àquele executivo cujo sangue escorria pelo ônibus, Mancara passou por entre todos e saiu pela porta traseira do ônibus, aberta para o embarque de passageiros.
Correu durante horas, tentando descobrir o porquê daquilo que havia feito. Sempre viveu nas ruas e muitas pessoas foram mortas por ele, mas nunca sem motivo aparente. O crime é semelhante a um parafuso colocado sempre no mesmo lugar: no princípio o parafuso deve ser forçado até que seja introduzido, com o passar do tempo ele é facilmente colocado e tirado; assim acontece no crime, o pesar na consciência sempre acompanha os principiantes. No mundo das ruas, muitas vezes a lei é esta: matar ou morrer. Quando porventura, alguém era morto nas ruas por ele, imaginava Mancara estar fazendo três favores: um à vítima, que já não sofreria mais com a constante incerteza do dia-a-dia, outro a si, já que em todas as vezes sua vida era ameaçada e, por fim, à sociedade, que se veria livre de mais um daqueles que lhe causavam pânico e terror. Agora, porém, a sangue frio, ferira ou, até mesmo matara um senhor que nunca tinha visto, mas do qual, com certeza, a sociedade não iria deixar de pedir contas. Estranhou-se, não estava sob efeito de drogas e nem mesmo de álcool. Corria como um louco que se imagina correndo de uma locomotiva. O céu coriscava, uma tempestade cairia em algumas horas.
Mancara, totalmente molhado pelo suor, com a garganta seca, tonto de cansaço e com dores por todo o corpo, parou e observou estar em cima de um viaduto. Pensou em pular dali, todavia não alimentou tal pensamento, aquele viaduto era baixo demais. Não temia a morte, mas temia a invalidez. Descendo, atravessou a avenida sem se preocupar com os inúmeros carros que iam e vinham buzinando, dos quais motoristas gritavam:
- Quer morrer idiota?
Entrou em um prédio de trinta andares e chamou o elevador. No segundo andar entrou uma bela moça cuja beleza era tão notável quanto a sua vaidade. Por ironia do destino, o elevador enguiçou com os dois no décimo quinto andar. Uma corrente de pensamentos macabros tomou conta de Mancara. Teve ímpetos de estuprar aquela moça e, logo depois, matá-la sufocando-a. Traçou todo o plano de forma que ninguém descobrisse o que realmente acontecera, a não ser, tarde demais: diria a quem estivesse ao lado de fora que ela não havia agüentado a falta de ar no elevador e desfalecido. Tudo planejado, só faltava agir. Mas aquela moça, sentindo-se incomodada por estarem presos no elevador, disse delicadamente:
- Vamos pedir a Deus que mande alguém que venha logo para nos ajudar!
Aquelas palavras foram como um oceano derramado sobre um palito de fósforo aceso. Fizeram com que Mancara, paulatinamente, voltasse a refletir sobre a razão de suas atitudes. Não era a volta à lucidez, pois não sabia o que isso significava, era uma inquietação semelhante a um remorso de ter feito algo que  não correspondia ao seu instinto. Era um desassossego pela possibilidade da existência de um poder superior que estaria a registrar todas as falhas humanas e atitudes desumanas. “Haveria um Deus no céu que assistisse a tudo aquilo sem nada fazer para impedir o livre-arbítrio do homem?”. Falar em Deus foi a salvação daquela moça que com ele estava presa no elevador, infelizmente, ela nunca saberia disso.
Quando o elevador voltou a funcionar, Mancara sentiu-se aliviado por não estar mais próximo daquela que parecia ser a testemunha ou juíza de seus crimes. Nunca, em sua vida, uma palavra fizera tanto efeito na mudança de alguma atitude sua. Pensou: “se a palavra ‘Deus’ era tão poderosa, o que seria do homem diante deste ser inefável?”.

 

Tragédia ou alívio?


Não se deve julgar as pessoas sem reconhecer as circunstâncias que realmente desencadearam uma ação, conclusão: nunca se deve julgar.

Quinze minutos depois Mancara se encontrava no plano superior do prédio. Caminhou até a beirada e sentou-se em cima da mureta de proteção. Olhando lá de cima, viu todas as pessoas e os carros que passavam na avenida, eram semelhantes a brinquedos de crianças de condições financeiras estáveis. Inusitadamente, fluíram em sua mente pensamentos de revolta contra tudo e contra todos: “Porque havia tanta miséria em lugar de tanta riqueza? Porque algumas pessoas já nasciam sabendo que o sofrimento era a única coisa a esperar de sua vida até a morte? O que fizeram aqueles sofredores das ruas para merecerem tal destino? Quem era realmente o culpado por aquela situação? Que sentido tinha a vida para aqueles que a viviam realmente ou para aqueles que apenas sobreviviam?”. Mancara não encontrava sentido algum para nada. Tudo parecia ilusão.
Olhando para a avenida lá embaixo, reparou que nela passava uma carroça. Engraçado e estranho era, numa cidade grande como aquela, costumes tão antiquadros ainda estarem presentes; mas não pensava nisso. Comparou a sua realidade à da carroça. Pensou: “sou como aquela carroça que carrega pedras e é puxada por um cavalo ao longo da avenida. Da mesma forma que a carroça segue em diante apesar da sua figura contrastante com a cidade, eu sigo. Da mesma maneira que ela é puxada por um cavalo, eu sou guiado pelo acaso. Enquanto segue, leva consigo muitas pedras, enquanto a vida é vivida comporta em si todo o sofrimento originado pelas atitudes humanas. Se a carroça fosse destruída, todo o fardo seria deixado no meio da caminho. Mas outra carroça deveria levá-lo. Seria necessário realmente a existência do sofrimento?”. Se Mancara pulasse dali, sabia que não haveria volta. Também não haveria mais sofrimentos, pois a carroça de sua vida não mais existiria. “A morte seria um alívio?” – pensava – “quem é o responsável por minha existência? Não sou dono de minha vida?”.
Assim permaneceu por mais de uma hora até que apareceram vários policiais que gritavam afoitos, apontando armas em sua direção:
- Pensou que nos escaparia dessa vez, não é mesmo? Sabemos que foi você o responsável pelo assassinato do ônibus.
Mancara nada disse em sua defesa. Não sabia como descobriram-no ali, mas resolvera uma das dúvidas de horas atrás, o senhor que ferira no ônibus não sobreviveu à sua investida. Não tinha medo da prisão, já havia passado por ela várias vezes e, vendo-se encurralado de todos os lados, estava pronto a se entregar quando, contudo, por um desequilíbrio na mureta em que estava, caiu do alto do prédio.
Como se houvesse algo a ser feito para impedir aquela tragédia. Todos os policiais desceram fugazmente. Quando chegaram à avenida onde Mancara caíra, cobriram o que restou de seu corpo com vários jornais e isolaram a área. Muitas pessoas, que haviam assistido a tudo aquilo, gritavam desesperadas e foram levadas aos pronto-socorros mais próximos em estado de choque. Repórteres oportunistas fotografavam tudo o que podiam e entrevistavam pessoas que, apesar de nada terem visto do que acontecera, contavam a sua versão daquela catástrofe.
Quase nada restara daquele que era o símbolo da coragem e dos destemidos, conhecido por toda a polícia e devotado pelos meninos de rua. Somente restavam as inúmeras lembranças e a pergunta: quem é o responsável pelo destino das pessoas, o indivíduo ou a sociedade? Eram seis horas da tarde, uma nuvem escura formou-se naquele lugar. Todos voltavam para casa com as suas consciências limpas pelos subterfúgios do preconceito.


Astúcias


O ser humano merece consideração, não por seus grandes feitos, não por sua ausência de infrações às convenções, somente, por ser humano.

