Prólogo
Geralmente, quando começam
a ler um livro, as pessoas tendem a julgá-lo segundo a visão do mundo
capitalista do “tempo é dinheiro”. Procuram fórmulas mágicas que lhes dêem
solução para seu vazio interior, assim como um enfermo que procura um remédio.
Caso a leitura não corresponda às suas expectativas ou caso não compartilhem da
mesma idéia do autor ficam apáticas. Quando isso ocorre, muitos abandonam a
leitura por julgá-la chata e tediosa, não conseguem suportar o desafio assumido
no princípio. Na vida as pessoas tendem a fazer o mesmo: mal decidem algo,
refutam o que decidiram e voltam a ponto de partida. É claro que todos são
livres para decidir entre continuar o desafio ou relutar em fazê-lo. No
entanto, ficarão a vida toda como pessoas que fraquejaram e, depois que o
desafio não mais existir, terão saudades do mesmo e desejarão ardentemente
voltar no tempo e agir de outra maneira.
Liberdade ou solidão é uma
narrativa onisciente de um jovem que busca sentido para a sua vida. Quem nunca
se perguntou para o sentido da existência? É a primeira pergunta que se faz
quando se toma consciência de nossa condição humana. O jovem nessa busca, com
sua rebeldia, e muitas vezes diante de moldes alienantes, dá sinônimos ao que
pensa ser a liberdade e, no entanto, de todos os períodos da vida, é o que mais
se sente sozinho. Mas é bom lembrar que se sentir sozinho não implica
necessariamente em estar sozinho.
É preciso estar atento aos
seguintes fatos: A modernidade está fazendo com que o ser humano perca a sua
capacidade de admiração. O imediatismo faz com que ele deixe de viver a vida
como um processo e, o hedonismo faz com que ele, em sua ânsia de prazer, deixe
de viver a alegria presente nas pequenas coisas.
Viver é aprender a viver,
sonhar é aprender a buscar, sofrer é aprender a contornar os obstáculos e
chegar é sempre ter a coragem de partir.
Lembrança persistente
Se não somos sujeitos ao destino, eis a
comprovação de nossa liberdade; se, do contrário, a ele somos sujeitos, nele
encontramos o rumo para nossas vidas sedentas de sentido.
Sempre fui o último dos
primeiros, regozijo-me por não ter sido o primeiro dos últimos. À minha frente,
as letras do livro de química estão embaçadas por estas palavras que fazem eco
em minha mente e não me deixam em paz enquanto não as coloco neste papel. Não
sei nem por quê me ponho a escrever, afinal de contas, qual é a semelhança
disto com Criometria?
Na verdade, enquanto leio,
o que me inquieta é a lembrança de uma pessoa que insiste em ditar fatos que
cogito. Já que cogitar é existir, darei provas de minha existência ao falar da
existência desta pessoa...
Vítor já estava se
acostumando com sua melhor amiga: a solidão. Trabalhava, estudava, sonhava...
Buscava no mundo sentido para a sua existência, existência lograda por vários
fatos de sua vida. Sentia-se como o
centro do mundo, o centro de todas as atenções. Seu coração não deixava o seu
corpo descansar, suas reflexões a respeito do que as pessoas pensavam dele o
deixavam numa angústia recôndita que se manifestava em todos os momentos nos
quais se encontrava sozinho no jardim ou no quarto antes de dormir. Tinha ânsia
pela liberdade que buscava paulatinamente em vários momentos de sua vida ao
introjetar sentimentos de solidão e independência diante das pessoas. O preço
de sua liberdade parecia solidão, no entanto, sempre que se angustiava com a
mesma, se dirigia a várias alternativas de sociabilidade: “ninguém é uma ilha”.
Buscava nas pessoas, nas torcidas de jogos de futebol, nos clubes, nas festas,
na música escutada ao último volume, em sua guitarra e nos momentos de
religiosidade, algo que pudesse preencher seu vazio interior, alguma emoção que
pudesse dá-lo o sentido para a vida. Seu ego não tinha alegria e nem tristeza,
somente vazio. Tentava buscar na razão, algo que pudesse convergir sua vida.
Como no mundo estamos
sujeitos ao contínuo vir a ser, a vida de Vítor passaria por mudanças que mais
tarde demonstraram a ele que tudo converge para a realização. Mas como não
podemos erguer uma casa a não ser do chão, ou chegar ao último degrau a não ser
pelo primeiro, trilhemos os degraus de sua preciosa existência.
Sistema da verdade vital
A primeira forma de conhecer uma estrela é a sua
luz, nunca se poderá conhecer as pessoas a não ser por suas atitudes.
Um dia, sozinho no jardim,
Vítor parecia sonhar. Sua mente elevou-se às alturas. Este êxtase durou horas.
À noite, contemplando o céu, viu uma estrela solitária, mas brilhante. Pensou
consigo. “Talvez esta luz que aqui chega seja de uma estrela que já não brilhe
mais. Assim deveriam ser as pessoas, fontes de luz que se irradia mesmo na
ausência”. Movido por um ímpeto de inspiração correu para dentro de seu quarto
e, tomando de uma caneta e um papel, escreveu até que chegasse a uma conclusão
aparentemente plausível:
Deparando-me com os vários
propósitos filosóficos, estabeleci dois pressupostos às vezes considerados
díspares e outras vezes considerados imanentes em um único ser: a consciência e
a emoção. Tais elucubrações foram feitas no intuito da busca da verdade
universal que rege a vida do Ser Humano.
Primeiro analisei a
diferença de intensidade dos sofrimentos do gênero humano de uma pessoa para
outra. Verifiquei que o mesmo ocorre com maior intensidade naquelas pessoas que
o desejam por um sentimento sado-masoquista que acompanha a todos os seres.
Muitas pessoas não têm nem mesmo a consciência desse fato, o que faz com que
elas, pela simples adesão à ciência de si mesmas, possam encontrar a solução
para a maior parte de seus problema. Este é o grau da consciência de que todo o
destino se concentra na mão de quem para ele se dirige.
Muitos acontecimentos
encadeiam-se contrariamente à vontade do ser humano, no entanto, o que
permanecem são somente os reflexos destes acontecimentos que fazem com que o
Ser tenha atitudes de acordo com o seu grau de consciência. Se a pessoa se
encontra apática em relação ao mundo, qualquer acontecimento inesperado, por
menor que seja, pode causar um grande descontrole emocional, já que ela não
está imunizada contra ele. Portanto, o sofrimento não pode ser universalizado
como tal, na mesma intensidade e com as mesmas atribuições para todas as
pessoas. Ele existe, mas pode ser deletado pela consciência ou apenas minguado.
Lembro, porém, que poder, não significa ter vontade de, ou ter necessidade de,
pois isto varia de indivíduo para indivíduo. Na verdade, a emoção torna-se
necessária na vida dos seres, pois, para experimentar emoções alegres, é
preciso ter como referência as emoções tristes. É exatamente por este fato que
muitas pessoas só se dão conta de que muitos sofrimentos são minúsculos quando
se deparam com um sofrimento de maiores graus. Daí é que se originam os vários
sofrimentos causados pela lembrança de uma vida onde muitos dizem a famosa
exclamação: “eu era feliz e não sabia!”.
Deve-se tomar precaução,
porém, contra o fato de que qualquer emoção (boa ou má) não turve a razão. Isto
acarretará maiores descontroles para a vida do indivíduo. Neste sentido, a
emoção e a consciência revezam-se como o dia e a noite.
Intrínseca à consciência
temos a vontade que vai propiciar ao indivíduo o sentido da existência, já que
o mesmo, por causa da consciência, pode ser perdido ao se descobrir as inúmeras
futilidades às quais o indivíduo estava atribuindo um inestimável valor. A
vontade, imbuída da esperança, irá fazê-lo escolher um dos vários caminhos que
podem levá-lo à realização.
A liberdade aqui, não
consiste em escolher todos os caminhos possíveis, mas sim, dentre os vários
caminhos, escolher o melhor. Assim, escolhendo o caminho mais eficaz, o homem
entrega-se a ele integralmente sem restrições ou indecisões que poderiam fazer
com que ele não se realizasse plenamente. Todavia, de nada adianta conhecer,
escolher e não agir. É preciso ter coragem para assumir este caminho. Esta
coragem fará que ele aja sem o receio de ofuscar a visão com a claridade da
verdade, sem o demasiado valor atribuído às renúncias que fará.
O amor neste Sistema é o
valor supremo, é o horizonte sempre visto e sempre buscado, é o ponto de
partida e o destino para o qual tendem todas as ações.
Desse modo, o Sistema da
Verdade Vital, também pode ser chamado de Sistema Vital da Verdade, pois, da
mesma maneira que a vida só terá sentido quando se tiver uma verdade-guia, esta
verdade somente terá sentido se for utilizada para a vida, verdade e vida estão
em dialética. Sua composição é feita de três atitudes intrinsecamente ligadas:
Consciência, Vontade e Coragem; e de três valores regentes destas atitudes: o
Amor, a Esperança e a Liberdade.
Sensação desconexa
O passado aos olhos do presente é como o sol,
cuja beleza é extraordinária, mas dificilmente pode ser contemplada.
Vítor achava que todo
sofrimento só teria sua intensidade realmente cognitiva se a pessoa o
permitisse. Mas a si suas teorias não serviram de maneira eficaz. Abriu um
livro no qual dizia: “médico cura a ti mesmo”. Estas palavras ressoavam em sua
mente como alguém a lhe dizer que outro regia sua vida. Vítor voltou à sua teoria
falando com seus botões: “Sou dono do que sinto”. Na verdade queria sofrer; sua
vontade de viver emoções fortes e sua ânsia pelo futuro davam a ele um prazer
inefável.
Um dia fez uma viagem à
sua terra natal. Lá reviu velhos amigos e parentes. Emotivamente tudo parecia
perfeito, todos lembravam o passado com os olhos do presente. Lembrar o passado
não nos deixa tristes enquanto o fazemos; este, por pior que tenha sido, sempre
nos dá uma sensação de fortaleza. Vítor se sentia orgulhoso por haver passado
por tantas vicissitudes e em ter superado os seus momentos difíceis. Mas há
acontecimentos que não nos tornam melhores. Ao voltar, Vítor foi tomado de um
sentimento de nostalgia; lembrava das pessoas que tinha, sem intenção, magoado.
Ao rever estas pessoas percebeu que nada tinha ficado da mágoa que o
martirizara por anos; no entanto, a lembrança de seu erro, insistia em macular
os momentos felizes que revivera. Queria voltar ao passado e agir de outra
maneira (quem não o deseja), mas o passado não existe, apenas insiste.
Ao voltar à sua casa e à
rotina diária, já estava começando a voltar àquele estado de vazio no qual se
recolhia. Ao passar próximo a um amigo, uma angústia tomou conta de seu ser.
Aquele amigo de tantas horas não o cumprimentara. Estaria magoado com ele? Não
o tinha visto? Decidiu por fim àquela amizade? Ofendemos as pessoas sem este
propósito, isto fazia com que Vítor acreditasse na primeira das hipóteses.
“Médico cura a ti mesmo”. Começou então a imaginar o que as pessoas pensavam
dele, pois se soubesse qual seria a reação das pessoas diante de qualquer
palavra ou atitude sua, poderia falar e agir com segurança. Nem mesmo os seus
escritos o aproximavam mais das pessoas, pois não desejava ser refutado no que
dizia, apesar de conhecer a ineficácia de suas teorias na prática.
- Interessante na teoria,
- dizia um amigo, numa mesa de bar, após Vítor ler em voz alta para seus
colegas do ensino médio, o “Sistema da Verdade Vital” - mas difícil e quase
impossível na prática.
- Adalberto, como pode
dizer ser quase impossível algo que em nem propus? Não coloco propostas para
uma vida plena, só falo, como ela seria se...
- Não se engane Vítor,
você coloca uma proposta sim, e o que é pior, muitas vezes se confunde ao
analisar as atitudes humanas. Veja só: para eu me sentir feliz tenho como
referência a tristeza? Você se esqueceu de um detalhe, não é a presença do
sofrimento que origina em sua ausência a alegria, mas a alegria em si mesma. Os
seres valorizam a ausência, é por isso que, ansiosos e saudosos, não conseguem
viver o presente intensamente.
- Tudo bem, aceito a
discordância, realmente proponho atitudes a serem tomadas, mas o que poderia
confirmar a ineficácia de tais atitudes?
- Não coloque palavras em
minha boca, eu não falei que as atitudes propostas são ineficazes para uma vida
melhor, só mencionei a confusão que você fez ao analisar o homem de forma
behaviorista. Na verdade, sou empirista, o que você propõe é algo que ainda não
possui comprovação, por isso, ainda não é plausível.
Estavam no bar e todos
contemplavam a eloqüência de Adalberto ao contradizer o que Vítor falava em
êxtase. Nenhum dos outros entrou na discussão, preferiram ser expectadores. Os
três tinham suas próprias opiniões, mas se reduziam ao movimento da cabeça
afirmando, o à sua inércia discordando; esta última atitude foi observada com
mais freqüência enquanto Vítor falava. Ao reparar nisso, Vítor sentiu-se como
uma ave que leva um tiro e cai no chão sofrendo, anteriormente à queda, a dor
que punge por causa do tiro. A formatura
se realizaria em três dias e decidiram não desfazer aquele círculo de amigos,
porém este, naquele dia, perdeu um componente por causa de seu orgulho ferido.
Somos humanos e se não
aceitamos nossas limitações, nunca poderemos seguir adiante sem ter medo de ser
felizes. Vítor, por não saber disso, isolou-se das pessoas. Queria conhecer a
si mesmo, mas pensava que a solidão era a única maneira de fazê-lo. Fisicamente
estava diante das pessoas, mas esquivava-se quando o assunto era a sua pessoa.
Decidiu nunca mais dizer aos outros o que realmente sentia; o que só foi
possível por pouco tempo, já que os sentimentos fazem do corpo um turbilhão
como a água o faz ao ferver dentro de uma panela de pressão. Precisava liberar
suas emoções de alguma forma...”Médico cura a ti mesmo”. Imaginava-se numa vida
totalmente desregrada, sem nada que o impedisse de ser livre, sem sofrer as
conseqüências dessa liberdade. Seu conceito de liberdade ultrapassava todas as
teorias que insistem em afirmar a Liberdade Humana. Seu conflito interior
juntado às constantes leituras deu origem a várias reflexões que se alternavam
em momentos de lucidez, de loucura ou êxtases. Escrevia, não sabia para quem
nem para que, mas escrevia. Brincava com as palavras e teorias dos grandes
filósofos da antiguidade e tentava encontrar um caminho próprio, o verdadeiro
caminho para a sua única meta: a felicidade.