            Quando estavam em uma loja de eletrodomésticos, Patoca e Tanoy viram grande quantidade de pessoas que se aglomeravam em frente a uma televisão na qual passavam notícias da última hora. A televisão, em si, nunca trouxera a eles nenhuma notícia prazerosa. Sempre que assistiam a algum programa de humor pensavam: “como pode o ser humano brincar com a realidade de muitos que sofrem?”, quando assistiam a algum filme ou novela, sonhavam com a realidade sabendo que nunca poderiam realizar os seus sonhos. Como já era de se esperar, a notícia pela qual todos ansiavam era a morte daquele que lhes ensinou a enfrentar o mundo que os rejeitou como uma escória produzida por ele mesmo. Imediatamente, foram avisar aos outros do acontecido. Todos eles não puderam acreditar no que havia acontecido e sua coragem quase inexorável foi abalada por uma dor: o sentimento de tornarem-se órfãos diante dos futuros desafios.
Rapidamente vinham na lembrança todas as peripécias do líder daquele grupo. Não saíram, nem mesmo se deitaram, prestaram homenagem àquele querido mestre recordando seus feitos de sagacidade e falando sobre eles como quem fala da pessoa mais importante que até então viveu, ou melhor, esteve no mundo...
Um dia, houve uma falha na conexão que repassaria a droga contrabandeada a outros traficantes. Mancara tomou todo o fardo para si como se fosse o único responsável por isso. Os traficantes, revoltados com perda de milhares de dólares, pois a droga não chegou ao seu destino conforme o combinado, decidiram matar Mancara. Este e seus companheiros sabiam que nada lucrariam naquele combinado e decidiram repassar a muamba a outros traficantes, obtendo um lucro incomparável. Então planejou uma estratégia: deixou a maior parte do dinheiro do contrabando com seus companheiros e embarcou em ônibus cujo destino era Bom Depacho em Minas Gerais. Fez tudo isso aos olhos dos comparsas do grande mafioso que estava à sua procura. Sabia que ninguém o mataria enquanto não soubesse o paradeiro do dinheiro que obteve com a venda que realizara. Alegrou-se quando viu um carro acompanhando o ônibus no qual se encontrava. Era o carro de um chefe de polícia do Rio que mantinha relações de contrabando com vários mafiosos, inclusive com o que estava na espreita de Mancara. Pensou consigo: “Logo, logo eles me procurarão em Minas Gerais!”. Quando passou pelas primeiras cidades de Minas Gerais, reparou que o carro não mais o seguia, mas não arriscou. Esperou chegar em Bom Despacho, onde, imediatamente, comprou a passagem de volta. Assim – pensava ele – os traficantes o perseguiriam inutilmente imaginando que ele nunca voltaria ao mesmo lugar de onde fugiu. Para quem se utiliza do óbvio como solução de camuflagem, aquele plano parecia o mais eficaz, porém quem poderia imaginar o que se passava na mente de quem o perseguia? Voltar ao lugar onde tudo começou não era sinal de coragem, nem mesmo de demência, era a certeza de que tudo saíra conforme o planejado. Evidentemente muitas vezes estima-se em excesso a certeza que pode ser ilusória e deixa-se de lado a dúvida que é sempre certa...
Ao voltar, Mancara não imaginou encontrar lá aqueles que o perseguiam, mas lá estavam eles, como um leão que sente a presença de sua presa. Antes que o vissem, quebrou os vidros de um carro e, pulando dentro deste, tratou logo de fazer uma ligação elétrica com a qual fizesse o carro funcionar para nele fugir. Mal ligou o carro, os traficantes o viram e começaram a atirar em sua direção. Perseguiram-no até uma estrada deserta que parecia não ter fim. Mancara nunca esteve por aqueles lugares, mas tinha a impressão que esta estrada tinha-lhe algo familiar, algo que realmente fazia parte de sua vida. Percebendo, Mancara, que o combustível estava no fim, tratou logo de pular do carro e correr embrenhando mato adentro. Após quinze minutos, corria sem rumo no meio da mata, mas sabia que era perseguido e poderia a qualquer momento ser encontrado. Ia fugaz como um coelho, mas percebeu que passara inúmeras vezes no mesmo lugar, então se arriscou e seguiu numa só direção. Algum tempo depois, estava diante de um grande lago. Suas forças estavam escassas, mas tinha que nadar até o outro lado do lago ou logo o alcançariam. Enquanto recuperava o fôlego, sentiu uma forte dor no braço esquerdo e concomitantemente o sangue escorreu e uma grande sede tomou conta de si. Os traficantes já o haviam alcançado, mas não os via. Não teve escolha, pulou no lago e nadou até o meio onde as balas não o pudessem alcançar facilmente. Parou de nadar e deixou seu corpo livre sobre as águas. Era a última tentativa de ludibriar os traficantes. Estes, ao chegarem até a beira do lago, nem mesmo entraram, pois sabiam que o tinham ferido e vendo o corpo flutuando sobre as águas, deduziram que Mancara não agüentara atravessar o lago e acabou por se afogar. Ao perceber a ausência de seus inimigos, Mancara saiu do lago, rasgou a camiseta e estancou a hemorragia com um torniquete até que pudesse cuidar do ferimento e voltar ao convívio dos seus.
Durante um mês, Mancara se escondeu em Petrópolis para dar certeza de sua morte aos traficantes. Quando soube que seus inimigos partiram para a Colômbia, não hesitou mais em voltar ao convívio dos seus. Quando Biboco o avistou, gritou aos outros e correu em sua direção dando-lhe um forte abraço. A enorme algazarra era acompanhada de inúmeras interrogações como: onde estivera? Como fugira? O que fizera para escapar das mãos dos mafiosos? Respondidas todas as perguntas não havia mais dúvida de que aquele era o exemplo de sagacidade que os fazia sentir cada vez mais corajosos na pugna da vida.
Estes acontecimentos eram memórias sempre presentes daquele que, para eles, era líder, companheiro, pai e irmão. Não puderam esconder as lágrimas. Choravam como crianças que se tornaram órfãs. Juraram nunca esquecer de pedir ao deus dos sofredores por aquele que consideravam o santo dos que crescem nas ruas e daqueles que lutam contra o mundo.
A alguns quilômetros dali, uma borrasca espalhava o sangue de Mancara pelo asfalto interditado. O espírito das pessoas que passavam se enleava e uma tênue satisfação dava aos policiais a sensação do dever cumprido.

Camuflagem social


Cada um de nós tem suas próprias razões, mas há no mundo alguma razão que nos faça desdenhar a verdade?

Aquela noite foi longa para aquele grupo. Nunca tiveram planos para a vida, viviam cada dia em si mesmo sem se preocupar com o futuro. Mas, agora, sentiam-se inseguros. Esta insegurança, porém, não era manifesta por palavras e sim pelo silêncio que, vez por outra, era quebrado por uma recordação de uma grande atitude ardil de Mancara.
No outro dia alguém deixou no barraco onde se escondiam um jornal que continha em primeira página a foto do corpo de Mancara coberto por um lençol e a seguinte notícia:

Marginal suicida mata executivo

Foi morto ontem, às três horas da tarde, o gerente do banco American-brazil: Valentino Yega. Testemunhas afirmam que um marginal, conhecido pelas redondezas por Mancara, tentou assaltar o executivo que, corajosamente, reagiu à investida. O marginal, não se dando por satisfeito, tirou um punhal que carregava consigo e golpeou o executivo várias vezes.
Acredita-se que o crime se deu por vingança e que o marginal foi pago para eliminar aquele que se candidatava a sócio do banco em que trabalhava, com inúmeras especulações financeiras na compra de ações do mesmo.
Destaca-se, neste momento, o magnífico trabalho da polícia que imediatamente seguiu o criminoso na fuga. Um dos policiais, que estava no ônibus em trajes civis, reconheceu o marginal, mesmo estando este bem vestido para disfarçá-lo em seu intuito.
Seguindo-o, silenciosamente, várias viaturas estiveram à sua espreita para agir em um lugar seguro onde não houvesse um tiroteio no qual corressem perigo as inúmeras pessoas que circulam pelo centro da cidade.
Testemunhas do local da abordagem afirmam terem sofrido ameaças caso dissessem onde o marginal se encontrava e ressaltam que este entrou no prédio portando uma 765 automática atirando para todos os lados. Dizem também que o criminoso, quando se viu encurralado, atirou-se do alto do prédio Júlio Palace. Dizem também duvidar da intenção suicida do mesmo, pois este estava drogado e não tinha noção da altura na qual se encontrava.
Tudo isso mostrou que a marginalidade está sendo combatida com todo o empenho policial e com a coragem da população que pode colaborar no crescimento de nossa cidade, tranqüila e confiante na segurança que lhe é proporcionada pela diligência de quem sabe que ser cidadão é antes de tudo ser livre.
           
            A fraqueza recôndita de outrora foi manifesta. Todos gritavam como loucos, discutindo e brigando entre si. Não estavam drogados e nem alcoolizados, mas sentiam tontos pela obscuridade do futuro que, mais uma vez, se lhes apresentava e do presente que sofrera um golpe do destino. Horas depois, Tanoy se levantou e disse:
            - Não percebem? Sempre fomo inimigo do mundo e agora deixamo abater! Será que tamos dando razão pr’ estes que falam de Mancara como o terror do homem livre? Algum da gente sabe o que é liberdade?
            Ditas estas palavras, todos se sentiram mais seguros e uma grande revolta dava-lhes forças para continuar. Era a prova de que o grupo sentia-se maduro e a fraternidade entre eles era a força maior que nenhuma máscara social poderia esconder.


Dilema de família


O acaso, mesmo que não seja o fator determinante do destino humano, não pode jamais ser subestimado.

            Lourdes, mãe de Vítor, se sentia aliviada. Quantos meses se passaram no sofrimento, na angústia que somente quem é mãe é capaz de definir, mas não com palavras. Olhava o filho na cama dormindo. Quanto tempo não acordava? Quantos meses sem que ele lhe dirigisse uma única palavra? O médico que cuidou de Vítor durante todo esse tempo disse com ar confortador:
            - Agora vocês já podem descansar, ele está fora de perigo.
            - Doutor José, gostaria de lhe mostrar uma coisa.
            - Tenho outros pacientes à minha espera, não posso demorar.
            - Não precisa ficar – dizia lhe entregando um caderno repleto de poesias e outros escritos – quero que leia, é de Vítor, talvez o senhor saiba como me ajudar.
            Ele tomou o caderno e guardou-o em sua bolsa saindo às pressas. À noite, antes de dormir, lembrou-se de Vítor e da provável interrogação de sua mãe a respeito dos escritos deste. Acendeu uma luminária, retirou o caderno da bolsa e o folheou até uma página datada como um diário. Seus olhos lacrimejavam, estava cansado, mas precisava corresponder à amizade e confiança nele depositadas.


O tempo e a liberdade

           
Tempo é o nome que os homens dão às grades de sua prisão fabricadas pelas suas próprias mãos.