O tempo: incógnita de nosso existir
Silêncio e inércia: primeiros sinais da morte,
eis a razão para o pavor que estes insistem em injetar no ser humano.
Durante a formatura, Vítor
saiu fora de si, estava exultante com todas as festividades e homenagens que
sua turma, a mais promissora nos últimos dez anos, recebeu naquele dia. Em uma
celebração ecumênica lhe deram o certificado de conclusão do ensino médio,
contemplava-o como se contemplasse seu futuro; naquele momento, sua alegria
transformou-se em esmagadora angústia diante da incerteza do futuro a partir de
então.
Terminou satisfatoriamente
o segundo grau, mas não sabia o que fazer. Em outras ocasiões, aquelas férias
seriam aproveitadas integralmente na esperança de retornar no próximo semestre
aos estudos com a mesma tenacidade. Contudo, agora, não havia mais volta, era
preciso decidir. O que fazer? Quem não é livre anseia por ser, e quem o é,
enfrenta o dilema da existência na escolha do próprio destino. A ausência da
rotina, que o libertara das grades, deixou-o no meio do deserto no qual se viu
perdido. Seus escritos continuavam manifestando a certeza que desejava ter, a
visão daquilo que somente ele parecia enxergar...
Na modernidade, a dúvida
mais contundente talvez seja em relação ao fator tempo. O ser humano vive atrás
de tempo para fazer tanto e, no final das contas, acaba se perdendo no
emaranhado da vida, de rotinas, problemas e, o que é pior, de muito vazio
interior.
Parece que ninguém mais
sabe parar e descansar. É admirável depararmos muitas vezes com o exemplo de
muitas pessoas que, deixando a rotina fatigante, param para descansar debaixo
de uma árvore ou que se retiram em algum lugar de muito silêncio; atitude que
pode parecer estranha para o mundo de hoje, um mundo materialista (onde tempo é
dinheiro), de ação, de movimento (onde ficar parado é atrasar-se diante da
corrida capitalista), e do barulho (onde o silêncio é escasso e causa sensação
de desconforto).
Quando o ser humano pára
para um lazer é bombardeado por inúmeras alternativas que só lhe trazem barulho
e movimento. O jovem é a maior vítima desta realidade intrínseca ao modernismo.
Ao procurar o descanso ou a diversão, sai de si através de músicas que devem
ser escutadas em alto volume, de filmes e notícias que têm o toque sadista da
violência e da morte. Vive um outro mundo que parece semelhante ao seu, mas, se
comparado, lhe dá uma sensação de triunfo pelo mesmo fato de não estar vivendo
momentos tão dolorosos quanto os que estão sendo passados. Esquecem-se de sua
realidade por alguns minutos, para viver realidades afrontadoras e dizer:
“minha vida poderia ser pior!”.
Quando sobrevêm o silêncio
e o momento estático, juntamente, aparecem os sentimentos de insegurança diante
do futuro, a ansiedade por este futuro e, o deslocamento do presente certo para
o futuro incerto. O ser humano vive o
medo do silêncio, pois está acostumado ao movimento que não deixa que se
encontre consigo mesmo. Quando isso acontece, verifica quão vulnerável é e,
quanto caminho ainda está à espera de seus pés de peregrino, peregrino da vida.
“o caminho se faz ao caminhar”, é o que deve animá-lo a sempre parar,
descansar, levantar-se e prosseguir.
O ser humano se preocupa
tanto com o seu futuro que se esquece de viver o momento presente (isso,
supondo que este possua um espaço). Pinta um futuro multicor onde não há
tristeza, sofrimento, nem dor, mas, ao chegar ao momento esperado (o futuro que
se torna presente), cai numa decepção tal, que o faz exclamar, novamente e com
ironia: “dias melhores virão”. É certo que depois da chuva vem a bonança, mas a
preocupação com o futuro só o faz esquecer todos os dias, horas, minutos e
segundos de sua vida, de que vive para viver, não para planejar. O futuro é
algo a ser construído com o presente, mas como fazer isso se não se vive o
presente pensando no mesmo futuro? Com certeza a fantasia do pensamento é o que
torna a vida mais cheia de ansiedades. O ser humano se esquece de que o futuro
não existe e que não é ele que impulsiona a vida, mas sim a idéia que se tem
dele. Constrói uma casa de mármore com alicerce de barro porque nunca parou
para construir o alicerce com segurança. Preocupa-se tanto com o telhado da
casa (futuro) que se esquece de sua base (o presente).
Outro erro é refugiar-se
num passado de contradições, dúvidas e de momentos não vividos (já que estes
foram preenchidos por preocupações e formulações para o futuro). Deixa-se de
viver o momento presente novamente. Os questionamentos deixados para trás,
agora são válvulas de escape a uma sensação de inquietação, de morbidez e de
sentimento de culpa. Espera-se por algo, deixa-se de viver o momento presente e
a saudade se faz permanente.
Como vemos, o tempo e a
situação do homem neste são o que mais dirige o ser humano ao seu caos. Todo
sofrimento proveniente desse caos poderá tornar-se crescimento para uma
deleitosa realização pessoal se bem direcionado, mas, se não, poderá
mergulhá-lo em maiores sofrimentos e angústias. Oxalá o homem caminhe em
concordância com o tempo e com o amor, único alternativo para uma verdadeira
realização.
Dias de festa
Não há nada de novo no mundo para aquele que se
apega ao constante vir a ser da matéria, tudo é novo para aquele que acredita
no poder das emoções transformadoras.
Vítor sempre acreditou na
força do amor, mesmo sem saber como defini-lo. Se este era entrega, era preciso
descobrir a quem ou a que. Sabia que o amor possui forças incomensuráveis, no
entanto tinha medo de agir. Sua visão limitada da vida fazia com que ele
cerceasse as oportunidades que lhe apareciam. Sentia-se terrivelmente só, mas
se deleitava nesta solidão. Na verdade, aspirava à liberdade, mas desejava ter
uma marca estigmatizada no mundo. Conseguiu emprego numa escola da periferia
dando aulas no ensino primário e se orgulhava de dizer a todos a sua profissão.
Adiou, por um tempo, a angústia que o atormentava retornando à antiga rotina de
estudante. Assim que o ano terminou e a rotina se afastou novamente, voltou a
encontrar-se consigo mesmo no dilema de sua existência.
Enquanto todos se
preparavam para as comemorações de final de ano, Vítor foi tomado de uma
sensação inquietante. Dissimulou tão bem uma aparente alegria, que não deixou
que ninguém percebesse seu estado de espírito. Na verdade, não tinha nada lhe
desagradar, mas todas aquelas comemorações, pareciam-lhe sem sentido.
Silenciosamente, deixava a todos e, trancado em seu quarto, punha-se a
escrever:
21 de dezembro: é
interessante a tendência que temos em guardar tudo o que possuímos,
principalmente aqueles objetos que nos lembrem uma atividade exercida em algum
período especial de nossa vida. Este caderno em que escrevo, por exemplo,
recorda-me todo este ano de luta na licenciatura. Algumas páginas tomadas por
planejamentos de aulas recordam-me a reciprocidade do trabalho exercido, e
isso, é tudo o que me alegra. Sem pensar, acumularia pilhas de papéis pensando
na sua utilidade para o futuro. Talvez eles nunca seriam vistos novamente.
Talvez, outra pessoa os veria, porém não se deleitaria nem um pouco com eles,
como eu o faço nesse momento. Cada vez que olho para as coisas que me cercam,
vejo-as com outros olhos. Parece que já não é a mesma cama, mesma mesa, mesma
televisão, mesmo rádio...Parece que em minha volta, tudo se modifica a cada
segundo em que volto o olhar. O passado insiste em aparecer, o presente insiste
em ser tomado de lembranças e ansiedades e o futuro...o futuro? Este nunca
chega, sempre é esperado, mas nunca é vivenciado. O passado pode até mesmo ser
pior que o presente, mas é sempre mais valorizado que este.
Momentos de depressão
Nem tudo o que existe possui um sentido aparente;
há coisas que não é necessário ao ser humano conhecer para que passem a ter
sentido existir.
Por um ano investiu suas
forças na educação de crianças e adolescentes. Sentia-se feliz neste trabalho,
mas nunca deixou a impressão de que algo lhe faltava. O sofrimento humano,
muitas vezes, só aparece quando sentimos que algo que não é, poderia ter sido.
Desta forma, Vítor tinha atitudes que demonstravam certeza diante do caminho a
seguir, mas, interiormente, era perturbado por correntes em sentido contrário,
como um barco em um oceano em plena tempestade. É evidente, que possuía motivos
de sobra para festejar, mas não estava satisfeito consigo. Quem poderia
entender tal atitude?
Madrugada de 25 de
dezembro: é Natal. Todos festejam e eu, automaticamente, ponho-me a analisar as
atitudes humanas. Todos pensam saber o que querem. Todos pensam estar realmente
vivenciando um momento de emoção. Na verdade tudo é ilusão. Tudo o que
procuramos encontrar na aparente emoção vista nos acontecimentos vivenciados
por outros, é apenas o aumento de nossa mente que sempre busca aquilo que não
se tem. Quando pego no violão e toco várias músicas a respeito de minha
situação, quando pego na caneta e escrevo o que sinto, esvazio o meu ego e não
tenho mais nada a dizer. O que antes era o objetivo, já não tem importância
alguma. O que antes era o sentido para a existência tornou-se um poço de
recordações. Os homens fingem saber o que querem, mas, na verdade, ninguém sabe
sequer por quê se existe, a única certeza que se tem é que se existe. Porém, se
existir não tem sentido, nada do que almejo tem sentido. Talvez nunca ninguém
chegue a ler o que agora escrevo; o certo é que escrevo por escrever e o
sentido para escrever está neste mesmo ato. Deixar de viver procurando sentido
para este viver é o que faz com que fiquemos a vida inteira procurando porquês
para o que não há, ou nunca se encontrou sentido: a vida.
Momento de lucidez
Quando não se pode argumentar a ausência da
felicidade é que se percebe os momentos que realmente são importantes.
Há pessoas que quando se embriagam ficam mais pessimistas
que outrora. Outras quando se embriagam parecem ter certeza de todas as
decisões a serem tomadas. Há também as que agem totalmente diferente que o de
costume. Vítor, na tarde daquele dia de comemorações, parecia bem mais otimista
que à noite anterior. Não tomara nenhuma bebida alcoólica, mas parecia
inebriado de uma alegria vinda das frases que escutara naquele dia. Na Igreja,
nas ruas, tudo parecia mudado. Nem mesmo os mendigos que interceptavam seu
caminho em outros dias estavam presentes ao longo da estrada. Uma força
misteriosa punha na boca de todas as pessoas um sorriso cheio de esperança.
Pensou consigo: “de onde vinha o sentimento que me mergulhava na angústia na
noite passada? De onde vem este sentimento de felicidade que envolve os
corações neste dia?”. E registrou:
Tarde do dia 25 de
dezembro: se prestássemos atenção em cada um de nossos atos, passaríamos a vida
inteira em reflexões fúteis que não nos levariam a nada. Por exemplo: por que
comecei a escrever estas linhas há dias atrás? Na verdade, um ego vazio procura
preencher-se de alguma forma. Todos buscamos algo que nos infle o ego. Todos
julgamos os outros que, de alguma forma, parecem estar ilusoriamente
preenchidos. Não só julgamos como afirmamos ser apenas ilusão o que essas
pessoas pensam e sentem no exato momento de nossa percepção. Somos livres, mas
não sabemos o que é a liberdade; somos conscientes, mas insistimos em turvar
nossa razão; temos vontade, mas não temos coragem para assumir esta vontade;
esperamos por algo, mas insistimos em nos entregar ao egoísmo que busca a
felicidade sem o amor. A vida converge para a realização, mas nós insistimos em
torná-la mais sinuosa que as estradas ao longo de uma cordilheira. Insistimos
em viver a vida ou as emoções vividas por outros. É evidente que desejamos
exatamente aquilo que não temos, só animamos a agir quando não podemos mais
fugir. Com certeza, todos nós temos um pouco de “Maria vai com as outras”. É
imprescindível que vivamos nossa vida, que tenhamos iniciativas transformadoras
que partam de nós mesmos, que apliquemos a nossa liberdade, a nossa esperança e
o nosso amor à consciência que descobre nossa real vontade e, com coragem
inigualável, age.
De volta ao sentido
O acaso é a forma que a vida encontrou de trazer
ao ser humano possibilidades às suas atitudes, mas ai daquele que lhe outorgar
a chave de sua felicidade.
É verossímil como a
facilidade de estar num mar de vazio e solidão é tão incidente quanto o
aglomerado de preocupações que podem rodear a vida de uma pessoa, mesmo que
esta não corra atrás dos problemas. Quando a emoção e a razão se desequilibram,
o homem encontra-se desgovernado e sem sentido para a vida. Mas Vítor se sentia
feliz. Pressentia que algo de novo, viria trazer um novo ingrediente para a sua
vida rotineira. Acostumara a conviver com sua companheira de todos os tempos.
Não se estranhe! Já falei sobre ela outras vezes: a solidão.
Um dia, por ocasião do
aniversário da empresa na qual agora trabalhava, voltou mais cedo para casa,
tomou o violão e foi para a praça distrair-se naquela bela tarde. O sol
brilhava com intensidade, mas o calor não era sufocante. Um delicioso vento
acariciava a quem se dispusesse a sentar sob a sombra daquelas árvores. Eis o
maravilhoso cenário no qual iniciava mais uma história que marcaria sua vida.
Do violão saíam melodias
belíssimas, mas nunca ouvidas. Vítor tocava nas cordas, como um mago ao
pronunciar palavras mágicas. Cada nota penetrava em seus sentidos com
desenvoltura e formou uma imagem em seu pensamento, a bela imagem de uma mulher
que outras épocas tentou namorar. Sua lembrança persistia e Vítor percebeu que
estava novamente apaixonado por ela. “Mas como?” – pensou – “há anos que não a
vejo. Agora ela já deve estar terminando o primeiro período na faculdade de
Psicologia. Mesmo que ela quisesse voltar a essa possibilidade, poderia ter
receio de prejudicar seus estudos...”. Essas idéias não lhe enleavam o
espírito. Antes, o deixavam numa sensação de arrebatamento a um plano
supra-sensível por lembrar-se daquela que gostava, mesmo sabendo da
impossibilidade de tê-la ao seu lado.