Mas afinal, o que é ser livre? O que faz do tempo insubstituível um aglomerado de passados irrealizáveis e futuros incertos: ou de passados saudosistas e futuros inexistentes? Como viver o momento presente se este, como o passado que já se foi e o futuro que ainda não veio, também não existe? O que causa no homem o sentimento de felicidade ou de vazio?
A psicologia explicou de vários modos as causas das várias neuroses a que o ser humano está sujeito; classificou as várias etapas da vida do ser humano num desígnio insubstituível. A Igreja remeteu o sentido da existência a um futuro vir a ser metafísico no qual se alcançará a plenitude, não desprezando uma certa busca de realização terrestre, porém utópica. A ciência denominou o ser como ciclos intermináveis de substâncias em contínua transformação. Nada disso, porém, satisfez o homem plenamente.
Acreditar que seja possível alcançar a plenitude pode não ser tão fácil quanto parece. Se buscarmos explanação da psicologia, veremos que a felicidade é algo impossível, a realização algo apenas desejado e a liberdade algo totalmente inexeqüível. Se a vida é algo já preestabelecido, como se pode dizer que o sujeito pode ser livre sendo ele prisioneiro da prisão mais imperecível de todas: a sua própria consciência?
Na verdade, até mesmo aquelas pessoas que dizem ter encontrado o caminho para a verdadeira liberdade, ao receberem um corte epistemológico em seu dizer, apelam para a mais vil racionalização. Se este é o único caminho que acham para dissipar toda dúvida, como podemos dizer que essa pessoa é livre?
A Igreja e o esoterismo nos remetem a vivermos o momento presente, construindo um mundo onde todos sejam felizes. Infelizmente não existe um homem no mundo que esteja satisfeito com o que possui. Em quem então se mirar? Alguém já disse que “a felicidade não existe, o que existem são apenas os momentos felizes”. Além disso, o que é o momento e, principalmente, o momento presente? Agora? Mas que agora é este? Qual é a sua duração? Quando podemos afirmar que o futuro se tornou presente, ou ainda, que o futuro existiu antes que existisse o presente? Além do mais, o passado é mais real que o futuro, pois, quando se diz presente, ainda se espera pelo futuro, já que, o futuro, deixando de ser futuro também não é presente. Daí se conclui que nem mesmo os momentos felizes podem ser pensados como tais, já que só nos damos conta de sua existência quando eles se tornaram passado e o passado, evidentemente, não existe mais. A utopia acompanha a todos os que acreditam na existência de um futuro, é ela a sua meta final e seu impulso inicial.
A ciência, analisando a matéria, percebeu o contínuo “vir a ser” de sua existência, colocando o homem como um simples componente material de um mundo onde nada se perde e nem se cria. Algo move tudo o que existe, algo imperecível, algo infinito em potência e princípio de todas as coisas. Porém, a pergunta derradeira ainda se prossegue: qual é o sentido da existência?
O homem é um ser incompleto. Conhece o mundo, porém não conhece a si mesmo. Engana o próximo, mas também engana a si mesmo. Destrói o mundo e, conseqüentemente, destrói a si mesmo. Afirma que a liberdade está na aceitação de sua condição, porém não aceita a mais clara referência sobre si: é limitado.
Infelizmente o ser humano tem necessidade de aceitação até mesmo de outras pessoas, por mais vulgares que estas lhe pareçam. Quando quer provar que não precisa nada provar, já fica preso a esta necessidade. Quando reconhece que não sabe nada para atingir o conhecimento (como Sócrates) já possui uma dúvida ou certeza, portanto um raciocínio: “eu sei que nada sei”. Quando age de maneira cética duvidando de todas as coisas, possui ao menos uma certeza: “de nada tem certeza”.
É comum associar a idéia da liberdade à visão de um campo aberto no qual a natureza demonstra a harmonia extinta e procurada, imagina-se uma gaivota em seu vôo alçado, ou ainda um peixe na imensidão do mar. No entanto, por mais que se queira, ninguém consegue emancipar-se de todos. O homem é um ser social. Como o falado “ninguém é uma ilha”. Se procura se isolar sempre achará alguém que com ele irá se preocupar e se procura sociabilizar sempre achará alguém que o vai excluir e isolar. É bem verdade que a gaivota tem um vôo livre, porém este vôo só será exercido enquanto suas forças durarem. É bem verdade que o peixe tem um imenso oceano para nadar livremente (pelo menos até as margens terrestres), porém só sairá de seu habitat se as circunstâncias o obrigarem. Este é o limite anteposto a nós como um invólucro impermeável de uma liberdade inacessível. Por isso nunca se chegará a uma definição da liberdade enquanto na mente configurar-se a idéia do infinito.
O tempo é o maior limite. Quando nele se pensa, nele se abstrai, quando dele se tenta esquecer, ele surge com as maiores surpresas. Na verdade, de tanto esperar pelo futuro, de tanto recordar o passado, de tanto procurar qual é o momento presente, deixa-se de fazer o que a real liberdade, se existisse e fosse encontrada, permitiria: viver.

De volta do incógnito


Talvez se possa conhecer o que o que vai escondido nas atitudes humanas, talvez não.

            Vítor acordou, mas não conseguiu abrir os olhos, pois a claridade da tarde ofuscava a sua visão; quando o fez, olhou em sua volta, mas não sabia onde estava. Fechou os olhos novamente e se viu no meio de alguns jovens de rua que dele falavam com orgulho e saudade. Não compreendia o que estava acontecendo, mas esforçou-se por descobrir onde estava. Tudo era alvo: suas roupas, a cortina, o armário, o piso, o teto... O que estava fazendo ali? Não se lembrava nem mesmo de seu nome verdadeiro. Não se lembrava de nada. Estaria num hospício? Morrera e estaria em um lugar de outra dimensão? Sentia-se cansado e um sono inelutável fez com que dormisse novamente.
Quando acordou, observou as constelações pela janela do quarto no qual se encontrava. Neste momento, verificou que já conhecia aquele local. Levantou-se com dificuldade e, escorando na parede, chegou à janela. Olhou a rua movimentada, os carros e os arranha-céus a fazer um grande contraste com aquela casa de estilo barroco, sentiu algumas lembranças fluírem gradativamente em seu consciente: aquela era a casa de seus pais e aquele era o seu quarto, com um novo aspecto, mas era ele. Lembrava-se disso, mas não conseguia configurar a imagem de ninguém. De pé, diante da janela, virou-se para trás e viu a maçaneta se mexer e uma mulher, trazendo algumas roupas disse:
- Filho, vá descansar. O médico recomendou-lhe repouso absoluto. Somente depois que você se recuperar, poderá, se quiser, voltar à vida de antes. – e puxando-o pelo braço fez com que se deitasse.
Vítor não ousara perguntar nada. Deitou-se e, quando ela saiu, concluiu detalhes óbvios, todavia que lhe pareciam novidades: “meu nome é Vítor e aquela é minha mãe, mas a que ‘vida de antes’ ela se referia?” O que aconteceu para que ele estivesse ali? De que estava se recuperando? Sua mãe falava como se continuasse um diálogo iniciado um pouco antes. Vítor não entendia nada, mas não se atrevia a sair do quarto, pensou que da mesma maneira que descobrira o seu nome e quem era a sua mãe, descobriria as demais coisas. Se ela o tratava com tanta amabilidade, chamando-o pelo nome, com certeza não descobrira a sua amnésia.
No outro dia, seus irmãos foram buscá-lo para o café. Vítor saiu do quarto e, descendo as escadas, ia recordando de tudo. Os móveis, os costumes e a maneira de lhe falarem fizeram com que Vítor se reintegrasse de parte do que lhe fora tirado por aquele “profundo sono”.
Vítor falava pouco, tinha medo de perguntar o que lhe acontecera. Aproveitou-se da indiferença de todos e, através da observação das palavras que lhe eram dirigidas, paulatinamente ia recobrando a memória. Estando à mesa do café, iniciaram um assunto:
- Vítor foi sortudo demais. Nenhuma cicatriz lhe ficou nas partes descobertas.
- Ainda bem que o acharam. Naquela estrada, durante meses, poucos carros passam por ela.
- Ser conhecido, também é bom – e virando-se para Vítor continuou – aquele senhor que lhe socorreu é irmão de nosso vizinho.
- Sorte maior foi ter reconhecido a Vítor, pois do carro nada restou. De lá foi levado diretamente ao ferro velho.
Vítor olhava para eles dissimulando entender toda a história. Mastigando um pedaço de pão, concordava com eles balançando a cabeça afirmativamente. Em menos de um dia já podia se lembrar de todos e descobrira, mesmo sem interrogar a ninguém, o que acontecera a ele para que lhe dessem tantos cuidados.
Durante o dia foi visitado por inúmeros parentes, vizinhos e amigos que diziam sempre o mesmo de formas diferentes: “rezei por você todos dias, sabia que você sairia dessa. Você é forte e seu anjo da guarda também é!”. Vítor limitava-se a escutar, mal respondendo as perguntas que lhe eram feitas.
Quando anoiteceu, percebeu como fora longo aquele dia. Não conseguia dormir, mas suas incertezas estavam, paulatinamente, sendo resolvidas. As recordações fluíram em sua mente como uma bóia, antes presa em uma pedra ao fundo do mar, que se solta. Lembrou-se de sua vida de vazio e solidão. E foi traçando todos os acontecimentos que precederam àquele acidente. E, em sua mente, formou-se a imagem de seus bens, de sua moto e de sua casa. A partir daí, pôde analisar atitudes de outrora. De quando direcionou suas metas simplesmente à satisfação de seu desejo de consumo. Quando o relógio de parede, relíquia de Dom Pedro II, tocou, adormeceu profundamente. Já ultrapassava a meia-noite.
           


Raízes do problema


O passado é o presente transformado em memória: se ruim, crescimento, se bom, saudade.