O acaso sempre prega peças ao ser humano, mas
é necessário sempre tirar proveito delas para que a vida se torne mais
agradável. A magia daquela tarde não se manifestava somente pelos fenômenos da
natureza, manifestava-se pelos sons produzidos em seu violão e, mais ainda, no
que estava por acontecer. Viu que no banco de trás, sentara-se uma mulher
taciturna, todavia não se virou para ver quem era, sabia que era uma mulher
pelo perfume inebriante que exalava no ar. Continuou tirando notas do violão
que faziam virar-se para ele todos os que passavam e lhe dizerem com um
sorriso: “boa tarde!”.
Quando silenciou. Notou que já estava escurecendo, pois
já eram seis horas da tarde, então se virou para guardar o violão e seus olhos
não puderam acreditar no que estavam vendo: Jéssica estava no outro banco a
escutar todas as melodias produzidas por ele. E, mexendo nos cabelos, virou-se
e disse:
- Não pare. Já estava
quase chegando aos céus com esta melodia.
- Já é tarde e, além do
mais, não quero você longe de mim. Prefiro-a aqui na terra – Vítor estranhou a
si mesmo, parecia ter a resposta formulada para qualquer indagação de Jéssica,
apesar da surpresa de a estar vendo após tantos anos.
Jéssica, com um sorriso
forçado, disse com um tom de marasmo:
- Pelo menos alguém no
mundo não me quer mandar para o espaço!
Com essas palavras Vítor
sentiu nela uma sensação de vazio interior. Talvez ela estivesse se recuperando
de alguma mágoa ou ressentimento. Aproximando-se e sentando-se, perguntou
delicadamente:
- O que está acontecendo
com você? O que a aflige?
Jéssica, olhando sempre
para o chão, disparou a falar como se estivesse esperando que alguém
perguntasse por isso há anos.
-
Sinto que, de tanto buscar sentido para a vida, vivi sem sentido, não porque
esta não o tivesse, mas porque o seu sentido não pode ser encontrado fora da
vida. Para tudo buscava respostas racionais, para toda ação buscava sentido
plausível. Quando uma ação não correspondia a uma lógica aparentemente
racional, pensava ser uma ação fútil que me levaria ao mesmo ponto de partida,
apenas alargando o caminho a percorrer. Por tudo isso, várias vezes, tive
possibilidade de mandar embora a solidão, mas, por aderir à dicotomia entre a
razão e a emoção, não o fiz...
Vítor escutava atentamente a tudo e via nela o reflexo
das mesmas inquietações de seu íntimo e, voltando-se para sua amiga, por medo
de se arrepender como das outras vezes em que não agiu, atirou ao mar todos os
seus temores e disse procurando achar-lhe os olhos que ainda se fixavam numa
formiga do chão:
- Sinto o mesmo que você.
E, talvez, não me sentiria assim se você tivesse dito sim a uma proposta que
lhe fiz há algum tempo atrás. Portanto, se você se sente sozinha é porque você
mesma quer.
- Agora é diferente. Tudo
na vida tende a mudanças. Eu mesma, quando entrei na faculdade, notei que minha
vida estava se tornando muito rotineira e monótona. O entusiasmo do início foi
se apagando e agora vejo que realmente ainda falta alguma coisa em minha vida.
Não sei se você me entende!
- Nunca deixei de esperar
que esta ocasião surgisse em minha frente. Talvez, você me queira como a um
amigo em quem confiar as suas decisões, angústias e incertezas, mas não posso
deixar de dizer o que sinto. Se você disser que não, continuaremos amigos, mas,
se disser que sim...
Enquanto dizia essas
palavras, os olhos de Jéssica voltaram-se para a lua cheia – nenhuma outra
noite seria tão magnífica para aquele momento – e, interrompendo Vítor que
ainda falava disse:
- Claro que sim Vítor. Sei
o que sente, é o mesmo que sinto. É por isso que vim aqui. Não pude mais
resistir à vontade louca de estar ao seu lado!
Vítor não sabia o que
fazer. Sempre foi cheio de iniciativas no que se tratava do trabalho. Sempre
teve respostas para qualquer enigma que as pessoas lhe apresentassem, porém,
quando tinha que falar o que sentia ou agir de maneira que tivesse
reciprocidade em sua ação, cogitava os meios, fadava os caminhos e, só depois,
agia. Foi o que aconteceu após aquele sim. Mas, nessas horas, não se pode superestimar
a razão, é preciso deixar a emoção agir. Ela, demonstrando sua timidez, falava
sobre assuntos que nada de importante tinham para o momento. Vítor, olhando
para os seus olhos que fugiam e se aproximando de seus lábios, consumou o que
deveria ter feito bem antes. Nesta hora não se pode definir a sensação, já que
o intelecto parece ser guiado a um lugar supra-sensível onde os seres alados
não têm medo de perder as asas e despencar no abismo, um lugar onde a magia
transcendental é de poder incomensurável: era o amor dando sentido novo para
tudo. Qualquer outra definição seria mais tola ou mais brega que esta.
Vencidos pelo banal
Na vida tudo está sujeito à ordem da fugacidade,
não por causa efemeridade das situações, mas sim, porque almejamos à
eternidade.
Geralmente, quando fazemos um relato de algum
acontecimento, deixamos nossa emoção agir e falamos dos detalhes mais
insignificantes. Estes, quase sempre fizeram parte daquilo que se tornou a
realidade, mas um verniz místico faz com que transformemos uma simples casa em
um grande cenário de acontecimentos que por mais corriqueiros que fossem,
deixaram seu ferrete sobre a vida; um pobre jardim torna-se o mais suntuoso e
rico em espécies floríferas jamais visto em nenhum castelo de realeza
inigualável. É bom lembrar que o verniz protege nossa história, mas, muitas
vezes, esconde o real. Bom seria se, ao relembrar algum fato, os sentidos
estivessem aguçados tanto para os acontecimentos alegres quanto para os tristes.
Como todos estamos sujeitos às vicissitudes da vida,
Vítor não poderia prever o que estava por acontecer. No princípio, tudo era
maravilhoso. A curiosidade e o mistério eram os combustíveis para os diálogos
de Vítor e Jéssica. Por alguns meses, a distância um do outro era algo
extremamente penoso aos dois. Partilhavam tudo. Vítor falava de seu trabalho,
de suas conquistas e de sua insegurança devido ao corte de gastos na empresa.
Jéssica falava de suas aulas na faculdade, dos acontecimentos engraçados que lá
se passavam e de seus familiares. Parecia que formavam o perfeito par.
No entanto, com o passar
do tempo, surgiram o marasmo e as decepções provindas da rotina e das
desconfianças. Neste mundo, duas pessoas que se amam, deveriam tomar um manual
que ensinasse as atitudes devidas nas diversas circunstâncias do
relacionamento. As pedras atiradas pelo caminho, não foram obras de inimigos,
mas de amigos. Perguntaria você: “como amigos verdadeiros poderiam fazer mal a
duas pessoas que se amam”. Mas não se pode esquecer que as palavras possuem o
seu poder diversificado e conspícuo em cada ocasião em que são pronunciadas. Um
simples comentário pode gerar desconfianças, apesar da boa intenção do mesmo...
- Vítor, você não me disse
que iria para casa ontem quando daqui saiu?
- Sim Jéssica, mas quando
passei pela rua de Douglas, este me chamou para participar da confraternização
de aniversário de sua irmã e, não achei, nada demais parar um pouco. Além do
que, você não quis sair comigo ontem à noite.
- Ah! Então admite que foi
à festa de sua ex-namorada por vingança a mim?
- De forma alguma, você
sabe muito bem que ainda somos amigos apesar dos pesares.
- Não pode haver amizade
entre um homem e uma mulher, ainda mais, quando estes um dia disseram um ao
outro que se gostavam.
- Nunca dissemos isso. Meu
namoro com ela foi uma forma infantil que encontramos de afastar a solidão.
Você mesma sabe disso; por que desconfia de mim?
E assim passavam horas em
discussões fúteis que a nada levavam. Ambos se sentiam presos e, para Vítor que
colocava a liberdade como um dos patamares da realização, isto significava o
caos. Para ele, o amor levaria à liberdade, não à escravidão, logo, se eles não
se sentiam livres, na verdade – pensava ele – não se amavam.
Vítor desejava muito mais do que encontrar Jéssica nas
situações triviais do dia-a-dia. Queria viver momentos mais expressivos de
emoção, fantasiados pelo que ele imaginava ser realmente a alegria a dois ao
lado daquela com a qual imaginava que dividiria o restante de sua vida. Jéssica,
porém, acostumada ao cotidiano vulgar, presa em seu quarto a ler e a escutar
canções de sua situação, não apreciava esses momentos esperados e, além de
tudo, nunca acolhera mudanças. Quando Vítor, aproveitando as férias da
faculdade de Jéssica, a chamava para passear em algum lugar ou participar de
alguma festa, ela secamente lhe dizia:
- Eu não quero ir, se você
quiser, vá sozinho.
Vítor, tentando disfarçar
sua desilusão, falava dissimulando um romântico apaixonado:
- Sem você, nada tem
graça!
E ficavam os dois em
silêncio, sem nada dizer. O silêncio inquietava a ambos e, enquanto Vítor
observava Jéssica, notava a sua ansiedade e mecanicidade em olhar a todo o
momento o relógio. Era como se pensasse: “o tempo não passa!”. Sentindo-se
desprezado, Vítor deixava aquela casa mais só do que quando lá chegara.
É estranho como duas
atitudes antagônicas podem ser ao mesmo tempo nocivas para um relacionamento.
No princípio de suas dificuldades, a pedra no caminho era a desconfiança.
Quando se desconfia de algo, esta desconfiança pode ter duas faces: a do ciúme
possessivo na qual um se acha dono do outro e do ciúme mascarado na qual um
joga suas incertezas nos possíveis deslizes do outro. Em ambos, pelo menos,
Vítor pensava: ”Tenho algum valor para aquela que tem medo de me perder”. Mas,
quem ama verdadeiramente, não tem medo de perder a pessoa amada, já que o amor
é o sentimento que faz com que duas pessoas, por mais separadas fisicamente que
estejam, sintam-se unidas eternamente. Agora, Vítor começava a enxergar a
realidade “nua e crua”, como ela lhe aparecia. Se antes seus passos eram
motivos de seus desentendimentos, agora a dor da indiferença era a causa de seu
penar. Primeiro o ciúme, depois a indiferença, pedras que juntadas a outras,
cada vez mais bloqueavam o caminho de Jéssica e Vítor.
É necessário, não deixar
de analisar ambas as realidades. Bem diz o ditado: “quando um não quer, dois
não brigam”. Se por um lado Vítor se sentia desprezado, por outro, Jéssica se
sentia um fantoche em suas mãos. Jéssica também era alvo das desconfianças de
Vítor. Sua beleza não o deixava em paz, pois, todas as vezes que saíam juntos,
olhares se voltavam para ela atraídos por um estranho encantamento. Este era o
motivo de seu determinismo em não sair acompanhada de Vítor. Quando ia à casa
de algum parente, ao chegar de lá, era bombardeada por inúmeras interrogações.
E, para completar, era obrigada a escutar todas as lamentações daquele que se
achava o centro das atenções. Já não podia dizer o que sentia sem mentir, já
não podia falar de seus amigos ou amigas sem ser alvo de desconfiança, já não
podia falar de seus estudos, pois estes não mais interessavam a Vítor. Ambos
atiraram pedras ao caminho, e, as atiradas por Vítor foram o orgulho e a
desconfiança.
Passavam os dias. Vítor
decidira arrastar aquela situação, pois acreditava que o tempo era o melhor
remédio para que as coisas se ajeitassem. Chegando à casa de Jéssica, como de
costume, encontrou-a saindo do banho. Ela não o viu, mas o perfume do banheiro
difundiu-se por toda a sala e seus cabelos e ombros ainda molhados
realçavam-lhe ainda mais a beleza. Saindo do quarto, com um vestido exuberante,
ela se dirigiu à porta, para onde Vítor acompanhou-a. Parada e encostada no
marco da porta, fixou os olhos na lua nova entre as nuvens e disse:
- Vou sair com minhas
amigas.
E Vítor, fingindo não
entender, disse:
- E aonde vamos?
- Nós vamos a uma festa.
Uma amiga me deu um convite! – e frisou – vou com minhas amigas.
Vítor já havia decidido não
mais criar intrigas. Entendeu perfeitamente que ela desejava ir sozinha à
festa, mas, apesar do ciúme a aflorar, não disse nada; apenas, curvou-se para
dá-la um beijo e sentir o maravilhoso perfume que exalava do corpo de Jéssica.
A volúpia que se inflamou em seu corpo o fez esquecer de todos os
desentendimentos dos últimos dias. Ela, desviando o olhar e os lábios, disse
friamente:
- Preciso de um tempo para
pensar.
Vítor caiu em si e
percebeu que toda aquela abstração de minutos atrás não correspondia à
realidade. Tentou descobrir o motivo de tal decisão fazendo a ela várias
perguntas para as quais pedia respostas com o olhar fixo no seu. Nada o
convenceu da separação. Sabia que pedir um tempo para pensar é uma maneira
delicada e desonesta de dizer adeus. Vítor saiu sem olhar para trás, sem
vontade chorar, não desejava fazer nada.
No outro dia, as
conseqüências eram-lhe visíveis. Ao sair para o trabalho, ia vagarosamente.
Atravessando uma avenida, nem mesmo reparou que o sinal vermelho para pedestres
piscava, preste a abrir para os carros. Quando estava no meio da avenida, o
sinal de trânsito abriu e uma moto interceptou seu caminho. Vários carros iam e
vinham sem parar. Perplexo, não conseguia sair do meio da avenida até que um
motorista, percebendo o seu perigo, parou o carro a fim de dar-lhe passagem.
Atitude exaustiva para este que teve seu carro amassado por uma caminhonete que
vinha logo atrás. Continuando o caminho, passou no corredor de um mercado de
discos e escutou uma música que lhe fez lembrar dos acontecimentos dos últimos
dias. As lembranças insistiam em atormentar-lhe o espírito. Seus olhos, ainda
sob ação da noite mal dormida, viam Jéssica em todas as mulheres que passavam.
Na verdade, ele tinha a esperança de encontrá-la em alguma rua na qual entrasse
lhe dizendo que havia se arrependido de “pedir um tempo”. Como um autômato,
Vítor pôs-se a correr. Tinha vontade de aplicar murros a paredes e liberar toda
aquela amargura, mas sabia que mesmo se o fizesse nada mudaria. Sentiu-se fraco
e sem coragem para enfrentar mais um dia de trabalho e ligou avisado que não
compareceria por motivo de saúde. Voltou para casa. Uma apatia o acompanhou
durante todo aquele dia. A vida continuava a lhe pregar peças e, em meio
àquelas sensações, ria sem motivo. Sentindo apetite depois deste longo dia
resolveu comer algo. Comia como um selvagem, pegava os pedaços de carne com as
mãos e rasgava-os com os dentes. Tamanha era a distração que, juntamente com o
último pedaço de carne, mordeu o dedo indicador. Riu como um louco e, sem
qualquer motivo, rompeu em prantos. Tudo isso era a prova de que, novamente, um
vazio se instalara em seu ser e a esperança de afastar a solidão esvaiu-se como
uma gota d’água num deserto.