            Ao acordar na manhã seguinte, Vítor percebeu que havia uma pessoa estranha em seu quarto. Aquele era o médico que dele cuidou durante o tempo em que esteve inconsciente. Pedira à família de Vítor que deixasse que ambos conversassem a sós. Sentado em uma cadeira, ao lado de sua cama, nada falava, parecia esperar a iniciativa de Vítor. Trazia à mão um livro que se intitulava: “os remédios genéricos”; foi o que fez com que Vítor deduzisse o que o trazia ali. Quando resolveu sentar-se na cama o médico perguntou-lhe:
            - E aí Vítor, já está começando a se recordar das coisas?
            Vítor estranhou, pois era a primeira vez que alguém lhe perguntava a respeito de seu estado mental após o acidente. Até então, todos agiam de maneira indiferente sem notar-lhe a amnésia. Então, tomando coragem disse:
            - Começo a me recordar de alguns fatos. No princípio não me lembrava nem mesmo de minha mãe, mas a casualidade fez com que eu deduzisse muitas coisas.
            - Isso tudo é normal, pois a região atingida por uma das ferragens em seu cérebro é muito delicada e, dependendo da gravidade, pode até causar amnésia crônica. O seu caso foi diferente. Quando aqui chegou, ainda sob a ação de alguns medicamentos, chamou a todos pelo nome, mesmo que não se lembre disso. Foi o que fez com que eu acreditasse em sua rápida recuperação mnemônica. Não disse nada à sua família, pois achei que, sem precisar de sofrer por uma possível deficiência causada pelo acidente, eles lhe ajudariam a se lembrar de tudo. Não valorizei em excesso esta possibilidade que era incerta. Pelo que vejo, fiz bem, pois,  em menos de dois dias, você já consegue se lembrar de tudo.
            - Não exagere doutor! Ainda há muito que não sei ou não consigo lembrar-me. O que eu fazia em um carro numa estrada tão deserta? Que profissão eu exercia antes do acidente? Há quanto tempo estou me recuperando?
            O médico não estava surpreso diante daquelas inúmeras perguntas. Percebeu que tudo o que previra estava acontecendo. Tal atitude transferiu a Vítor uma grande tranqüilidade. Serenamente e com toda a calma disse-lhe o médico:
            - Vítor, se você não conseguisse se lembrar de nada, eu não poderia dizer-lhe nada também, pois estaria assim cerceando o seu esforço mental, mas vejo que já voltou ao seu estado normal. Vou dizer-lhe parte do que sei sobre o que lhe aconteceu: você se encontrava muito solitário em um barracão que você próprio construiu com seu trabalho frenético. Também agia febrilmente adquirindo bens de toda espécie. Não sei, mas acho que estava compensando alguma mágoa reprimida. Mas vamos aos fatos: Já naquela época, seu pai, grande amigo meu, estava preocupado com o seu isolamento. Por quê você o fazia, não posso dizer-lhe, mas, talvez, você saiba. O que não se pode refutar é que você precisava de ajuda, mas ninguém sabia como ajudá-lo. Você se trancou em si mesmo. E, dessa forma, desapareceu por dois dias. Todos lhe procuravam por toda parte até que um amigo de sua família trouxe-lhe a um hospital em que trabalho e logo o reconheci apesar da situação lastimável. Dizia que lhe havia encontrado a uma grande distância daqui. Você deu sorte de alguém lhe, socorrer a tempo, o acidente havia acontecido algumas horas antes. Mais uma hora sem cuidados médicos e o acidente seria fatal. Quando você chegou, imediatamente, avisei aos seus familiares que passaram a dar-lhe assistência. Para pagar o seu tratamento, venderam o seu barracão e a sua moto. Apostaram tudo em sua recuperação. Você ficou em estado de coma durante seis meses e cinco dias. Havia muitos cortes em seu corpo, como você pode ver pelas cicatrizes. A minha principal preocupação era um corte em sua cabeça que poderia ser fatal. Para cuidar de você foram chamados alguns especialistas. O afundamento do crânio atingiu uma região muito delicada do cérebro. Felizmente, o acidente não deixou nenhuma seqüela...
            O médico falava pausadamente. Esperava que Vítor fizesse alguma pergunta e logo prosseguia. Não parecia ter pressa, falava como quem muito sabe, mas deseja confirmá-lo. Vítor ficava admirado por uma pessoa saber tanto de sua vida, mais do que ele mesmo sabia. Percebeu que, por mais que se isolasse, todos ainda se preocupavam com ele. É verossímil que fazia tudo inconscientemente. Sua sede de consumo, seu trabalho febril e seu isolamento não puderam preencher o vazio interior que possuía antes daquele acidente. Virando-se para o médico disse:
            - O senhor é também psicólogo?
            - Não Vítor. Na medicina, optei pelo corpo, não pela alma. Mas sei o que o corpo não é uma máquina, há algo superior a ele que o faz funcionar em ordem. Todos temos um pouco de psicólogos, pois é mais fácil reconhecer o que vai escondido dentro das atitudes das pessoas, do que conhecer a nós mesmos – e, levantando-se, disse – Até logo! Tenho que voltar ao trabalho.
            - Mas doutor, nem mesmo perguntei o seu nome!
            - Eu me chamo Carlos José. Mas prefiro que você não me chame nem de doutor, nem de Carlos. Pode me chamar de José. E conte sempre com a minha amizade. – Dizendo isso, saiu apressado.
            Vítor começou a pensar em tudo o que tinha ouvido e se lembrou de todos os acontecimentos que culminaram no acidente. Percebeu naquele novo amigo um carisma para a profissão que exercia. Uma segurança pairava no ar a cada palavra que dele escutava. Tomou um lápis e um papel, e escreveu: “ideal”. Sentado na cama olhou para esta palavra e sua vida estava diante de si como uma fada a esperar o pedido a ser feito.
             Passando pela sala, José entregou o caderno de Vítor à sua mãe e tranqüilizou-a quanto ao conteúdo deste dizendo ser ele o anseio de um jovem que leva a vida à sério demais. Ao sair da casa, passou a andar vagarosamente esquecendo-se dos compromissos seguintes, e pensava: “há pessoas que têm coragem de afirmar que temos que enterrar o passado. Não o podemos fazer, este está intrínseco à nossa existência. Dele depende todo o presente que, por um espaço de tempo incógnito, também se torna passado. A memória do passado é o suporte da vivência presente”.


Reminiscências


Relacionar o sonho e a realidade é como tentar separar o carro e suas rodas; as rodas, com diferentes tipos de forças, fazem o carro avançar, assim como o sonho, com diferentes possibilidades, o faz com a vida.

            Na mitologia grega encontramos inúmeras histórias triviais como qualquer fábula que acaba transmitindo um conceito ético ou moral. Mas, de todos eles, um parecia realmente traduzir as sensações de Vítor diante da vida: o mito da reminiscência. Por ele explica-se toda a ânsia da alma que busca a beleza na multiplicidade de sensações unidas pelo raciocínio. Segundo ele, a alma desdenhava os seres, hoje chamados reais e contemplava o ser verdadeiro. Caindo no que chamamos de corpo, ela busca negligenciar as coisas do mundo. Os que negligenciam totalmente a realidade terrestre são chamados de loucos porque a realidade de perfeição não pode ser compreendida nem mesmo pelos que a experimentam, pois, enquanto ser mortal, não se pode possuir a percepção bastante distinta.
            Vítor se recuperou e voltou a lecionar. Sua força de vontade fez com que ele recobrasse todo o aprendizado de outrora. Sempre gostou da leitura como alternativa de crescimento e, apesar do acidente que sofrera, nunca deixou este hábito.
            Agora trabalhava de forma ponderada, mas a vida continuou a inserir em sua mente pensamentos que questionavam toda a existência humana. Não se contentava com o óbvio. Pretendia ir mais a fundo no oceano da vida para encontrar a pérola escondida da verdade.
            Sempre sonhou com um grupo de jovens de rua do qual fazia parte. Numa ocasião era o líder e sempre tinha alternativas para a ação do grupo. Em outra ocasião, navegava em seus pensamentos e notava neles a saudade que dele tinham. Visualizou sua própria morte enquanto Mancara e os efeitos dela na sociedade. Quando acordava, no outro dia, relembrava todos os fatos que vivera em seus sonhos e, num devaneio, conseguia descrever com precisão tudo o que se passava em neles. Nada do que fazia o deixava, porém menos inquieto.
O que significavam aqueles sonhos? Seriam resquícios de delírios dos meses em que esteve inconsciente? Eram reminiscências de outra encarnação? Seriam previsões do futuro ou de uma futura encarnação? Vítor, que nunca se interessara por estes assuntos devido às crenças de sua família, agora pesquisava tudo quanto podia, tentando conhecer todas as teorias que o poderiam levar a alguma conclusão. Leu vários livros espíritas com teses bem fundamentadas de Alan Kardec, leu tudo o que encontrou sobre parapsicologia e psicanálise. Quando encontrava com algum profissional destas áreas, nunca deixava de perguntá-los sobre o verdadeiro significado dos sonhos que tinha. Discutia, argumentava e, apesar de todas as teorias parecerem ser verdadeiras por serem lógicas, nenhuma delas explicava-lhe sem racionalizações o sentido daquelas reminiscências. Para ele, toda teoria, apesar de conter uma dose de verdade, era uma adaptação à realidade. Como não se conhece o objeto da pesquisa, é fácil afirmar, incólume de refutações, a veracidade de uma teoria qualquer. Não se considerava um cético, mas precisava reconhecer um fundamento epistemológico para, a partir daí, se aprofundar no conhecimento do que o inquietava. O espiritismo atribuía tais sonhos a uma outra vida, numa circunstância totalmente adversa da que se encontrava, como um menino órfão crescido nas ruas e juntado pelo acaso a outros meninos de rua na mesma situação. A parapsicologia atribuía aqueles sonhos a uma codificação telepática com o líder de um grupo de jovens de rua que possuía uma afinidade de pensamentos e idéias semelhantes às de Vítor. Mas como explicar a visualização dos pensamentos daqueles jovens. Se fosse a reminiscência de uma encarnação anterior explicaria assim, até mesmo a presença do passado em forma de lembrança na sua mente enquanto Mancara. Se fosse uma linguagem telepática com um dos chefes de um grupo de rua, poderia viajar pelo âmago daqueles jovens mesmo após a morte de seu líder. A resposta que procurava não parecia ser dada por nenhum ser humano. Para ele, a verdade era como o ouro, difícil de ser encontrada, mas, uma vez uma vez encontrada, não restariam dúvidas de que aquela seria a verdade suprema, de beleza contagiante que enleva a todos que a procuraram para dela se deleitar na alegria plena.
Não se admire se lhe parecer pieguice estas descrições das sensações de Vítor! Subterfúgio plausível: ele só falava da verdade desta forma quando estava levemente embriagado por uma garrafa de rum!


Abstração Filosófica


Louco é aquele que se diz conhecedor da verdade tomando como referência as medíocres atitudes humanas.