Ter vontade de fazer tudo
E não conseguir fazer
nada,
Eis a sensação que não
refuto
Após o desprezo de minha
namorada.
Tentativa frustrada
Feliz aquele que, mesmo passando por momentos difíceis, sabe mostrar aos
outros que a felicidade é possível; tanto o peregrino quanto o caminho chegam
ao destino.
Vítor
voltou à mesma vida de antes. Quase nada do que aconteceu nos últimos meses
correspondeu às suas expectativas. Resolveu não mais lamentar pela sua solidão.
Pelo menos algum amadurecimento aqueles acontecimentos lhe trouxeram. Percebeu
que novamente deixara suas emoções turvarem a sua razão e atribuiu a elas o
amargor que agora sentia.
Apesar de quase sempre estar pensativo ou até mesmo
pessimista diante da vida, todos os que com ele conviviam procuravam-no, a fim
de resolverem seus problemas. Ele, sem nada dizer, escutava atentamente e,
somente depois, com um sorriso incessante, dizia algo que pudesse clarear o
caminho de quem o procurara. Sempre recebeu elogios por essa simples atitude e
nunca soube realmente porque nele depositavam tanta confiança. Talvez a solidão
estivesse moldando um ser desvencilhado de si mesmo e voltado para os outros.
Sabia que a falsa humildade, utilizada para arrancar elogios das pessoas, é
pior que o orgulho declarado; pelo menos este age. Mas nunca deixou que o
orgulho tomasse conta de si nessas ocasiões. Preferia agir sem argumentar em
nada poder ajudar, sabia que a simples escuta do outro é uma das maiores ajudas
que podemos dar a quem nos procura.
Quando alguém lhe perguntava sobre a fonte daquela
felicidade que dele se irradiava, respondia: “finjo que sou feliz e acabo
sendo”. Mas, o que não podia negar, é que a esperança nunca o deixou. Esperava
ardentemente por algo novo, mas não sabia o quê. Tinha reminiscências de uma
outra vida, totalmente diversa da que tinha verdadeiramente. Em sonhos
apareciam-lhe imagens de atitudes extravagantes, porém dotadas de grandes
emoções. Ao acordar, todas as lembranças se apagavam de sua mente. Esforçava-se
todo o dia para lembrar o sonho da noite anterior, mas nada conseguia. Por fim,
declarou todos os sonhos banais, forma que encontrou para não mais se ocupar em
constantes esforços mentais na tentativa de lembrá-los.
Durante o dia trabalhava numa multinacional, durante a
noite lecionava numa escola da periferia. Trabalhando desordenadamente começou
a construir a sua vida num projeto que parecia envolver mais alguém, só não
sabia quem. Comprou um lote e nele construiu uma pequena casa. Projetava todo o
seu desejo de consumo numa tentativa de preencher-lhe o vazio interior no qual
se encontrava. Comprou aos poucos os eletrodomésticos e móveis que iriam
equipar sua nova casa, comprou um carro e uma moto. Para quem busca uma
estabilidade financeira, aquela seria uma situação ideal para um homem que não
tinha mulher e nem filhos.
Trabalhava incessantemente e, dessa maneira, procurava
não cogitar sobre o sentido da vida ou sobre o destino para o qual tendem todas
as coisas... Enganou a si quando pensou que poderia enganar ao tempo. Sua falta
de sentido e a ausência de um horizonte no qual pudesse se mirar o deixavam
cada vez mais inseguro. Tinha receio de encarar novos desafios. Mas o tempo
instigava-o a agir e, para isso, contou com a colaboração de um amigo. Quem
poderia vencê-los? Nenhum ser humano, por mais determinado que seja, pode se
livrar das garras desses dois feiticeiros da vida: o Tempo e o Tédio.
Incógnita
Sonhar é descobrir que o pensamento tem o poder
de transformar o imutável.
Em um dia de feriado, Vítor saiu em seu carro sem saber
para onde. Queria simplesmente sair e embrenhou-se em caminhos jamais
imaginados por ele. Após algumas horas, entrou em uma estrada deserta. Esta
seguia longas distâncias sem se desviar para nenhum dos lados. De repente, uma
estranha sensação tomou conta de seu corpo, seu pensamento voava para lugares
que desconhecia, sua alma parecia estar acima de seu corpo a observá-lo e a
estrada já não parecia existir. Esqueceu-se do tempo e até mesmo da razão do
que fazia. Seu pé afundara no acelerador de modo que o carro voaria longas
distâncias, caso fosse dotado de asas. Seus olhos bebiam o crepúsculo com um
esplêndido deslumbramento até que se escureceram e em sua mente eram passados
fleches, como um filme mal acabado ou um sonho estranho de quem cochila diante
de uma televisão. Mas não podia compreender como isso aconteceu, aliás, nem
mesmo procurava fazê-lo. Aquela visão era maravilhosa, nunca poderia deixar de
contemplá-la. Seu corpo viajava pelo espaço como um espaço-nave. Rapidamente
viajou pelo universo passando por astros e planetas, desviando de asteróides
que vinham em sua direção, aproximou-se de Saturno e ultrapassou Plutão,
avistando gigantescas estrelas cujo tamanho muito superava o Sol. Dentro de
alguns instantes, estava sendo atraído para um buraco muito além da Via-láctea.
Era um buraco negro que sugava tudo ao redor. Tentou desviar-se do mesmo, mas
não pôde escapar. Sua vista escureceu de forma desoladora e tudo se apagou de
sua mente.
Vítor acordou em um lugar estranho. Parecia continuar a
sonhar, pois tentava mexer-se e não conseguia. Apesar de acordado, não
conseguia abrir os olhos. Era como se estes estivessem colados. Forçava-os
tentando abri-los e nada conseguia. Quando se acalmou. Acordou. Teria sonhado
que tinha acordado ou ainda estava dormindo? Não podia compreender o que estava
fazendo ali. Na verdade, não se lembrava de nada do que acontecera. Estava perdido, mas sabia o que fazer. Tomado
por uma sensação de segurança sentou-se na relva. Próximo dali, uma cigarra
cantava tão alto que parecia estourar-se. Uma forte neblina não deixava que
Vítor visse um metro à sua frente. Levantou-se e passou as mãos pelo corpo na
tentativa de enxugá-lo um pouco.
Seguiu a estrada logo em frente. Conhecia aquele lugar e,
agora, já sabia aonde iria. Caminhou por uma hora continuamente e chegou a um
barraco onde era esperado. Era um barraco pequeno, possuía somente um cômodo de
seis metros quadrados. Era feito de pinhos tirados dos caixotes encontrados nos
passeios da cidade, e de barbantes. Não resistia à menor chuva que houvesse,
por isso, ele era sempre reconstruído num trabalho exaustivo de catar caixotes
dos passeios próximos aos grandes mercados de frutas.
Mas, o que estaria fazendo
ali? Quem eram aquelas pessoas? Por que o esperavam tão ansiosos naquele local
de condições subumanas? Vítor não tinha dúvidas, sabia exatamente a resposta
para todas essas perguntas.
Vida desregrada
Não se pode se esquivar da realidade da sociedade
simplesmente argumentando que todos têm a vida que querem; quem, sendo livre,
não optaria pela paz?
Vítor, olhando para os companheiros, percebeu a
inquietação de seus amigos. Já passavam das dez horas da noite e todos o
esperavam para mais uma noite de aventuras. Vítor era chamado de Mancara pelo
grupo e era seu líder, apesar de não ser o mais velho. Os demais eram seis
adolescentes que pareciam manifestar sua revolta contra o mundo a todo
instante. Suas roupas maltrapilhas não lhes tiravam a coragem, antes a davam. Não
tinham vergonha delas, era a marca registrada que os fazia serem temidos e,
para eles, este temor era sinônimo de respeito. Quando Vítor chegou, fizeram o
maior alarde e, Medero disse a ele:
- Onde você tava? Nóis só tava te esperando. Aonde a
gente vamos dessa veis.
Mancara disse efusivamente:
- Vamo descê a alameda que termina no centro e largar
brasa nas moda dos clube. Lá eu vou dizê o que a gente fazemo.
E todos gritaram:
- Vamo nessa!
Desceram então pelo caminho combinado, completamente bêbados,
gritando e derrubando latões que estivessem à frente. Todos, totalmente seguros
do que iriam fazer, entraram no clube, acompanhando uns aos outros, depois que
o primeiro deles deu um soco certeiro no recepcionista deixando-o desacordado.
Todos se afastaram quando eles entraram, afinal de contas, ninguém teria
coragem de interromper o trajeto da turma dos “Boca de inferno”.
Por muito tempo infundiam terror a todos e, os poucos que
os enfrentaram, quando sobreviviam, deixavam a cidade para nunca mais voltar.
Todos nasceram e cresceram nas ruas e as visitas na cadeia onde, vez por outra,
um “tirava férias”, serviam-lhes de utilidade para aprender alguns truques
necessários para a vida e para a morte; também foi lá que aprenderam a ler para
ajudar aos traficantes na conexão de narcotráfico.
Dentro do clube dividiam-se em dois grupos: Batola,
Cotego, e o mais novo, Biboco ficavam próximos à portaria e, Medero, Patoca e
Tanoy iam para o fundo. Mancara, como chefe do grupo, divertia-se como os
demais, atento a qualquer “urgência”. Quando entravam em algum clube, eram os
“reis do pedaço”. Comiam e bebiam de quem lhes aprouvesse tomar. Agarravam à
força qualquer garota que lhes interessasse e roubavam-lhe um beijo tácito de
terror. Não se preocupavam com os Gambés (apelido dado aos policiais). Quando
um deles provocava uma briga, todos se atiravam em cima do infeliz que se
metera com eles. Quando viaturas de polícia, bem equipadas, apareciam,
escapavam por entre os dedos dos policiais. Todavia, não se preocupavam em
fugir. Dessa vez, iriam a outro clube onde tudo iria começar tudo como antes. A
noite era uma criança e o dia não existia para eles. O tédio era enfrentado com
as drogas que conseguiam facilmente através das muambas que eles próprios
contrabandeavam.
Veja o que vive na rua,
Fruto da sociedade;
Que na violência ele atua
Não é nenhuma novidade.
Tenha limpa a consciência:
“Outros são os culpados,
não eu!”
Omita sua deficiência
Sendo religioso ou sendo
ateu.
Não se trata de religião
Falar, pensar e agir,
Pois, na hora da confusão,
Não conseguirá fugir
E essa revolta contra o
mundo
Terá que admitir.
Os revoltados também amam
Ah! Se todos realmente admitissem o poder do
amor, não existiria o preconceito que exclui e aumenta os males da sociedade.
Mancara falava pouco. Um simples sinal que desse era o
suficiente para que todos agissem, um olhar seu impunha o respeito do grupo.
Todos o tinham como o exemplo da perfeição e da segurança, embora isso não
correspondesse ao que acontecia em seu interior. Apesar de tanta ação e emoção,
apesar de tantas garotas que seduzia e usava como um objeto, apesar de tanto
reconhecimento e soberania, tinha no íntimo um enorme vazio. O êxtase
temporário proporcionado pelas drogas, as noites de aventuras e, tudo que
envolvia a vida nas ruas, não era o suficiente para afastar a solidão em que
vivia. Mancara, apesar de tudo isso, era um ser humano e, como nenhum ser
humano consegue fugir da inexorável força do amor, este para ele, não era algo
démodé. Mancara amou, isso é prova de que amar não é privilégio de somente
alguns, ser amado sim. Apesar de sua vida não parecer admitir um amor
verdadeiro, Mancara amou incomensuravelmente e, para surpresa sua,, também foi
amado.
O nome dela era Lísia e não tinha nada de especial se a
compararmos com as demais garotas, mas, para Mancara, algo lhe emanava do ser e
lhe preenchia o íntimo com a essência embriagante do amor. Por ela, Mancara
prometeu deixar aquela vida, constituindo uma família que seria o ícone de
todos que seguissem o mesmo ideal. Mas como tudo na vida não chega à perfeição
sem a persistência humana, aquele relacionamento tinha os seus dias
contados.
Mancara não era aceito pelos familiares de Lísia e, de
todas as maneiras, fizeram tudo que puderam para separá-los. A família de Lísia
também era pobre, mas não aceitavam o relacionamento de Lísia e Mancara, pois
sabiam de onde Mancara provinha e não acreditavam que ele fosse capaz de trocar
aquela vida por outra. No princípio, tinham uma certa confiança em Mancara, mas
ele, acostumado ao estilo de vida anterior, traiu essa confiança. E a confiança
é como um vaso raro, porém frágil, uma vez destruída, nunca mais é recobrada.
Muito fez Mancara para sair daquela situação, propôs a Lísia
que fugissem e construíssem suas vidas longe dali, mas Lísia, apesar do amor a
Mancara, não podia deixar de amar os seus pais. Optou pela serenidade, mesmo
correndo o risco de nunca mais vê-lo. O espírito de Mancara não foi forte o
bastante para agüentar aquela pressão dos familiares de Lísia. Sempre fora
determinado a conseguir o que quisesse, mas, quando o assunto é amor, não se
pode dominar. O amor não é um animal que possa ser preso em uma jaula até sua
domesticação, pelo contrário, é ele que domina a pessoa e a faz trilhar os
caminhos da plena liberdade: eis o paradoxo. “Racionalista” como tentava ser,
decidiu não se deixar mais dominar pelo amor e abandonou Lísia. Nunca tantas
barreiras haviam se interposto em seu caminho como agora.
Meses depois, folheando um jornal do dia anterior, viu
nele a foto do carro do pai de Lísia. Havia muito tempo que não se fabricavam
carros daquele modelo e, naquela região, nunca se vira um carro daquela mesma
cor. Mas o que estaria fazendo no jornal? Rapidamente procurou a página na qual
se encontrava a seguinte matéria: “família morre em acidente de carro...” Forte
como era, chorou amargamente. Sentiu-se pusilânime diante da vida. Como um
poder dos céus poderia permitir tal acontecimento desastroso? Como resposta, sentiu-se
confortado por uma força provinda do infinito e, concomitantemente, pôs-se a
rezar a quem quisesse escutá-lo nos céus. E em sua memória se desenhava o rosto
de Lísia, sublime e majestoso.
Inconsciência
Tudo na vida tem um porquê, mas nem todo porquê é
cognoscível.
Pensando no destino que levara aquela que realmente amou
com as forças de sua alma, Mancara entrou no ônibus e, do contrário das outras
vezes, passou pela roleta pagando a passagem. Neste dia, resolveu colocar as
roupas que conseguira meses atrás para se encontrar com Lísia. Não eram caras,
mas o faziam respirar aliviado nos locais onde passasse, sem que ninguém
escondesse a bolsa ou desviasse de seu caminho. Sentou-se atrás de um painel no
qual notou uma das tiras metálicas solta. Seus olhos absorviam o conteúdo do
jornal nele afixado: “Governo repreende, com violência policial, passeata de
grevistas”; “Dez pessoas são vítimas de um tiroteio na favela”; “Corrupção e
narcotráfico andam juntos”; “Movimento de sem terras acaba em morte”; “Empresa
privatizada demite funcionários em massa”; “Elefante que nasceu no jardim
zoológico passa bem”. Riu alto e seu riso era uma mistura de ironia e ira. O
ser humano regrediu a tal ponto de não mais ser valorizado em si e suas
atitudes não podem mais ser chamadas animalescas, já que os animais parecem ser
os únicos responsáveis pelo equilíbrio do planeta.
Um executivo de baixa estatura e queixo erguido,
ricamente trajado, entrou no ônibus e sentou-se ao lado de Mancara. “O que
estaria fazendo naquele ônibus, um senhor que talvez possuísse inúmeros
carros?” Mancara se perguntava. Não havia mais lugares e, por isso, antes de
sentar-se, titubeou em seguir para o fundo, mas, para sua triste sorte, não o
fez. Sentou-se e, imediatamente, abriu o computador portátil que trazia. Uma
estranha sensação tomou conta de Mancara, alimentou um profundo ódio àquele
senhor. Nunca o havia visto, mas seu ego dizia que aquele era o seu inimigo
mortal. Como se desvencilhar de tais pensamentos? Era preciso superá-los. Seria
possível não dar crédito a eles? Mas, o fator psicológico é o ápice do real.
Vítor tanto cogitou sobre seu ódio àquele desconhecido que não pôde mais se
dominar, arrancou a tira metálica que havia observado minutos antes e
encravou-a no pescoço daquele senhor. Aproveitando-se da gritaria das pessoas
que não conseguiam entender o que havia acontecido àquele executivo cujo sangue
escorria pelo ônibus, Mancara passou por entre todos e saiu pela porta traseira
do ônibus, aberta para o embarque de passageiros.
Correu durante horas,
tentando descobrir o porquê daquilo que havia feito. Sempre viveu nas ruas e
muitas pessoas foram mortas por ele, mas nunca sem motivo aparente. O crime é
semelhante a um parafuso colocado sempre no mesmo lugar: no princípio o
parafuso deve ser forçado até que seja introduzido, com o passar do tempo ele é
facilmente colocado e tirado; assim acontece no crime, o pesar na consciência
sempre acompanha os principiantes. No mundo das ruas, muitas vezes a lei é
esta: matar ou morrer. Quando porventura, alguém era morto nas ruas por ele,
imaginava Mancara estar fazendo três favores: um à vítima, que já não sofreria
mais com a constante incerteza do dia-a-dia, outro a si, já que em todas as
vezes sua vida era ameaçada e, por fim, à sociedade, que se veria livre de mais
um daqueles que lhe causavam pânico e terror. Agora, porém, a sangue frio,
ferira ou, até mesmo matara um senhor que nunca tinha visto, mas do qual, com
certeza, a sociedade não iria deixar de pedir contas. Estranhou-se, não estava
sob efeito de drogas e nem mesmo de álcool. Corria como um louco que se imagina
correndo de uma locomotiva. O céu coriscava, uma tempestade cairia em algumas
horas.
Mancara, totalmente
molhado pelo suor, com a garganta seca, tonto de cansaço e com dores por todo o
corpo, parou e observou estar em cima de um viaduto. Pensou em pular dali,
todavia não alimentou tal pensamento, aquele viaduto era baixo demais. Não
temia a morte, mas temia a invalidez. Descendo, atravessou a avenida sem se
preocupar com os inúmeros carros que iam e vinham buzinando, dos quais
motoristas gritavam:
- Quer morrer idiota?
Entrou em um prédio de
trinta andares e chamou o elevador. No segundo andar entrou uma bela moça cuja
beleza era tão notável quanto a sua vaidade. Por ironia do destino, o elevador
enguiçou com os dois no décimo quinto andar. Uma corrente de pensamentos
macabros tomou conta de Mancara. Teve ímpetos de estuprar aquela moça e, logo
depois, matá-la sufocando-a. Traçou todo o plano de forma que ninguém
descobrisse o que realmente acontecera, a não ser, tarde demais: diria a quem
estivesse ao lado de fora que ela não havia agüentado a falta de ar no elevador
e desfalecido. Tudo planejado, só faltava agir. Mas aquela moça, sentindo-se
incomodada por estarem presos no elevador, disse delicadamente:
- Vamos pedir a Deus que
mande alguém que venha logo para nos ajudar!
Aquelas palavras foram
como um oceano derramado sobre um palito de fósforo aceso. Fizeram com que
Mancara, paulatinamente, voltasse a refletir sobre a razão de suas atitudes.
Não era a volta à lucidez, pois não sabia o que isso significava, era uma
inquietação semelhante a um remorso de ter feito algo que não correspondia ao seu instinto. Era um
desassossego pela possibilidade da existência de um poder superior que estaria
a registrar todas as falhas humanas e atitudes desumanas. “Haveria um Deus no
céu que assistisse a tudo aquilo sem nada fazer para impedir o livre-arbítrio
do homem?”. Falar em Deus foi a salvação daquela moça que com ele estava presa
no elevador, infelizmente, ela nunca saberia disso.
Quando o elevador voltou a
funcionar, Mancara sentiu-se aliviado por não estar mais próximo daquela que
parecia ser a testemunha ou juíza de seus crimes. Nunca, em sua vida, uma
palavra fizera tanto efeito na mudança de alguma atitude sua. Pensou: “se a
palavra ‘Deus’ era tão poderosa, o que seria do homem diante deste ser
inefável?”.
Tragédia ou alívio?
Não se deve julgar as pessoas sem reconhecer as
circunstâncias que realmente desencadearam uma ação, conclusão: nunca se deve
julgar.
Quinze minutos depois
Mancara se encontrava no plano superior do prédio. Caminhou até a beirada e
sentou-se em cima da mureta de proteção. Olhando lá de cima, viu todas as
pessoas e os carros que passavam na avenida, eram semelhantes a brinquedos de
crianças de condições financeiras estáveis. Inusitadamente, fluíram em sua
mente pensamentos de revolta contra tudo e contra todos: “Porque havia tanta
miséria em lugar de tanta riqueza? Porque algumas pessoas já nasciam sabendo
que o sofrimento era a única coisa a esperar de sua vida até a morte? O que
fizeram aqueles sofredores das ruas para merecerem tal destino? Quem era
realmente o culpado por aquela situação? Que sentido tinha a vida para aqueles
que a viviam realmente ou para aqueles que apenas sobreviviam?”. Mancara não
encontrava sentido algum para nada. Tudo parecia ilusão.
Olhando para a avenida lá
embaixo, reparou que nela passava uma carroça. Engraçado e estranho era, numa
cidade grande como aquela, costumes tão antiquadros ainda estarem presentes;
mas não pensava nisso. Comparou a sua realidade à da carroça. Pensou: “sou como
aquela carroça que carrega pedras e é puxada por um cavalo ao longo da avenida.
Da mesma forma que a carroça segue em diante apesar da sua figura contrastante
com a cidade, eu sigo. Da mesma maneira que ela é puxada por um cavalo, eu sou
guiado pelo acaso. Enquanto segue, leva consigo muitas pedras, enquanto a vida
é vivida comporta em si todo o sofrimento originado pelas atitudes humanas. Se
a carroça fosse destruída, todo o fardo seria deixado no meio da caminho. Mas
outra carroça deveria levá-lo. Seria necessário realmente a existência do
sofrimento?”. Se Mancara pulasse dali, sabia que não haveria volta. Também não
haveria mais sofrimentos, pois a carroça de sua vida não mais existiria. “A
morte seria um alívio?” – pensava – “quem é o responsável por minha existência?
Não sou dono de minha vida?”.
Assim permaneceu por mais
de uma hora até que apareceram vários policiais que gritavam afoitos, apontando
armas em sua direção:
- Pensou que nos escaparia
dessa vez, não é mesmo? Sabemos que foi você o responsável pelo assassinato do
ônibus.
Mancara nada disse em sua
defesa. Não sabia como descobriram-no ali, mas resolvera uma das dúvidas de
horas atrás, o senhor que ferira no ônibus não sobreviveu à sua investida. Não
tinha medo da prisão, já havia passado por ela várias vezes e, vendo-se
encurralado de todos os lados, estava pronto a se entregar quando, contudo, por
um desequilíbrio na mureta em que estava, caiu do alto do prédio.
Como se houvesse algo a
ser feito para impedir aquela tragédia. Todos os policiais desceram fugazmente.
Quando chegaram à avenida onde Mancara caíra, cobriram o que restou de seu
corpo com vários jornais e isolaram a área. Muitas pessoas, que haviam
assistido a tudo aquilo, gritavam desesperadas e foram levadas aos
pronto-socorros mais próximos em estado de choque. Repórteres oportunistas
fotografavam tudo o que podiam e entrevistavam pessoas que, apesar de nada
terem visto do que acontecera, contavam a sua versão daquela catástrofe.
Quase nada restara daquele
que era o símbolo da coragem e dos destemidos, conhecido por toda a polícia e
devotado pelos meninos de rua. Somente restavam as inúmeras lembranças e a
pergunta: quem é o responsável pelo destino das pessoas, o indivíduo ou a
sociedade? Eram seis horas da tarde, uma nuvem escura formou-se naquele lugar.
Todos voltavam para casa com as suas consciências limpas pelos subterfúgios do
preconceito.
Astúcias
O ser humano merece consideração, não por seus
grandes feitos, não por sua ausência de infrações às convenções, somente, por
ser humano.
Quando estavam em uma loja de eletrodomésticos, Patoca e
Tanoy viram grande quantidade de pessoas que se aglomeravam em frente a uma
televisão na qual passavam notícias da última hora. A televisão, em si, nunca
trouxera a eles nenhuma notícia prazerosa. Sempre que assistiam a algum
programa de humor pensavam: “como pode o ser humano brincar com a realidade de
muitos que sofrem?”, quando assistiam a algum filme ou novela, sonhavam com a
realidade sabendo que nunca poderiam realizar os seus sonhos. Como já era de se
esperar, a notícia pela qual todos ansiavam era a morte daquele que lhes
ensinou a enfrentar o mundo que os rejeitou como uma escória produzida por ele
mesmo. Imediatamente, foram avisar aos outros do acontecido. Todos eles não
puderam acreditar no que havia acontecido e sua coragem quase inexorável foi
abalada por uma dor: o sentimento de tornarem-se órfãos diante dos futuros
desafios.
Rapidamente vinham na
lembrança todas as peripécias do líder daquele grupo. Não saíram, nem mesmo se
deitaram, prestaram homenagem àquele querido mestre recordando seus feitos de
sagacidade e falando sobre eles como quem fala da pessoa mais importante que
até então viveu, ou melhor, esteve no mundo...
Um dia, houve uma falha na
conexão que repassaria a droga contrabandeada a outros traficantes. Mancara
tomou todo o fardo para si como se fosse o único responsável por isso. Os
traficantes, revoltados com perda de milhares de dólares, pois a droga não
chegou ao seu destino conforme o combinado, decidiram matar Mancara. Este e
seus companheiros sabiam que nada lucrariam naquele combinado e decidiram
repassar a muamba a outros traficantes, obtendo um lucro incomparável. Então
planejou uma estratégia: deixou a maior parte do dinheiro do contrabando com
seus companheiros e embarcou em ônibus cujo destino era Bom Depacho em Minas
Gerais. Fez tudo isso aos olhos dos comparsas do grande mafioso que estava à
sua procura. Sabia que ninguém o mataria enquanto não soubesse o paradeiro do
dinheiro que obteve com a venda que realizara. Alegrou-se quando viu um carro
acompanhando o ônibus no qual se encontrava. Era o carro de um chefe de polícia
do Rio que mantinha relações de contrabando com vários mafiosos, inclusive com
o que estava na espreita de Mancara. Pensou consigo: “Logo, logo eles me
procurarão em Minas Gerais!”. Quando passou pelas primeiras cidades de Minas
Gerais, reparou que o carro não mais o seguia, mas não arriscou. Esperou chegar
em Bom Despacho, onde, imediatamente, comprou a passagem de volta. Assim –
pensava ele – os traficantes o perseguiriam inutilmente imaginando que ele
nunca voltaria ao mesmo lugar de onde fugiu. Para quem se utiliza do óbvio como
solução de camuflagem, aquele plano parecia o mais eficaz, porém quem poderia
imaginar o que se passava na mente de quem o perseguia? Voltar ao lugar onde
tudo começou não era sinal de coragem, nem mesmo de demência, era a certeza de
que tudo saíra conforme o planejado. Evidentemente muitas vezes estima-se em
excesso a certeza que pode ser ilusória e deixa-se de lado a dúvida que é
sempre certa...
Ao voltar, Mancara não
imaginou encontrar lá aqueles que o perseguiam, mas lá estavam eles, como um
leão que sente a presença de sua presa. Antes que o vissem, quebrou os vidros
de um carro e, pulando dentro deste, tratou logo de fazer uma ligação elétrica
com a qual fizesse o carro funcionar para nele fugir. Mal ligou o carro, os
traficantes o viram e começaram a atirar em sua direção. Perseguiram-no até uma
estrada deserta que parecia não ter fim. Mancara nunca esteve por aqueles
lugares, mas tinha a impressão que esta estrada tinha-lhe algo familiar, algo
que realmente fazia parte de sua vida. Percebendo, Mancara, que o combustível
estava no fim, tratou logo de pular do carro e correr embrenhando mato adentro.