            Vítor já não podia ter certeza de nada. E se aquela vida que pensava estar vivendo é que era a ilusão de uma vida real? Quem era ele? Vítor jovem comum da cidade ou Mancara, jovem nascido e criado nas ruas? Será que tudo aquilo correspondia à realidade? Sua existência foi cercada de dúvidas. Não perdeu o sentido para a mesma porque na verdade nunca o encontrou. Nunca soube qual era a existência real. Parecia que sua vida era intercalada entre o dia e a noite com duas realidades ligadas à sua razão de ser. Há sonhos que parecem tão reais que passam a fazer parte de nossa existência. O tempo se encarrega de nos fazer esquecê-los, porém, em nossas atitudes, sempre somos influenciados por eles. Não é à toa que as pessoas tendem a chamar suas metas e planos de sonhos. Na verdade, sonhamos acordados por aquilo que, por mais difícil que seja, poderá tornar-se realidade. Logo os sonhos são a cópia da verdade que poderá, um dia, tornar-se a origem da realidade.
            No entanto, aqueles sonhos ou visões de Vítor, não correspondiam a planos. Afinal de contas, quem planejaria viver uma vida tão cheia de sofrimentos quanto a dos que moram nas ruas? Vitor buscara algumas vezes, alternativas emocionantes de viver a vida, mas nunca se imaginara como um “inimigo do mundo” na pessoa de Mancara. Sempre optou pelo convencional, porém admirava os loucos, não os dementes patológicos, mas aqueles que entregam a sua vida pelo ideal que almejam, sem restrições, sem medo de serem felizes, assumindo a sua liberdade até o limite da capacidade humana. Estes são chamados pelo mundo de loucos, mas para Vítor, eram os ícones da coragem inexorável.
            Um fato inusitado fez com que Vítor analisasse a existência de outra forma. Caminhando em uma rua tranqüilamente, antes de ir ao trabalho, pensava no medo que o homem tem de ser livre. A liberdade é algo que ultrapassa as convenções, mas Vítor percebia nas atitudes humanas, desde a linguagem até os costumes apreendidos uma aceitação inquestionável de tudo. O homem é preso a tudo, até mesmo ao tempo. Quem criou o tempo para que fosse seguido ininterruptamente? Poderia o homem alcançar a felicidade sem ser livre? Ao longe, avistou um homem maltrapilho que vinha em sua direção e gritava frases desconexas. Quando dele se aproximou, algo lhe paralisou as pernas e não seguiu adiante. Parecia hipnotizado por aquele homem cuja origem ninguém sabia. Ao vê-lo, aquele homem se aproximou e arregalou os olhos. Vítor se espantou com tal atitude, mas não saiu do lugar. Durante alguns segundos a cena se congelou e todos que passaram viram os dois, como estátuas no meio da rua. Repentinamente, aquele estranho homem soltou um forte grito:
            - Já devias estar contente, já devias estar contente...
            E saiu repetindo esta mesma frase a todos os que passavam. Era como um disco arranhado a repetir a mesma sinfonia. Aquele demente saiu, porém deixou suas marcas. Suas palavras instalaram-se no íntimo de Vítor que passou a repeti-las a si mesmo: “já devias estar contente”. Mas, de repente, seu devaneio, transformou-se em inquietação. Ele, escravo do tempo, não poderia se esquecer de seus compromissos, mas aquele fato fez com que Vítor se esquecesse de tudo o que tinha a fazer. Olhava em todo momento para o braço, mas não sabia porquê. Analisou assim, a mecanicidade das ações humanas. Quando se lembrou já não havia mais tempo, o ônibus que o levaria para uma escola da periferia já havia passado. Perdeu o dia de trabalho na escola, mas não perdeu o dia.


Busca do saber pelo saber


Todos somos amantes do saber, viver é estar em contínua busca do conhecimento dos fatos, do mundo, das pessoas, enfim, de nós mesmos.

            Um dia, Vítor decidiu prosseguir seus estudos e cursar o nível universitário. Iria fazê-lo, não pelo retorno financeiro que obteria, mas pelo retorno no que se refere ao pensar. Por este motivo, não teve dúvidas ao preencher o requerimento de inscrição com o curso: filosofia. Já havia tido uma introdução nesta área, mas agora tinha a oportunidade de embasar seus conhecimentos em algo mais categórico. Riu das primeiras manifestações filosóficas que vieram em contrapartida às pessoas que davam supremacia ao pensamento mítico. Pensava: “grande coisa dizer que o mundo não surgiu, como se pensava, da teogonia dos deuses, para atribuir sua origem à incerteza da matéria ou do infinito”. Percebeu uma verdade plausível, mesmo nos mitos escritos por Homero e Hesíodo, pois tentavam dar uma explicação ao mundo que observamos ao nosso redor. Mas, para Vítor, nenhum filósofo, por mais sábio que fosse, era tão astuto quanto Sócrates. Platão, seu discípulo, descrevia inúmeras sagacidades deste que, se utilizando da ironia, dizia nada saber e, assim, aquele que considerasse sua verdade irrefutável era mergulhado em inúmeras dúvidas ao ser questionado por Sócrates; era a maiêutica dando a luz a uma verdade ou a uma dúvida.
            Diante de tais estudos, Vítor se deliciava pelo prazer de quem sabe que nada no mundo tem sentido sem o Saber. Tudo era motivo de admiração. Observou que no universo tudo tende a se repetir. Todos os dias o sol nascia e se punha e, poucas eram as vezes que alguém se dava conta da beleza da aurora e do arrebol. As flores cresciam e poucos tinham a capacidade de admirar-se com a sua beleza. A vida se extinguia, a vida ressurgia. Tudo parecia novo para Vítor que sempre achava estas reflexões banais. Mas percebeu que, com o subterfúgio de buscar a realidade, dela se afastou. Todos observam o cachorro que antes de urinar num poste o cheira, a galinha que antes de se deitar num local o cisca, a ovelha que antes de ser sacrificada se ajoelha. Brincava com essas banalidades e dizia a seus colegas, tentando descontraí-los:
- Tudo parece ser regido segundo uma ordem universal.
Sua brincadeira foi uma faísca num palheiro. Vítor se assustou quando irrompeu uma discussão:
            - Isso é importante, aliás, a única coisa importante é o pensamento, pois ele é a base do conhecimento ou da existência. Por isso, toda ação deveria ser julgada por padrões externos ao cotidiano: uma realidade superior.
            - Nada disso! Não se pode esquecer os efeitos que uma ação produz neste mundo, elas são tudo o que importa para seu valor ético.
            - Mas quando vou agir, tenho em vista minha liberdade. O valor ético de uma determinada ação deve ter uma raiz na razão, não na observação. Os efeitos de uma ação no mundo não importam neste caso, seria preciso observá-los para chegar a uma conclusão e, para cada ação, há efeitos posteriores conspícuos. Como aplicar a ética a reações a posteriori?
            - Você partiu da ética para a metafísica. Mas, mesmo assim vou lhe mostrar como estou certo. O conhecimento inerente na razão é superior a tudo que poderia ser observado. Logo, aí se percebe que o pensamento é o único meio de se chegar a um conceito ético claro.
            - Não querendo ser empirista...
            De súbito um deles se virava para Vítor e perguntava:
            - E você Vítor? O que acha disso?
            Vítor se confundiu ao tentar acompanhar o raciocínio de seus colegas e estes, a qualquer palavra sua, iniciavam uma nova discussão que abordava diversos temas da filosofia: ética, metafísica e epistemologia. Cada um não era adepto apenas de uma corrente filosófica, faziam uma mistura das diversas correntes que lhes aprouvessem, não eram ecléticos, pois rejeitavam aquilo que consideravam banal ou inverossímil. Pareciam superiores em tudo, mas, mesmo assim, Vítor arriscou a falar:
            - Se ética e liberdade andarem juntos, neste caso posso opinar. Para mim, o eu humano e os valores humanos são ficções inevitáveis, mas a liberdade existe indubitavelmente. E meu pensar baseia-se apenas nisso, buscar a liberdade.
            - Você acredita em liberdade, mesmo tendo as reflexões que colocou agora há pouco? Segundo a sua observação o universo e tudo que ele contém segue um padrão fixo ou pré-determinado!
            - Sim, acredito. Mesmo num universo determinista a liberdade existe, o homem está condenado a ser livre. Heidegger e Sartre me mostraram isso...
            Essas discussões duravam horas e não terminavam formando nenhuma dialética entre elas. Na verdade, os defensores de cada ponto de vista, faziam da verdade algo maleável e acabavam por afirmar o que anteriormente tinham negado. Mas todas elas davam a Vítor a sensação de que havia algo a mais que ainda esperava por ser descoberto. Mas era difícil caminhar numa só direção ou corrente de pensamento: verdades eram refutadas a todo instante, isso dava a Vítor um sentimento de ansiedade que o fazia por os pés no chão e perceber a limitação de todo ser humano. Vítor aprendeu a lidar com essa limitação percebendo os limites da razão. Concomitantemente aos livros de filosofia, lia comédias ou críticas que o faziam se deleitar com o sabor do saber: Ao ler a “República” de Platão, lia também “As Nuvens” de Aristófanes; ao ler Aristóteles e os autores helênicos lia também as comédias de Luciano como “Diálogo dos mortos” e “eu Lúcio, um burro”; ao ler Tomás de Aquino, Duns Scotus e os demais filósofos medievais, lia também “Elogio da loucura” de Erasmo de Roterdam; Ao ler Descartes, Leibniz e outros metafísicos, lia também “Candido, ou otimismo” e “Dicionário Filosófico” de Voltaire. “Se todo filósofo é doido,” pensava, “ao menos eu serei um doido alegre e sorridente”.

Eu só sei que nada sei,
Mas quem não queria saber
O que vai acontecer
Com certeza algum dia.

De nada temos certeza,
Os céticos têm toda a razão,
Neste mundo onde as coisas
Parecem não ter solução.

Sair a caverna não é fácil,
Melhor é viver no escuro
Que deparar com isso tudo
Que ofusca nossa visão como o raio.


Encontro do caminho


Quando já se conhece o caminho, não se teme a ausência da luz.