Após quinze minutos, corria sem rumo no meio da mata, mas sabia que era
perseguido e poderia a qualquer momento ser encontrado. Ia fugaz como um
coelho, mas percebeu que passara inúmeras vezes no mesmo lugar, então se
arriscou e seguiu numa só direção. Algum tempo depois, estava diante de um
grande lago. Suas forças estavam escassas, mas tinha que nadar até o outro lado
do lago ou logo o alcançariam. Enquanto recuperava o fôlego, sentiu uma forte
dor no braço esquerdo e concomitantemente o sangue escorreu e uma grande sede tomou
conta de si. Os traficantes já o haviam alcançado, mas não os via. Não teve
escolha, pulou no lago e nadou até o meio onde as balas não o pudessem alcançar
facilmente. Parou de nadar e deixou seu corpo livre sobre as águas. Era a
última tentativa de ludibriar os traficantes. Estes, ao chegarem até a beira do
lago, nem mesmo entraram, pois sabiam que o tinham ferido e vendo o corpo
flutuando sobre as águas, deduziram que Mancara não agüentara atravessar o lago
e acabou por se afogar. Ao perceber a ausência de seus inimigos, Mancara saiu
do lago, rasgou a camiseta e estancou a hemorragia com um torniquete até que
pudesse cuidar do ferimento e voltar ao convívio dos seus.
Durante um mês, Mancara se
escondeu em Petrópolis para dar certeza de sua morte aos traficantes. Quando
soube que seus inimigos partiram para a Colômbia, não hesitou mais em voltar ao
convívio dos seus. Quando Biboco o avistou, gritou aos outros e correu em sua
direção dando-lhe um forte abraço. A enorme algazarra era acompanhada de inúmeras
interrogações como: onde estivera? Como fugira? O que fizera para escapar das
mãos dos mafiosos? Respondidas todas as perguntas não havia mais dúvida de que
aquele era o exemplo de sagacidade que os fazia sentir cada vez mais corajosos
na pugna da vida.
Estes acontecimentos eram
memórias sempre presentes daquele que, para eles, era líder, companheiro, pai e
irmão. Não puderam esconder as lágrimas. Choravam como crianças que se tornaram
órfãs. Juraram nunca esquecer de pedir ao deus dos sofredores por aquele que
consideravam o santo dos que crescem nas ruas e daqueles que lutam contra o
mundo.
A alguns quilômetros dali,
uma borrasca espalhava o sangue de Mancara pelo asfalto interditado. O espírito
das pessoas que passavam se enleava e uma tênue satisfação dava aos policiais a
sensação do dever cumprido.
Camuflagem social
Cada um de nós tem suas próprias razões, mas há
no mundo alguma razão que nos faça desdenhar a verdade?
Aquela noite foi longa
para aquele grupo. Nunca tiveram planos para a vida, viviam cada dia em si
mesmo sem se preocupar com o futuro. Mas, agora, sentiam-se inseguros. Esta
insegurança, porém, não era manifesta por palavras e sim pelo silêncio que, vez
por outra, era quebrado por uma recordação de uma grande atitude ardil de
Mancara.
No outro dia alguém deixou
no barraco onde se escondiam um jornal que continha em primeira página a foto
do corpo de Mancara coberto por um lençol e a seguinte notícia:
Marginal suicida mata
executivo
Foi morto ontem, às três
horas da tarde, o gerente do banco American-brazil: Valentino Yega. Testemunhas
afirmam que um marginal, conhecido pelas redondezas por Mancara, tentou
assaltar o executivo que, corajosamente, reagiu à investida. O marginal, não se
dando por satisfeito, tirou um punhal que carregava consigo e golpeou o
executivo várias vezes.
Acredita-se que o crime se
deu por vingança e que o marginal foi pago para eliminar aquele que se
candidatava a sócio do banco em que trabalhava, com inúmeras especulações
financeiras na compra de ações do mesmo.
Destaca-se, neste momento,
o magnífico trabalho da polícia que imediatamente seguiu o criminoso na fuga.
Um dos policiais, que estava no ônibus em trajes civis, reconheceu o marginal,
mesmo estando este bem vestido para disfarçá-lo em seu intuito.
Seguindo-o,
silenciosamente, várias viaturas estiveram à sua espreita para agir em um lugar
seguro onde não houvesse um tiroteio no qual corressem perigo as inúmeras
pessoas que circulam pelo centro da cidade.
Testemunhas do local da
abordagem afirmam terem sofrido ameaças caso dissessem onde o marginal se
encontrava e ressaltam que este entrou no prédio portando uma 765 automática
atirando para todos os lados. Dizem também que o criminoso, quando se viu encurralado,
atirou-se do alto do prédio Júlio Palace. Dizem também duvidar da intenção
suicida do mesmo, pois este estava drogado e não tinha noção da altura na qual
se encontrava.
Tudo isso mostrou que a
marginalidade está sendo combatida com todo o empenho policial e com a coragem
da população que pode colaborar no crescimento de nossa cidade, tranqüila e
confiante na segurança que lhe é proporcionada pela diligência de quem sabe que
ser cidadão é antes de tudo ser livre.
A fraqueza recôndita de outrora foi manifesta. Todos
gritavam como loucos, discutindo e brigando entre si. Não estavam drogados e
nem alcoolizados, mas sentiam tontos pela obscuridade do futuro que, mais uma
vez, se lhes apresentava e do presente que sofrera um golpe do destino. Horas
depois, Tanoy se levantou e disse:
- Não percebem? Sempre fomo inimigo do mundo e agora
deixamo abater! Será que tamos dando razão pr’ estes que falam de Mancara como
o terror do homem livre? Algum da gente sabe o que é liberdade?
Ditas estas palavras, todos se sentiram mais seguros e
uma grande revolta dava-lhes forças para continuar. Era a prova de que o grupo
sentia-se maduro e a fraternidade entre eles era a força maior que nenhuma
máscara social poderia esconder.
Dilema de família
O acaso, mesmo que não seja o fator determinante
do destino humano, não pode jamais ser subestimado.
Lourdes, mãe de Vítor, se sentia aliviada. Quantos meses
se passaram no sofrimento, na angústia que somente quem é mãe é capaz de
definir, mas não com palavras. Olhava o filho na cama dormindo. Quanto tempo
não acordava? Quantos meses sem que ele lhe dirigisse uma única palavra? O
médico que cuidou de Vítor durante todo esse tempo disse com ar confortador:
- Agora vocês já podem descansar, ele está fora de
perigo.
- Doutor José, gostaria de lhe mostrar uma coisa.
- Tenho outros pacientes à minha espera, não posso
demorar.
- Não precisa ficar – dizia lhe entregando um caderno
repleto de poesias e outros escritos – quero que leia, é de Vítor, talvez o
senhor saiba como me ajudar.
Ele tomou o caderno e guardou-o em sua bolsa saindo às
pressas. À noite, antes de dormir, lembrou-se de Vítor e da provável
interrogação de sua mãe a respeito dos escritos deste. Acendeu uma luminária,
retirou o caderno da bolsa e o folheou até uma página datada como um diário.
Seus olhos lacrimejavam, estava cansado, mas precisava corresponder à amizade e
confiança nele depositadas.
O tempo e a liberdade
Tempo é o nome que os homens dão às grades de sua
prisão fabricadas pelas suas próprias mãos.
Mas afinal, o que é ser
livre? O que faz do tempo insubstituível um aglomerado de passados
irrealizáveis e futuros incertos: ou de passados saudosistas e futuros
inexistentes? Como viver o momento presente se este, como o passado que já se
foi e o futuro que ainda não veio, também não existe? O que causa no homem o
sentimento de felicidade ou de vazio?
A psicologia explicou de
vários modos as causas das várias neuroses a que o ser humano está sujeito;
classificou as várias etapas da vida do ser humano num desígnio insubstituível.
A Igreja remeteu o sentido da existência a um futuro vir a ser metafísico no
qual se alcançará a plenitude, não desprezando uma certa busca de realização
terrestre, porém utópica. A ciência denominou o ser como ciclos intermináveis
de substâncias em contínua transformação. Nada disso, porém, satisfez o homem
plenamente.
Acreditar que seja
possível alcançar a plenitude pode não ser tão fácil quanto parece. Se
buscarmos explanação da psicologia, veremos que a felicidade é algo impossível,
a realização algo apenas desejado e a liberdade algo totalmente inexeqüível. Se
a vida é algo já preestabelecido, como se pode dizer que o sujeito pode ser
livre sendo ele prisioneiro da prisão mais imperecível de todas: a sua própria
consciência?
Na verdade, até mesmo
aquelas pessoas que dizem ter encontrado o caminho para a verdadeira liberdade,
ao receberem um corte epistemológico em seu dizer, apelam para a mais vil
racionalização. Se este é o único caminho que acham para dissipar toda dúvida,
como podemos dizer que essa pessoa é livre?
A Igreja e o esoterismo
nos remetem a vivermos o momento presente, construindo um mundo onde todos
sejam felizes. Infelizmente não existe um homem no mundo que esteja satisfeito
com o que possui. Em quem então se mirar? Alguém já disse que “a felicidade não
existe, o que existem são apenas os momentos felizes”. Além disso, o que é o
momento e, principalmente, o momento presente? Agora? Mas que agora é este?
Qual é a sua duração? Quando podemos afirmar que o futuro se tornou presente,
ou ainda, que o futuro existiu antes que existisse o presente? Além do mais, o
passado é mais real que o futuro, pois, quando se diz presente, ainda se espera
pelo futuro, já que, o futuro, deixando de ser futuro também não é presente.
Daí se conclui que nem mesmo os momentos felizes podem ser pensados como tais,
já que só nos damos conta de sua existência quando eles se tornaram passado e o
passado, evidentemente, não existe mais. A utopia acompanha a todos os que
acreditam na existência de um futuro, é ela a sua meta final e seu impulso
inicial.
A ciência, analisando a
matéria, percebeu o contínuo “vir a ser” de sua existência, colocando o homem
como um simples componente material de um mundo onde nada se perde e nem se
cria. Algo move tudo o que existe, algo imperecível, algo infinito em potência
e princípio de todas as coisas. Porém, a pergunta derradeira ainda se
prossegue: qual é o sentido da existência?
O homem é um ser incompleto.
Conhece o mundo, porém não conhece a si mesmo. Engana o próximo, mas também
engana a si mesmo. Destrói o mundo e, conseqüentemente, destrói a si mesmo.
Afirma que a liberdade está na aceitação de sua condição, porém não aceita a
mais clara referência sobre si: é limitado.
Infelizmente o ser humano
tem necessidade de aceitação até mesmo de outras pessoas, por mais vulgares que
estas lhe pareçam. Quando quer provar que não precisa nada provar, já fica
preso a esta necessidade. Quando reconhece que não sabe nada para atingir o
conhecimento (como Sócrates) já possui uma dúvida ou certeza, portanto um
raciocínio: “eu sei que nada sei”. Quando age de maneira cética duvidando de
todas as coisas, possui ao menos uma certeza: “de nada tem certeza”.
É comum associar a idéia
da liberdade à visão de um campo aberto no qual a natureza demonstra a harmonia
extinta e procurada, imagina-se uma gaivota em seu vôo alçado, ou ainda um
peixe na imensidão do mar. No entanto, por mais que se queira, ninguém consegue
emancipar-se de todos. O homem é um ser social. Como o falado “ninguém é uma
ilha”. Se procura se isolar sempre achará alguém que com ele irá se preocupar e
se procura sociabilizar sempre achará alguém que o vai excluir e isolar. É bem
verdade que a gaivota tem um vôo livre, porém este vôo só será exercido
enquanto suas forças durarem. É bem verdade que o peixe tem um imenso oceano
para nadar livremente (pelo menos até as margens terrestres), porém só sairá de
seu habitat se as circunstâncias o obrigarem. Este é o limite anteposto a nós
como um invólucro impermeável de uma liberdade inacessível. Por isso nunca se
chegará a uma definição da liberdade enquanto na mente configurar-se a idéia do
infinito.
O tempo é o maior limite.
Quando nele se pensa, nele se abstrai, quando dele se tenta esquecer, ele surge
com as maiores surpresas. Na verdade, de tanto esperar pelo futuro, de tanto
recordar o passado, de tanto procurar qual é o momento presente, deixa-se de
fazer o que a real liberdade, se existisse e fosse encontrada, permitiria:
viver.
De volta do incógnito
Talvez se possa conhecer o que o que vai
escondido nas atitudes humanas, talvez não.
Vítor acordou, mas não conseguiu abrir os olhos, pois a
claridade da tarde ofuscava a sua visão; quando o fez, olhou em sua volta, mas
não sabia onde estava. Fechou os olhos novamente e se viu no meio de alguns
jovens de rua que dele falavam com orgulho e saudade. Não compreendia o que
estava acontecendo, mas esforçou-se por descobrir onde estava. Tudo era alvo:
suas roupas, a cortina, o armário, o piso, o teto... O que estava fazendo ali?
Não se lembrava nem mesmo de seu nome verdadeiro. Não se lembrava de nada.
Estaria num hospício? Morrera e estaria em um lugar de outra dimensão?
Sentia-se cansado e um sono inelutável fez com que dormisse novamente.
Quando acordou, observou
as constelações pela janela do quarto no qual se encontrava. Neste momento,
verificou que já conhecia aquele local. Levantou-se com dificuldade e,
escorando na parede, chegou à janela. Olhou a rua movimentada, os carros e os
arranha-céus a fazer um grande contraste com aquela casa de estilo barroco,
sentiu algumas lembranças fluírem gradativamente em seu consciente: aquela era
a casa de seus pais e aquele era o seu quarto, com um novo aspecto, mas era
ele. Lembrava-se disso, mas não conseguia configurar a imagem de ninguém. De
pé, diante da janela, virou-se para trás e viu a maçaneta se mexer e uma
mulher, trazendo algumas roupas disse:
- Filho, vá descansar. O
médico recomendou-lhe repouso absoluto. Somente depois que você se recuperar,
poderá, se quiser, voltar à vida de antes. – e puxando-o pelo braço fez com que
se deitasse.
Vítor não ousara perguntar
nada. Deitou-se e, quando ela saiu, concluiu detalhes óbvios, todavia que lhe
pareciam novidades: “meu nome é Vítor e aquela é minha mãe, mas a que ‘vida de
antes’ ela se referia?” O que aconteceu para que ele estivesse ali? De que
estava se recuperando? Sua mãe falava como se continuasse um diálogo iniciado
um pouco antes. Vítor não entendia nada, mas não se atrevia a sair do quarto,
pensou que da mesma maneira que descobrira o seu nome e quem era a sua mãe,
descobriria as demais coisas. Se ela o tratava com tanta amabilidade,
chamando-o pelo nome, com certeza não descobrira a sua amnésia.
No outro dia, seus irmãos
foram buscá-lo para o café. Vítor saiu do quarto e, descendo as escadas, ia
recordando de tudo. Os móveis, os costumes e a maneira de lhe falarem fizeram
com que Vítor se reintegrasse de parte do que lhe fora tirado por aquele
“profundo sono”.
Vítor falava pouco, tinha
medo de perguntar o que lhe acontecera. Aproveitou-se da indiferença de todos
e, através da observação das palavras que lhe eram dirigidas, paulatinamente ia
recobrando a memória. Estando à mesa do café, iniciaram um assunto:
- Vítor foi sortudo
demais. Nenhuma cicatriz lhe ficou nas partes descobertas.
- Ainda bem que o acharam.
Naquela estrada, durante meses, poucos carros passam por ela.
- Ser conhecido, também é
bom – e virando-se para Vítor continuou – aquele senhor que lhe socorreu é
irmão de nosso vizinho.
- Sorte maior foi ter
reconhecido a Vítor, pois do carro nada restou. De lá foi levado diretamente ao
ferro velho.
Vítor olhava para eles
dissimulando entender toda a história. Mastigando um pedaço de pão, concordava
com eles balançando a cabeça afirmativamente. Em menos de um dia já podia se
lembrar de todos e descobrira, mesmo sem interrogar a ninguém, o que acontecera
a ele para que lhe dessem tantos cuidados.
Durante o dia foi visitado
por inúmeros parentes, vizinhos e amigos que diziam sempre o mesmo de formas
diferentes: “rezei por você todos dias, sabia que você sairia dessa. Você é
forte e seu anjo da guarda também é!”. Vítor limitava-se a escutar, mal respondendo
as perguntas que lhe eram feitas.
Quando anoiteceu, percebeu
como fora longo aquele dia. Não conseguia dormir, mas suas incertezas estavam,
paulatinamente, sendo resolvidas. As recordações fluíram em sua mente como uma
bóia, antes presa em uma pedra ao fundo do mar, que se solta. Lembrou-se de sua
vida de vazio e solidão. E foi traçando todos os acontecimentos que precederam
àquele acidente. E, em sua mente, formou-se a imagem de seus bens, de sua moto
e de sua casa. A partir daí, pôde analisar atitudes de outrora. De quando
direcionou suas metas simplesmente à satisfação de seu desejo de consumo.
Quando o relógio de parede, relíquia de Dom Pedro II, tocou, adormeceu
profundamente. Já ultrapassava a meia-noite.
Raízes do problema
O passado é o presente transformado em memória:
se ruim, crescimento, se bom, saudade.
Ao acordar na manhã seguinte, Vítor percebeu que havia
uma pessoa estranha em seu quarto. Aquele era o médico que dele cuidou durante
o tempo em que esteve inconsciente. Pedira à família de Vítor que deixasse que
ambos conversassem a sós. Sentado em uma cadeira, ao lado de sua cama, nada
falava, parecia esperar a iniciativa de Vítor. Trazia à mão um livro que se
intitulava: “os remédios genéricos”; foi o que fez com que Vítor deduzisse o
que o trazia ali. Quando resolveu sentar-se na cama o médico perguntou-lhe:
- E aí Vítor, já está começando a se recordar das coisas?
Vítor estranhou, pois era a primeira vez que alguém lhe
perguntava a respeito de seu estado mental após o acidente. Até então, todos
agiam de maneira indiferente sem notar-lhe a amnésia. Então, tomando coragem
disse:
- Começo a me recordar de alguns fatos. No princípio não
me lembrava nem mesmo de minha mãe, mas a casualidade fez com que eu deduzisse
muitas coisas.
- Isso tudo é normal, pois a região atingida por uma das
ferragens em seu cérebro é muito delicada e, dependendo da gravidade, pode até
causar amnésia crônica. O seu caso foi diferente. Quando aqui chegou, ainda sob
a ação de alguns medicamentos, chamou a todos pelo nome, mesmo que não se
lembre disso. Foi o que fez com que eu acreditasse em sua rápida recuperação
mnemônica. Não disse nada à sua família, pois achei que, sem precisar de sofrer
por uma possível deficiência causada pelo acidente, eles lhe ajudariam a se
lembrar de tudo. Não valorizei em excesso esta possibilidade que era incerta.
Pelo que vejo, fiz bem, pois, em menos
de dois dias, você já consegue se lembrar de tudo.
- Não exagere doutor! Ainda há muito que não sei ou não
consigo lembrar-me. O que eu fazia em um carro numa estrada tão deserta? Que
profissão eu exercia antes do acidente? Há quanto tempo estou me recuperando?
O médico não estava surpreso diante daquelas inúmeras
perguntas. Percebeu que tudo o que previra estava acontecendo. Tal atitude
transferiu a Vítor uma grande tranqüilidade. Serenamente e com toda a calma
disse-lhe o médico:
- Vítor, se você não conseguisse se lembrar de nada, eu
não poderia dizer-lhe nada também, pois estaria assim cerceando o seu esforço
mental, mas vejo que já voltou ao seu estado normal. Vou dizer-lhe parte do que
sei sobre o que lhe aconteceu: você se encontrava muito solitário em um
barracão que você próprio construiu com seu trabalho frenético. Também agia
febrilmente adquirindo bens de toda espécie. Não sei, mas acho que estava
compensando alguma mágoa reprimida. Mas vamos aos fatos: Já naquela época, seu
pai, grande amigo meu, estava preocupado com o seu isolamento. Por quê você o
fazia, não posso dizer-lhe, mas, talvez, você saiba. O que não se pode refutar
é que você precisava de ajuda, mas ninguém sabia como ajudá-lo. Você se trancou
em si mesmo. E, dessa forma, desapareceu por dois dias. Todos lhe procuravam
por toda parte até que um amigo de sua família trouxe-lhe a um hospital em que
trabalho e logo o reconheci apesar da situação lastimável. Dizia que lhe havia
encontrado a uma grande distância daqui. Você deu sorte de alguém lhe, socorrer
a tempo, o acidente havia acontecido algumas horas antes. Mais uma hora sem cuidados
médicos e o acidente seria fatal. Quando você chegou, imediatamente, avisei aos
seus familiares que passaram a dar-lhe assistência. Para pagar o seu
tratamento, venderam o seu barracão e a sua moto. Apostaram tudo em sua
recuperação. Você ficou em estado de coma durante seis meses e cinco dias.
Havia muitos cortes em seu corpo, como você pode ver pelas cicatrizes. A minha
principal preocupação era um corte em sua cabeça que poderia ser fatal. Para
cuidar de você foram chamados alguns especialistas. O afundamento do crânio
atingiu uma região muito delicada do cérebro. Felizmente, o acidente não deixou
nenhuma seqüela...
O médico falava pausadamente. Esperava que Vítor fizesse
alguma pergunta e logo prosseguia. Não parecia ter pressa, falava como quem muito
sabe, mas deseja confirmá-lo. Vítor ficava admirado por uma pessoa saber tanto
de sua vida, mais do que ele mesmo sabia. Percebeu que, por mais que se
isolasse, todos ainda se preocupavam com ele. É verossímil que fazia tudo
inconscientemente. Sua sede de consumo, seu trabalho febril e seu isolamento
não puderam preencher o vazio interior que possuía antes daquele acidente.
Virando-se para o médico disse:
- O senhor é também psicólogo?
- Não Vítor. Na medicina, optei pelo corpo, não pela
alma. Mas sei o que o corpo não é uma máquina, há algo superior a ele que o faz
funcionar em ordem. Todos temos um pouco de psicólogos, pois é mais fácil
reconhecer o que vai escondido dentro das atitudes das pessoas, do que conhecer
a nós mesmos – e, levantando-se, disse – Até logo! Tenho que voltar ao
trabalho.
- Mas doutor, nem mesmo perguntei o seu nome!
- Eu me chamo Carlos José. Mas prefiro que você não me
chame nem de doutor, nem de Carlos. Pode me chamar de José. E conte sempre com
a minha amizade. – Dizendo isso, saiu apressado.
Vítor começou a pensar em tudo o que tinha ouvido e se
lembrou de todos os acontecimentos que culminaram no acidente. Percebeu naquele
novo amigo um carisma para a profissão que exercia. Uma segurança pairava no ar
a cada palavra que dele escutava. Tomou um lápis e um papel, e escreveu:
“ideal”. Sentado na cama olhou para esta palavra e sua vida estava diante de si
como uma fada a esperar o pedido a ser feito.
Passando pela
sala, José entregou o caderno de Vítor à sua mãe e tranqüilizou-a quanto ao
conteúdo deste dizendo ser ele o anseio de um jovem que leva a vida à sério
demais. Ao sair da casa, passou a andar vagarosamente esquecendo-se dos
compromissos seguintes, e pensava: “há pessoas que têm coragem de afirmar que
temos que enterrar o passado. Não o podemos fazer, este está intrínseco à nossa
existência. Dele depende todo o presente que, por um espaço de tempo incógnito,
também se torna passado. A memória do passado é o suporte da vivência
presente”.
Reminiscências
Relacionar o sonho e a realidade é como tentar
separar o carro e suas rodas; as rodas, com diferentes tipos de forças, fazem o
carro avançar, assim como o sonho, com diferentes possibilidades, o faz com a
vida.
Na mitologia grega encontramos inúmeras histórias
triviais como qualquer fábula que acaba transmitindo um conceito ético ou
moral. Mas, de todos eles, um parecia realmente traduzir as sensações de Vítor
diante da vida: o mito da reminiscência. Por ele explica-se toda a ânsia da alma
que busca a beleza na multiplicidade de sensações unidas pelo raciocínio.
Segundo ele, a alma desdenhava os seres, hoje chamados reais e contemplava o
ser verdadeiro. Caindo no que chamamos de corpo, ela busca negligenciar as
coisas do mundo. Os que negligenciam totalmente a realidade terrestre são
chamados de loucos porque a realidade de perfeição não pode ser compreendida
nem mesmo pelos que a experimentam, pois, enquanto ser mortal, não se pode
possuir a percepção bastante distinta.
Vítor se recuperou e voltou a lecionar. Sua força de
vontade fez com que ele recobrasse todo o aprendizado de outrora. Sempre gostou
da leitura como alternativa de crescimento e, apesar do acidente que sofrera,
nunca deixou este hábito.
Agora trabalhava de forma ponderada, mas a vida continuou
a inserir em sua mente pensamentos que questionavam toda a existência humana.
Não se contentava com o óbvio. Pretendia ir mais a fundo no oceano da vida para
encontrar a pérola escondida da verdade.
Sempre sonhou com um grupo de jovens de rua do qual fazia
parte. Numa ocasião era o líder e sempre tinha alternativas para a ação do
grupo. Em outra ocasião, navegava em seus pensamentos e notava neles a saudade
que dele tinham. Visualizou sua própria morte enquanto Mancara e os efeitos
dela na sociedade. Quando acordava, no outro dia, relembrava todos os fatos que
vivera em seus sonhos e, num devaneio, conseguia descrever com precisão tudo o
que se passava em neles. Nada do que fazia o deixava, porém menos inquieto.
O que significavam aqueles
sonhos? Seriam resquícios de delírios dos meses em que esteve inconsciente?
Eram reminiscências de outra encarnação? Seriam previsões do futuro ou de uma
futura encarnação? Vítor, que nunca se interessara por estes assuntos devido às
crenças de sua família, agora pesquisava tudo quanto podia, tentando conhecer
todas as teorias que o poderiam levar a alguma conclusão. Leu vários livros
espíritas com teses bem fundamentadas de Alan Kardec, leu tudo o que encontrou
sobre parapsicologia e psicanálise. Quando encontrava com algum profissional
destas áreas, nunca deixava de perguntá-los sobre o verdadeiro significado dos
sonhos que tinha. Discutia, argumentava e, apesar de todas as teorias parecerem
ser verdadeiras por serem lógicas, nenhuma delas explicava-lhe sem
racionalizações o sentido daquelas reminiscências. Para ele, toda teoria,
apesar de conter uma dose de verdade, era uma adaptação à realidade. Como não
se conhece o objeto da pesquisa, é fácil afirmar, incólume de refutações, a
veracidade de uma teoria qualquer. Não se considerava um cético, mas precisava
reconhecer um fundamento epistemológico para, a partir daí, se aprofundar no
conhecimento do que o inquietava. O espiritismo atribuía tais sonhos a uma
outra vida, numa circunstância totalmente adversa da que se encontrava, como um
menino órfão crescido nas ruas e juntado pelo acaso a outros meninos de rua na
mesma situação. A parapsicologia atribuía aqueles sonhos a uma codificação
telepática com o líder de um grupo de jovens de rua que possuía uma afinidade
de pensamentos e idéias semelhantes às de Vítor. Mas como explicar a
visualização dos pensamentos daqueles jovens. Se fosse a reminiscência de uma
encarnação anterior explicaria assim, até mesmo a presença do passado em forma
de lembrança na sua mente enquanto Mancara. Se fosse uma linguagem telepática
com um dos chefes de um grupo de rua, poderia viajar pelo âmago daqueles jovens
mesmo após a morte de seu líder. A resposta que procurava não parecia ser dada
por nenhum ser humano. Para ele, a verdade era como o ouro, difícil de ser
encontrada, mas, uma vez uma vez encontrada, não restariam dúvidas de que
aquela seria a verdade suprema, de beleza contagiante que enleva a todos que a
procuraram para dela se deleitar na alegria plena.
Não se admire se lhe
parecer pieguice estas descrições das sensações de Vítor! Subterfúgio
plausível: ele só falava da verdade desta forma quando estava levemente
embriagado por uma garrafa de rum!
Abstração Filosófica
Louco é aquele que se diz conhecedor da verdade
tomando como referência as medíocres atitudes humanas.
Vítor já não podia ter certeza de nada. E se aquela vida
que pensava estar vivendo é que era a ilusão de uma vida real? Quem era ele?
Vítor jovem comum da cidade ou Mancara, jovem nascido e criado nas ruas? Será
que tudo aquilo correspondia à realidade? Sua existência foi cercada de
dúvidas. Não perdeu o sentido para a mesma porque na verdade nunca o encontrou.
Nunca soube qual era a existência real. Parecia que sua vida era intercalada
entre o dia e a noite com duas realidades ligadas à sua razão de ser. Há sonhos
que parecem tão reais que passam a fazer parte de nossa existência. O tempo se
encarrega de nos fazer esquecê-los, porém, em nossas atitudes, sempre somos influenciados
por eles. Não é à toa que as pessoas tendem a chamar suas metas e planos de
sonhos. Na verdade, sonhamos acordados por aquilo que, por mais difícil que
seja, poderá tornar-se realidade. Logo os sonhos são a cópia da verdade que
poderá, um dia, tornar-se a origem da realidade.