            Certa ocasião, Vítor leu a seguinte história narrada por Sidarta Galtama, o Buda: “Havia um homem que andava pela floresta juntamente com seus companheiros até que levou uma flechada. Imediatamente, todos se puseram a agir, tentando salvar-lhe a vida, mas ele pediu que não chamassem o médico e nem o tirassem dali enquanto não descobrissem de onde a flecha partira, porque o atacaram e inúmeras outras perguntas que dificilmente seriam respondidas. Aquele homem, dessa forma, acabou morrendo sem ter respostas para nenhuma de suas dúvidas”.
            Vítor comparou-se àquele homem. Grande parte de sua vida perdeu-se em elucubrações que não o levaram a lugar nenhum. Percebeu que deixou de viver a vida por não encontrar sentido para tal. Mas queria se entregar por algo realmente nobre. Queria que sua vida significasse algo que prevalecesse, mesmo após a sua existência. Algo que ultrapassasse a barreira do tempo e da matéria.
            As palavras têm um grande poder na vida das pessoas, podem matar ou ressuscitar, podem transformar ou conservar, podem afirmar ou negar, enfim podem transmitir ódio ou amor. Percebendo isso, Vítor passou a dialogar mais com seus companheiros. Deixou o isolamento e aprendeu tudo o que deixou de aprender em tanto tempo que vivera isolado. Rapidamente, o sentimento de solidão o deixou. Seus amigos lhe trouxeram a paz que sempre buscou. Aos olhos de todos, sua vida sempre fora tranqüila, todavia seu interior era turbulento. Estes novos amigos eram de uma comunidade de frades cujo trabalho era devotado a meninos de rua, idosos, mendigos... Um dia, Vítor lhes disse:
- Admiro o trabalho de vocês. Vocês são pessoas ótimas, mas não seria errado consertar os estragos de nosso governo? Este trabalho que exercem nunca poderá abranger a todos os lugares, e, pobres sempre teremos.
            Um dos frades, meio corcunda, mas muito sorridente e seguro disse-lhe:
- Ah, Vítor! Conheces os argumentos de quem prefere esquivar-se da responsabilidade da igualdade social. Acreditas realmente que devemos esperar uma atitude do governo?
- Além do mais – disse o outro – não agimos de acordo com o paternalismo. Fazemos com que os pobres sejam sujeitos de sua própria libertação dos grilhões da exclusão. Eles é que se libertam pelo seu trabalho. Lembre-se que os excluídos nem sempre são as vítimas, sabemos disso. Somos apenas setas que vão indicar eles o caminho a ser seguido.
            Vítor percebia o empenho de todos estes amigos. Como poderia dizer que eles eram apenas setas? Eles faziam muito pela comunidade e, sem eles, com certeza inúmeras crianças teriam crescido nas ruas tornando-se marginais, inúmeros idosos teriam a morte antecipada, inúmeros pais de família nunca teriam oportunidade de emprego, inúmeros mendigos nunca sairiam das ruas... Vítor percebeu a grandiosidade daquelas atitudes. Era o maior exemplo de doação que presenciara em toda a sua vida. Percebeu que, por mais simples que fossem aqueles trabalhos, eram realmente dignos de admiração.
           

A ilusão diante do desconhecido


Os seres são o testemunho da liberdade, os olhos que os enxergam, o amor; nada se pode enxergar a menos que se abram os olhos, nada parecerá a liberdade a não ser pelo amor.

Vítor aprendeu muito com vida, aprendeu muito com a solidão, aprendeu muito mais com a convivência. A adesão às convenções sociais fez com ele ao menos não sucumbisse por caminhos mais tortuosos, como o das drogas. Deixou de buscar na simples negação dessas convenções aquilo que denominava liberdade. Assim como o êxtase, o vazio o deixou. Encontrou a pedra preciosa que buscou por toda a vida.

            Agi constantemente na procura de meu eu. Parecia que me distanciava de mim mesmo cada vez que me aproximava da verdade, ilusoriamente, por mim, considerada absoluta.
            Quando tudo parecia claro, descobri que tinha mais a descobrir. Descobri que o fato de achar explicação para algo fez com que eu me distanciasse da verdade lógica que me guiava na descoberta. Eis o risco de quem procura a verdade sem enrijecer os meios que levam a esta. Vi que para chegar a uma verdade, deixei no caminho inúmeras interrogações com o intuito de respondê-las assim que chegasse a algo concreto do que eu procurava. Cheguei, mas estas inúmeras interrogações, imprudentemente deixadas para trás, fizeram deste algo concreto um palácio no meio do deserto.
            A única explicação para tudo é transcendente a mim mesmo. Não posso afirmar que somente o que é experimentado é verdadeiro, mas como afirmar algo como sendo verdadeiro sem embasá-lo? Ou como embasá-lo se não encontro meios para isso?
            Tentei experimentar de várias maneiras a reação dos homens diante do desconhecido, mas nenhuma delas é tão eficaz para mostrar a essência humana quanto a solidão.
            Na solidão física verifico mais concretamente como reajo ao sentimento de estar só que se torna insuportável quando vem acompanhado da solidão moral. Ouço vozes, mas nenhuma delas dirige alguma palavra a mim. Duas pessoas dialogam sobre os últimos acontecimentos do mundo em constante transformação, e o que é pior, em contínuo caminhar para a sua própria destruição. Eu? Só escuto. Minha voz é inacessível a essas pessoas, por mais que eu grite. Entre nós não há somente um abismo físico, há uma parede intransponível do tempo, do saber e do mistério. A presença dessas pessoas somente agravou a minha solidão. Se elas nunca tivessem se aproximado, eu me sentiria mais eu comigo e, por isso, menos só.
            Senti que permanecer calado em certas ocasiões seria mais difícil que gritar até que minhas cordas vocais se arrebentassem, mas esse grito em nada mudaria o meu tédio. Sinto que algo acontece de diferente ao meu redor e eu não posso fazer nada para impedir. Ainda bem que não passam de sentimentos e os sentimentos nos mergulham em contínuas angústias toda vez que lhes atribuímos valor inestimável.
            Correr...Para onde? Procurar...o quê? Aceitar...como? Nada que eu fizer me tirará desta escuridão. Liberdade...não a conheço, pois apesar de não ser submisso a ninguém, sou escravo de mim mesmo e, o que é pior, escravo de um ser vulnerável, fraco e inseguro de seu futuro.
            Já sei!!! A única escapatória para não cair no desespero é entregar-me ao amor. Ele é a única forma de dar sentido a esta existência sedenta...
            Neste momento, sons ritmados, como que de uma orquestra de três mil componentes ressoam, vozes cantam o hino mais belo que possa existir, raios cortam os céus acompanhados de trovões tão fortes que fazem toda a terra tremer, mas, de repente, faz-se um silêncio que me inquieta e, depois deste extraordinário espetáculo de som, beleza e vigor, tudo volta para a sua monotonia do tempo e da rotina fatigante.
            Como já amanhece, ao despertar deste profundo sono, levanto-me da cama, me arrumo e saio, na procura de viver profundamente mais um dia de buscas, derrotas e conquistas.


Princípio da caminhada


Mesmo a mais bela pedra preciosa precisa ser lapidada.

            Vitor finalmente encontrou o caminho que o levaria, passo a passo, à felicidade almejada. Iniciou um trabalho leigo juntamente com seus amigos. Nas simples atitudes em benefício dos excluídos da sociedade obtinha os remos para o barco da vida, mas era preciso remar. Encontrar o caminho não é tudo, é preciso caminhar. Nunca mais se deixou levar pelas correntezas do acaso. Não era o presidente do Brasil, nem mesmo um herói que entregou sua vida pela nação, seu nome não estaria nos jornais como o “Salvador da Pátria”, não seria lembrado em celebrações religiosas como um santo que deu seu corpo às chamas por causa da fé, mas seu trabalho renderia frutos de libertação. Disso tinha profunda certeza. Assim como uma semente não dá frutos imediatamente, as atitudes de Vitor não renderam frutos imediatos. No princípio, impacientava-se, mas aprendeu a esperar, pois seu íntimo lhe dizia que nada que fizesse em benefício das pessoas seria em vão. Não que esperasse uma recompensa para si. Sua recompensa era a própria alegria alheia. Sabia que aos sentidos tudo é minúsculo, como é minúscula uma pequenina bola de chumbo; porém, o peso de atitudes como as suas era também semelhante a essa pequena bola; afinal, o que pesa mais? Uma bola de chumbo ou dez bolas de isopor de mesmo tamanho? Todavia há coisas inefáveis só compreensíveis a quem as experimentam.
            Em todos os finais de semana Vítor se juntava a vários grupos desprovidos de interesses próprios, voltados integralmente para o bem estar do próximo. Eram grupos provindos de diversos setores da sociedade: eram espíritas, católicos, evangélicos, pobres, ricos... E várias outras denominações. Mas ninguém se considerava mais importante. Todos se tratavam igualmente. Evidentemente, alguns atritos surgiam inusitadamente, mas logo se dissipavam, já que o único interesse era comum a todos: trazer dignidade àqueles que a perderam. Vítor colaborava nesses projetos incansavelmente. Pela manhã, acompanhado por muitas pessoas do grupo, percorria várias casas da cidade numa tentativa de sensibilizar a população a respeito do problema da desigualdade social. Não tinha pressa, parava, conversava, respondia perguntas e até debatia com argumentos convincentes a quem se interpunha àquele projeto colocando-se fora do padrão da responsabilidade social. Tais diálogos eram anotados assim que chegasse em casa. Esperava encontrar neles novas orientações para as novas atitudes a serem tomadas. Certa ocasião, enquanto preparavam o “Natal dos Excluídos”, mergulhado em tais reflexões, numa reunião do grupo a que se juntara, falou em tom desafiador:
            - É preciso fazer mais pelas pessoas. Combatemos a pobreza, mas nos limitamos a podar a planta do sistema social. Rapidamente ela brota, e outros ramos, mais numerosos surgem. É preciso cortar o mal pela raiz.
            Todos do grupo sentiram-se constrangidos com tal afirmação. Afinal! Já não faziam tudo o que podiam para diminuir o sofrimento de inúmeras pessoas com problemas tão diversos? E foi assim que uma mulher, idosa e doente, porém sempre animada a ajudar no que fosse preciso, disse sem se levantar do banquinho no qual sentara:
            - Ora, Vitor! Já não fazemos o bastante. Conte nos dedos, quantos jovens drogados, pais desempregados, alcoólatras, meninos de ruas e tantos outros foram atendidos por nosso empenho. Você mesmo é um dos maiores responsáveis por tais maravilhas. Deixe de ser pessimista!
            O diálogo parecia tomar o rumo de uma discussão, mas Vítor logo explicou:
            - Sei do empenho de todos, mas se os números são a prova comprobatória da veracidade do que digo, contem quantos jovens fugiram de nossas mãos para voltar ao convívio das ruas? Acham-se livres por não conhecerem a verdadeira liberdade. Quantos alcoólatras e drogados se deixaram tombar novamente pelo vício? Quantos pais de família nunca mais voltaram a trabalhar apontando inúmeros subterfúgios para não fazê-lo? Nosso trabalho é belo, mas não pode parar no assistencialismo. É preciso ir além. Sei também que muitos aqui vêem nessas pessoas objetos de sua salvação. Não podemos canonizá-las!
            Durante longo tempo durou aquela discussão. Ao sair dali, ninguém se sentia desanimado. Todos se perguntavam sobre a melhor forma de agir sem cometer os mesmos erros de outrora. A partir daquele dia, porém, alguns deixaram aquele grupo. Mas o trabalho continuou sem atropelos. Era preciso caminhar, parar no tempo esperando uma solução eficaz seria imprudência. Da mesma forma que um náufrago num barco desorientado deve arriscar uma das direções para não ficar toda a vida no oceano, assim deveria ser feito com o projeto do grupo. Apoiaram-se no ditado: “o amanhã pertence a Deus”, mas sentiam que precisavam fazer a sua parte.
            Tudo fazia Vítor parar e se encontrar consigo mesmo. Pela introspecção, percebeu que já não se sentia sozinho, mas tinha inúmeras dúvidas das decisões a serem tomadas. E, a pior delas era essa: “deveria injetá-las naqueles que, com tanto empenho semeavam sobre as pedras na tentativa de colher alguns frutos?”. Quando se age de uma certa maneira, ou se valorizam os frutos ou se valorizam os espinhos que machucam os frutos impedindo-os de serem totalmente belos. Vítor, absorto,  contemplava a ambos e viajava para as profundezas de seu oceano pessoal:

Mais uma vez encontro-me numa encruzilhada: O que fazer? Para onde ir? Todos me dão sugestão do melhor caminho a ser tomado. Indefinidamente ninguém consegue me dar uma única direção. Esta liberdade que agora respiro é a angústia de viver e ter que optar. Não sei se é imaturidade de minha parte, mas às vezes sinto-me tranqüilo como se a melhor alternativa fosse deixar o barco navegar de acordo com a corrente. Outras vezes, como agora, sinto que minha liberdade será exercida cada vez que navegar contra a corrente. Mas como navegar contra a corrente num mar onde várias correntes vão em várias direções. Se pelo menos as pessoas nas quais confio a minha insegurança tivessem unanimidade em indicar um determinado caminho! Todavia a dúvida permaneceria: aceitar estes conselhos ou refutá-los? Analisando o processo que me levou a estar aqui neste momento, voltado para meu ego, ansioso pela felicidade, percebi que decidi estar aqui por vontade própria. É bem verdade que pedi sugestão a amigos que muito me incentivaram em tal intuito, mas o primeiro impulso foi o meu; afinal de contas eu poderia permanecer estático, deixando que tudo ocorresse de acordo com o acaso. Mas não, percebi que a ausência de algo é melhor forma de valorizá-lo. Voltando atrás, descobri que o fato de não estar bem seguro do que decidi é que me levou a duvidar de minha decisão e a mergulhar em contínuos dilemas. Do contrário, combateria qualquer vento que viesse em outra direção. Se meu destino fosse determinado, ao perceber ventos contrários, abaixaria as velas e esperaria que estes voltassem a ir à direção que escolhi. Porém, como meu barco não é forte, deixei que o vento me levasse para o meio do oceano no qual me encontro agora. Navegar de acordo com a corrente, nem sempre é seguro, há correntes que têm seu fim em um lugar do qual partem correntes em várias direções. Na verdade, acredito que o que me fez decidir não foram os outros, mas meu receio em afastar cada vez mais das praias nas quais repousava tranqüilo. Só Deus é quem sabe o que farei, onde meu barco irá chegar. Na vida é preciso de um sentido, assim como ao navegante é preciso de uma referência. Mas como fui imprudente, saí para o mar sem saber ler no céu a posição na qual me encontro, levei uma bússola que se perdeu quando enfrentei os primeiros tubarões. Agora nada me resta a não ser navegar, mas preciso de uma direção única, do contrário navegarei em círculos e sempre chegarei de onde parti.
Essa tempestade me impede de enxergar um palmo de distância à minha frente. Mas o que busco enxergar no meio de um oceano? O céu se encontra com a terra, tudo parece o mesmo. Querendo alcançar o céu, percebi que este já estava junto de mim. E agora, que pretendo retornar à terra, percebo que os desafios de nela permanecer se ampliaram. Isso já era de se esperar, talvez a previsão dos mesmos é que foram a maior motivação para que eu partisse. Sinto que não retornar, é a covardia diante dos desafios vindouros. Ambos os destinos podem me trazer desafios, não há opção que não venha acompanhada de renúncias, mas é preciso optar por aquele cujos desafios são intrínsecos à minha natureza. Juntar a emoção e a razão na resolução deste dilema é tão difícil quanto misturar a água e o óleo. Se a água é a razão e o óleo é a emoção, só há uma única solução: deixar que a água purifique para que o óleo possa ungir.
Graças ao bom Deus, a tempestade já se foi, não pode chover o tempo todo. A razão me diz que a única forma de não me arrepender depois é não me precipitar baseado nos sentimentos de aprovação ou reprovação das pessoas, de mistificação do real ou do medo da solidão. A emoção me diz que todos os caminhos levam a ela. Logo, concluo que ficar aqui parado esperando que a solução para este dilema caia do céu, é entregar-me ao desalento e à pusilanimidade; é perder o sentido, ou melhor, é deixar de dar o sentido para a vida. É deixar de ser livre e entregar meu direito de escolha às circunstâncias ou a seres cuja existência é tão efêmera e cheia de incertezas quanto a minha. A estes a minha única motivação para uma decisão qualquer será: somente procuro o mesmo que você: a felicidade na terra e no Céu.
            Vítor buscava, mais do que nunca, a sua própria felicidade, mesmo quando agia de forma altruísta. Não era egoísta, mas sincero consigo mesmo.


Ajudando a se ajudar


Não há caminho no mundo isento de pedras, mas há pedras que não precisavam estar no caminho, se estão, alguém que nele passou antes de nós, as colocou, mas, nem sempre, intencionalmente.

            Vítor não queria se envolver exageradamente naquele novo trabalho de gratuidade e fraternidade, mas a ele foi atraído cada vez mais. A reciprocidade era inigualável. Aqueles aos quais se juntou, possuíam histórias semelhantes à sua. Não formavam uma instituição formalizada nos moldes governamentais, tinham medo de serem interceptados num agir que se opusesse aos grandes poderosos da sociedade. Diante disso, Vítor reconheceu formas de combate aos males sociais cujo resultado seria realmente louvável. Percebeu que muitos excluídos eram dos altos escalões sociais, o que significava algo mais que uma simples questão financeira. Um dia conversava sobre isso com um rapaz, psicólogo recém formado que trabalhava juntamente com os demais num apoio a diversos deficientes: excepcionais, cegos, mudos, surdos, aleijados... E lhe disse:
            - Daniel! O que você faz com os relatórios que produz durante as entrevistas com os beneficiados pelo nosso trabalho.
            - Levo para casa e reúno com minha esposa e uma amiga, ex-colega da faculdade. Estamos juntos escrevendo um livro que trata das diversas questões relacionadas ao psíquico dos diversos ramos da sociedade. Mas estou dedicando especial apoio aos ajudados pelo trabalho de nosso grupo; afinal de contas, estes não têm quase ninguém por eles. Precisamos ajudá-los, mas, antes, fazer com que cada pessoa no mundo reconheça a parcela de responsabilidade em todos os males sociais.
- Falando dessa forma, você parece um líder sindical.
- Deve ser a convivência. Jéssica, minha amiga de que falei há pouco, é filha de um empresário e se envolveu num movimento sindical. Evidentemente foi expulsa de casa. Agora está morando num apartamento que comprou. Lá também, montou seu consultório de psicologia.
Aquelas últimas palavras fizeram o coração de Vítor bater forte. Era como se tivesse encontrado novamente aquela a quem, tempos atrás, dedicara grande parte de seus poemas. Pensou: “seria muita coincidência, afinal de contas ela decidiu mudar-se para outra cidade... estaria ela envolvida em movimentos populares, não, creio que não”. Vítor se distraiu e, por alguns minutos não respondia a nada que seu amigo lhe perguntava até que, estralando os dedos, Daniel chamou-lhe à atenção falando:
- Conhece a Jéssica? Ficou estranho quando dela falei!
- Não, não sei se estamos falando da mesma pessoa.
- É fácil descobrir. Como ela é?
Vítor tentou de todas as formas dissuadi-lo a não prosseguir naquele assunto, mas, seu colega, usando dos estratagemas de seu curso, fez de tudo o que pôde e acabou convencendo-o.
- A Jéssica que conheci há alguns anos é filha de um gerente de uma multinacional que estava prestes a se aposentar. Não é alta, seus olhos são castanhos, seus cabelos são compridos e...
- Talvez estejamos falando da mesma pessoa, afinal de contas tudo muda neste mundo. Mas, minha colega Jéssica, além do que já lhe disse, tem os cabelos loiros e curtos...
- Definitivamente não estamos falando da mesma pessoa. Jéssica nunca cortaria seus cabelos, orgulhosamente exibia-os como quem exibe um troféu, além do mais, nunca se envolveria em movimentos sindicais...
Aquela conversa durou somente mais alguns minutos, pois, já era tarde e, no outro dia, Vítor faria uma visita juntamente com uma freira a dois lugares para os quais, olhares preconceituosos se voltavam com asco: um meretrício e uma prisão. Despediu-se de seu amigo e foi-se embora. Não mais se perguntou onde estaria aquela que lhe retornara à lembrança naquele dia. Afinal de contas, que dúvidas poderia o simples pensar eliminar?


Fugaz como o amor


Não existe no mundo nada que seja completo, isso é o que dá a todos a alegria de sempre buscar. O que é bom sempre pode ser melhor, o que é ruim sempre pode ser melhor; ‘piorar’ é um verbo sem conjugação.

            Vítor sonhou naquela noite que estava numa cadeia a gritar pedindo água. Inesperadamente, surgiu dentro de sua cela uma mulher vestida com roupas de prostituta, mas cuja beleza parecia intocável. Sabia que não poderia se mexer e nada falou. Vagarosamente ela entornou um cantil de água que trazia e, no chão, formou-se a figura de um mapa. Ela lhe disse: “Nunca encontrarás consigo mesmo sem percorrer as terras de seu eu. Os mapas de seu mundo são os fatos. Leia nos sinais que lhe apresento todos os dias o caminho a ser seguido; mas lembre-se nunca caminhe sozinho”.
            Quando acordou, Vítor se lembrava nitidamente de todas as palavras ditas por aquela mulher de seu sonho, mas não sabia o que elas significavam. Quando rememorou as grades da prisão, lembrou-se dos personagens dos sonhos de outrora: ele sob o cognome de Mancara e seu bando. “O que significavam aqueles sonhos?”. “Seriam a previsão da vida ativa e transformadora em favor dos marginalizados? Mas se não eram, que diferença isso faria?”. Foi assim que descobriu o significado das palavras marcantes do sonho daquela noite: não poderia perder tempo em pensar estaticamente, pois os projetos não têm sentido se não forem concretizados, mas diante do primeiro passo de concretização já são dotados de tal sentido. Era como se dissesse: você está no caminho certo, siga em frente sem se preocupar, tenha um horizonte em sua mira e descobrirá que rumo tomar. O barco de sua vida, agora navegaria sobre as águas de um rio calmo e silencioso em direção ao oceano da realização.
            Naquele dia, como era de se esperar, passou por muitas experiências emocionantes. Descobriu que, apesar de defender idéias liberais, possuía a sua dose de preconceito. Isto ficou mais claro para ele diante de dois diálogos; um no meretrício: “Já sei o que vocês vêm falar: que eu tenho que entregar meu coração pra Deus e que minha vida vai mudar. Mas, saibam que não tenho por quê fazer isso. Meu pai é rico e se estou aqui é porque quero viver minhas aventuras. Há aqui mulheres que têm que se entregar pelo dinheiro, mas eu, somente quero a minha liberdade para vingar-me daqueles que se achavam donos de minha vida!”; e o outro na prisão: “Você não passou, nem mesmo pela metade do que eu passei. Quando eu sair daqui, vou infiltrar bombas por toda a cidade. Todos vão pagar pelo que fizeram a mim!”.
            Em geral, todas as prostitutas eram atenciosas e choravam amargamente a sua condição. O mesmo acontecia aos presos que prometiam mudar de vida, caso saíssem dali. Aqueles dois, porém, eram pessoas rudes e não se mostravam nem um pouco interessados em qualquer conselho que lhes fosse dado. Achavam-se os donos de seus destinos. Isso mostrou a Vítor, que nada no mundo é simplesmente o que aparenta aos nossos olhos. Quem poderia realmente descobrir o que ia escondido nas atitudes daquelas pessoas? Quem poderia ajudá-los?
            No final da tarde, encontrou-se novamente com Daniel e, com ele conversou longas horas sobre as visitas realizadas naquele dia. Escutando atentamente, Daniel anotava tudo e, com um forte suspiro, disse:
            - Acabo de escrever o meu livro.
            Vítor queria fazer inúmeras perguntas a respeito de seu livro, mas não o fez. Preferia saborear a novidade que poderia trazer-lhe aquele a quem confiou muitas de suas dúvidas. Assustou-se quando, repentinamente, Daniel falou:
            - Mudando de assunto... Vítor, você nunca sai de casa? Só envolve nestes trabalhos?
            - Na verdade sim. Além de minha profissão a minha única ocupação é o “Projeto”.
            - Mas não tem namorada ou alguém com quem vá fazer algo diferente durante os finais de semana?
            - Não! Quem precisa disso para ser feliz?
            - Não precisa iniciar suas elucubrações filosóficas. Só quero saber, porque não tem namorada! Se é por medo de enfrentar uma nova responsabilidade nesta área ou se é porque não encontrou a pessoa certa.
            - Fico com a segunda.
            - Foi o que eu pensei. Mas como vai encontrar alguém se não sai senão a trabalho. Lembre-se ninguém vai atrás de você, ninguém tem estrela na testa. Mas se espera por alguém, me diga como que o ajudarei.
            Vítor sentiu-se incomodado com aquelas interrogações. Aquele se tornara um de seus melhores amigos havia muito pouco tempo e já começava a opinar sobre sua vida. Mas lembrou-se do sonho da noite anterior e, levantando-se, balançava as mãos ao ar como um poeta ao recitar um soneto a um grande público:
            - Quero uma mulher que seja sorridente, mas que seu sorriso seja sincero; quero uma mulher que seja sincera, mas que a sua sinceridade seja humilde; quero uma mulher que seja humilde, mas que sua humildade seja sublime; quero uma mulher que seja sublime, mas que na sua nobreza seja carinhosa; quero uma mulher que seja carinhosa, mas que seu carinho seja sinônimo de liberdade!
            Batendo palmas, Daniel se levantou e disse:
            - Bravo! Bravo! Mas sonhador, seria possível imaginar algo de acordo com a realidade?
            - Escute o que agora eu lhe digo. As coisas magnânimas da vida acontecem quando menos esperamos, mas nunca tarde demais se as soubermos aproveitar.
            Vítor falava como quem tem convicção no que diz e, com um sorriso aberto, despediu-se de Daniel. Este sentiu uma sensação que há muito não experimentava. Queria analisar as atitudes de Vítor, mas não sabia explicar o que agora sentia. Uma força inexplicável partira das palavras de Vitor. Como poderia um jovem solitário emanar tanta alegria? Mais adiante, Vítor caminhava lentamente, porém, agora se sentia vazio como um jarro que derramou toda a sua água para dar vida a uma flor. Mas, porque aquela sensação alojou-se em Vítor? De qualquer forma, achava ter cumprido a missão daquele dia.


Poder do amor


O hoje nos pertence não deixemos que ele se torne ontem para chorar por ele amanhã.

            Quando lemos ou escutamos um desenrolar de fatos, sentimo-nos senhores do universo. Uma história sempre é concluída com a realização de todas as procuras de quem a tem vivido, mas isso aos olhos de quem não a vive. Lamento informar, que o futuro é imprevisível e que não se pode iludir com a vida. Somos responsáveis pelo nosso destino, em conjunto, isto é, ninguém é capaz de determinar as suas realizações, isolado dos demais seres. A harmonia está na multiplicidade. Em outras palavras, a nossa liberdade é condicionada. Eis o paradoxo da existência. Estamos sozinhos no mundo, todavia nada podemos sozinhos.
Vítor, durante muito tempo, envolveu-se em combates contra as divisões geradas pelos homens. Não queria um lugar de destaque, mas ajudando aos outros, acabou ajudando a si. Não dedicava todo o seu tempo em benefício dos outros. Na verdade, a maior parte do tempo que lhe sobrava utilizava escrevendo suas memórias.
Muito poderia relatar sobre Vítor, mas o que tenho são lembranças de alguém que aqui esteve e deixou a sua marca. Quando foi visto pela última vez, estava partindo com sua esposa para um trabalho voluntário no sertão nordestino. Vítor acabara de se formar em medicina e pretendia pôr-se a serviço dos flagelados da seca.
O futuro é imprevisível, mas isso não lhe confere a peculiaridade do terror. Se os infortúnios são imprevisíveis, o que se diria dos fatos alvissareiros? Todos sabemos que não há tristeza, somente os momentos tristes, mas insistimos em supervalorizar estes a aqueles. Vítor percebeu isso depois de muito tempo, mas não tarde. Agora sabia o que era amar, agora experimentava a liberdade. Juntou-se a uma mulher que também o aprendera com a vida e juntos deram as suas forças numa entrega de si mesmos àqueles que não sabiam o que era viver, àqueles que eram o sentido para suas existências sedentas de justiça.
Imagino que você esteja se perguntando quem tocou o coração de Vitor com o fogo do amor. Imagino que você já imagina, mas adianto-lhe que não gosto de finais felizes, aliás, não acredito que a felicidade seja finita. O final é triste, simplesmente por ser um final. A alegria não pode ser colocada sob os fatores paradigmáticos do tempo e do espaço. Por isso, o que direi de Vítor? O que ele viveu ou o que ele sentiu? Direi que entregou sua vida pelos que amava com um amor ágape. Direi que entregou a sua vida a uma causa, à causa da liberdade. Sabia que se alcançasse a felicidade perderia o sentido para existência, se soubesse qual é, perderia a vontade de buscá-lo, se o alcançasse sem esforço não o teria por algo tão valioso. Foi isso o que fez com que Vítor amasse Jéssica de maneira infinita desde o primeiro momento em que a viu. Acredito que você não está surpreso com esse desfecho! Não é meu interesse surpreendê-lo, mas sim, mostrar que na vida tudo é regido pela lei dos ciclos: a matéria se transforma, o tempo traz o passado que já é parte do presente, os planetas giram ao redor do sol, a lua gira ao redor da terra, a vida gira ao redor dos projetos... Muitos desvios os rios de suas almas tiveram, muitos leitos estreitos os fizeram transbordar, mas, agora, juntos no oceano da plenitude, podiam gozar da grande vida tranqüila que lhes era reservada. Entretanto, poder nem sem sempre é querer, tranqüilidade não é sinônimo de felicidade. Juntos pretendiam mais, juntos alcançaram mais e muito alcançariam se não fossem interceptados pelo destino.
Quando se aproximava o natal Vítor e Jéssica comemoravam, juntamente com vários pequenos agricultores, um assentamento de terras conquistado mediante reivindicações pela reforma agrária. Sabiam que agora começaria a mais árdua luta, mas sentiam-se felizes. Não possuíam muito se olharmos com os olhos humanos, mas possuíam tudo o que alguém possa querer na vida, se olharmos com olhos divinos. Ao voltar para casa, um dos filhos de um antigo latifundiário, ex-proprietário das terras agora divididas, veio ao encontro deles e apontou-lhes um revólver, mas não atirou. Mandou que implorassem a salvação dos céus, pois seus minutos na terra eram contados. Chamando um dos capangas deu-lhe ordem para que atirasse. Covardia igual, Vítor nunca presenciara em toda a sua vida. Quando viu apontar a arma para Jéssica pulou em sua frente na tentativa de salvá-la.
Até hoje, quem passa naquela rua e vê duas cruzes belamente ornadas diz com tristeza e determinação: aqui jaz um homem e uma mulher que misturaram seu sangue para fecundar a terra de nossa libertação.
            E o amor eternizou suas buscas.

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