No entanto, aqueles sonhos ou visões de Vítor, não
correspondiam a planos. Afinal de contas, quem planejaria viver uma vida tão
cheia de sofrimentos quanto a dos que moram nas ruas? Vitor buscara algumas
vezes, alternativas emocionantes de viver a vida, mas nunca se imaginara como
um “inimigo do mundo” na pessoa de Mancara. Sempre optou pelo convencional,
porém admirava os loucos, não os dementes patológicos, mas aqueles que entregam
a sua vida pelo ideal que almejam, sem restrições, sem medo de serem felizes,
assumindo a sua liberdade até o limite da capacidade humana. Estes são chamados
pelo mundo de loucos, mas para Vítor, eram os ícones da coragem inexorável.
Um fato inusitado fez com que Vítor analisasse a
existência de outra forma. Caminhando em uma rua tranqüilamente, antes de ir ao
trabalho, pensava no medo que o homem tem de ser livre. A liberdade é algo que
ultrapassa as convenções, mas Vítor percebia nas atitudes humanas, desde a
linguagem até os costumes apreendidos uma aceitação inquestionável de tudo. O
homem é preso a tudo, até mesmo ao tempo. Quem criou o tempo para que fosse
seguido ininterruptamente? Poderia o homem alcançar a felicidade sem ser livre?
Ao longe, avistou um homem maltrapilho que vinha em sua direção e gritava
frases desconexas. Quando dele se aproximou, algo lhe paralisou as pernas e não
seguiu adiante. Parecia hipnotizado por aquele homem cuja origem ninguém sabia.
Ao vê-lo, aquele homem se aproximou e arregalou os olhos. Vítor se espantou com
tal atitude, mas não saiu do lugar. Durante alguns segundos a cena se congelou
e todos que passaram viram os dois, como estátuas no meio da rua.
Repentinamente, aquele estranho homem soltou um forte grito:
- Já devias estar contente, já devias estar contente...
E saiu repetindo esta mesma frase a todos os que
passavam. Era como um disco arranhado a repetir a mesma sinfonia. Aquele
demente saiu, porém deixou suas marcas. Suas palavras instalaram-se no íntimo
de Vítor que passou a repeti-las a si mesmo: “já devias estar contente”. Mas,
de repente, seu devaneio, transformou-se em inquietação. Ele, escravo do tempo,
não poderia se esquecer de seus compromissos, mas aquele fato fez com que Vítor
se esquecesse de tudo o que tinha a fazer. Olhava em todo momento para o braço,
mas não sabia porquê. Analisou assim, a mecanicidade das ações humanas. Quando
se lembrou já não havia mais tempo, o ônibus que o levaria para uma escola da
periferia já havia passado. Perdeu o dia de trabalho na escola, mas não perdeu
o dia.
Busca do saber pelo saber
Todos somos amantes do saber, viver é estar em
contínua busca do conhecimento dos fatos, do mundo, das pessoas, enfim, de nós
mesmos.
Um dia, Vítor decidiu prosseguir seus estudos e cursar o
nível universitário. Iria fazê-lo, não pelo retorno financeiro que obteria, mas
pelo retorno no que se refere ao pensar. Por este motivo, não teve dúvidas ao
preencher o requerimento de inscrição com o curso: filosofia. Já havia tido uma
introdução nesta área, mas agora tinha a oportunidade de embasar seus
conhecimentos em algo mais categórico. Riu das primeiras manifestações
filosóficas que vieram em contrapartida às pessoas que davam supremacia ao
pensamento mítico. Pensava: “grande coisa dizer que o mundo não surgiu, como se
pensava, da teogonia dos deuses, para atribuir sua origem à incerteza da
matéria ou do infinito”. Percebeu uma verdade plausível, mesmo nos mitos
escritos por Homero e Hesíodo, pois tentavam dar uma explicação ao mundo que
observamos ao nosso redor. Mas, para Vítor, nenhum filósofo, por mais sábio que
fosse, era tão astuto quanto Sócrates. Platão, seu discípulo, descrevia
inúmeras sagacidades deste que, se utilizando da ironia, dizia nada saber e,
assim, aquele que considerasse sua verdade irrefutável era mergulhado em
inúmeras dúvidas ao ser questionado por Sócrates; era a maiêutica dando a luz a
uma verdade ou a uma dúvida.
Diante de tais estudos, Vítor se deliciava pelo prazer de
quem sabe que nada no mundo tem sentido sem o Saber. Tudo era motivo de
admiração. Observou que no universo tudo tende a se repetir. Todos os dias o
sol nascia e se punha e, poucas eram as vezes que alguém se dava conta da
beleza da aurora e do arrebol. As flores cresciam e poucos tinham a capacidade
de admirar-se com a sua beleza. A vida se extinguia, a vida ressurgia. Tudo
parecia novo para Vítor que sempre achava estas reflexões banais. Mas percebeu
que, com o subterfúgio de buscar a realidade, dela se afastou. Todos observam o
cachorro que antes de urinar num poste o cheira, a galinha que antes de se
deitar num local o cisca, a ovelha que antes de ser sacrificada se ajoelha.
Brincava com essas banalidades e dizia a seus colegas, tentando descontraí-los:
- Tudo parece ser regido
segundo uma ordem universal.
Sua brincadeira foi uma
faísca num palheiro. Vítor se assustou quando irrompeu uma discussão:
- Isso é importante, aliás, a única coisa importante é o
pensamento, pois ele é a base do conhecimento ou da existência. Por isso, toda
ação deveria ser julgada por padrões externos ao cotidiano: uma realidade
superior.
- Nada disso! Não se pode esquecer os efeitos que uma
ação produz neste mundo, elas são tudo o que importa para seu valor ético.
- Mas quando vou agir, tenho em vista minha liberdade. O
valor ético de uma determinada ação deve ter uma raiz na razão, não na
observação. Os efeitos de uma ação no mundo não importam neste caso, seria
preciso observá-los para chegar a uma conclusão e, para cada ação, há efeitos
posteriores conspícuos. Como aplicar a ética a reações a posteriori?
- Você partiu da ética para a metafísica. Mas, mesmo
assim vou lhe mostrar como estou certo. O conhecimento inerente na razão é
superior a tudo que poderia ser observado. Logo, aí se percebe que o pensamento
é o único meio de se chegar a um conceito ético claro.
- Não querendo ser empirista...
De súbito um deles se virava para Vítor e perguntava:
- E você Vítor? O que acha disso?
Vítor se confundiu ao tentar acompanhar o raciocínio de
seus colegas e estes, a qualquer palavra sua, iniciavam uma nova discussão que
abordava diversos temas da filosofia: ética, metafísica e epistemologia. Cada
um não era adepto apenas de uma corrente filosófica, faziam uma mistura das
diversas correntes que lhes aprouvessem, não eram ecléticos, pois rejeitavam
aquilo que consideravam banal ou inverossímil. Pareciam superiores em tudo,
mas, mesmo assim, Vítor arriscou a falar:
- Se ética e liberdade andarem juntos, neste caso posso
opinar. Para mim, o eu humano e os valores humanos são ficções inevitáveis, mas
a liberdade existe indubitavelmente. E meu pensar baseia-se apenas nisso,
buscar a liberdade.
- Você acredita em liberdade, mesmo tendo as reflexões
que colocou agora há pouco? Segundo a sua observação o universo e tudo que ele
contém segue um padrão fixo ou pré-determinado!
- Sim, acredito. Mesmo num universo determinista a
liberdade existe, o homem está condenado a ser livre. Heidegger e Sartre me
mostraram isso...
Essas discussões duravam horas e não terminavam formando
nenhuma dialética entre elas. Na verdade, os defensores de cada ponto de vista,
faziam da verdade algo maleável e acabavam por afirmar o que anteriormente
tinham negado. Mas todas elas davam a Vítor a sensação de que havia algo a mais
que ainda esperava por ser descoberto. Mas era difícil caminhar numa só direção
ou corrente de pensamento: verdades eram refutadas a todo instante, isso dava a
Vítor um sentimento de ansiedade que o fazia por os pés no chão e perceber a
limitação de todo ser humano. Vítor aprendeu a lidar com essa limitação
percebendo os limites da razão. Concomitantemente aos livros de filosofia, lia
comédias ou críticas que o faziam se deleitar com o sabor do saber: Ao ler a
“República” de Platão, lia também “As Nuvens” de Aristófanes; ao ler
Aristóteles e os autores helênicos lia também as comédias de Luciano como
“Diálogo dos mortos” e “eu Lúcio, um burro”; ao ler Tomás de Aquino, Duns
Scotus e os demais filósofos medievais, lia também “Elogio da loucura” de
Erasmo de Roterdam; Ao ler Descartes, Leibniz e outros metafísicos, lia também
“Candido, ou otimismo” e “Dicionário Filosófico” de Voltaire. “Se todo filósofo
é doido,” pensava, “ao menos eu serei um doido alegre e sorridente”.
Eu só sei que nada sei,
Mas quem não queria saber
O que vai acontecer
Com certeza algum dia.
De nada temos certeza,
Os céticos têm toda a
razão,
Neste mundo onde as coisas
Parecem não ter solução.
Sair a caverna não é
fácil,
Melhor é viver no escuro
Que deparar com isso tudo
Que ofusca nossa visão
como o raio.
Encontro do caminho
Quando já se conhece o caminho, não se teme a
ausência da luz.
Certa ocasião, Vítor leu a seguinte história narrada por
Sidarta Galtama, o Buda: “Havia um homem que andava pela floresta juntamente
com seus companheiros até que levou uma flechada. Imediatamente, todos se
puseram a agir, tentando salvar-lhe a vida, mas ele pediu que não chamassem o
médico e nem o tirassem dali enquanto não descobrissem de onde a flecha
partira, porque o atacaram e inúmeras outras perguntas que dificilmente seriam
respondidas. Aquele homem, dessa forma, acabou morrendo sem ter respostas para
nenhuma de suas dúvidas”.
Vítor
comparou-se àquele homem. Grande parte de sua vida perdeu-se em elucubrações
que não o levaram a lugar nenhum. Percebeu que deixou de viver a vida por não
encontrar sentido para tal. Mas queria se entregar por algo realmente nobre.
Queria que sua vida significasse algo que prevalecesse, mesmo após a sua
existência. Algo que ultrapassasse a barreira do tempo e da matéria.
As palavras têm um grande poder na vida das pessoas,
podem matar ou ressuscitar, podem transformar ou conservar, podem afirmar ou
negar, enfim podem transmitir ódio ou amor. Percebendo isso, Vítor passou a
dialogar mais com seus companheiros. Deixou o isolamento e aprendeu tudo o que
deixou de aprender em tanto tempo que vivera isolado. Rapidamente, o sentimento
de solidão o deixou. Seus amigos lhe trouxeram a paz que sempre buscou. Aos
olhos de todos, sua vida sempre fora tranqüila, todavia seu interior era
turbulento. Estes novos amigos eram de uma comunidade de frades cujo trabalho
era devotado a meninos de rua, idosos, mendigos... Um dia, Vítor lhes disse:
- Admiro o trabalho de
vocês. Vocês são pessoas ótimas, mas não seria errado consertar os estragos de
nosso governo? Este trabalho que exercem nunca poderá abranger a todos os
lugares, e, pobres sempre teremos.
Um dos frades, meio corcunda, mas muito sorridente e
seguro disse-lhe:
- Ah, Vítor! Conheces os
argumentos de quem prefere esquivar-se da responsabilidade da igualdade social.
Acreditas realmente que devemos esperar uma atitude do governo?
- Além do mais – disse o
outro – não agimos de acordo com o paternalismo. Fazemos com que os pobres
sejam sujeitos de sua própria libertação dos grilhões da exclusão. Eles é que
se libertam pelo seu trabalho. Lembre-se que os excluídos nem sempre são as
vítimas, sabemos disso. Somos apenas setas que vão indicar eles o caminho a ser
seguido.
Vítor percebia o empenho de todos estes amigos. Como
poderia dizer que eles eram apenas setas? Eles faziam muito pela comunidade e,
sem eles, com certeza inúmeras crianças teriam crescido nas ruas tornando-se
marginais, inúmeros idosos teriam a morte antecipada, inúmeros pais de família
nunca teriam oportunidade de emprego, inúmeros mendigos nunca sairiam das
ruas... Vítor percebeu a grandiosidade daquelas atitudes. Era o maior exemplo
de doação que presenciara em toda a sua vida. Percebeu que, por mais simples
que fossem aqueles trabalhos, eram realmente dignos de admiração.
A ilusão diante do desconhecido
Os seres são o testemunho da liberdade, os olhos
que os enxergam, o amor; nada se pode enxergar a menos que se abram os olhos,
nada parecerá a liberdade a não ser pelo amor.
Vítor aprendeu muito com
vida, aprendeu muito com a solidão, aprendeu muito mais com a convivência. A
adesão às convenções sociais fez com ele ao menos não sucumbisse por caminhos
mais tortuosos, como o das drogas. Deixou de buscar na simples negação dessas convenções
aquilo que denominava liberdade. Assim como o êxtase, o vazio o deixou.
Encontrou a pedra preciosa que buscou por toda a vida.
Agi constantemente na procura de meu eu. Parecia que me
distanciava de mim mesmo cada vez que me aproximava da verdade, ilusoriamente,
por mim, considerada absoluta.
Quando tudo parecia claro, descobri que tinha mais a
descobrir. Descobri que o fato de achar explicação para algo fez com que eu me
distanciasse da verdade lógica que me guiava na descoberta. Eis o risco de quem
procura a verdade sem enrijecer os meios que levam a esta. Vi que para chegar a
uma verdade, deixei no caminho inúmeras interrogações com o intuito de
respondê-las assim que chegasse a algo concreto do que eu procurava. Cheguei,
mas estas inúmeras interrogações, imprudentemente deixadas para trás, fizeram
deste algo concreto um palácio no meio do deserto.
A única explicação para tudo é transcendente a mim mesmo.
Não posso afirmar que somente o que é experimentado é verdadeiro, mas como
afirmar algo como sendo verdadeiro sem embasá-lo? Ou como embasá-lo se não
encontro meios para isso?
Tentei experimentar de várias maneiras a reação dos
homens diante do desconhecido, mas nenhuma delas é tão eficaz para mostrar a
essência humana quanto a solidão.
Na solidão física verifico mais concretamente como reajo
ao sentimento de estar só que se torna insuportável quando vem acompanhado da
solidão moral. Ouço vozes, mas nenhuma delas dirige alguma palavra a mim. Duas
pessoas dialogam sobre os últimos acontecimentos do mundo em constante
transformação, e o que é pior, em contínuo caminhar para a sua própria
destruição. Eu? Só escuto. Minha voz é inacessível a essas pessoas, por mais
que eu grite. Entre nós não há somente um abismo físico, há uma parede intransponível
do tempo, do saber e do mistério. A presença dessas pessoas somente agravou a
minha solidão. Se elas nunca tivessem se aproximado, eu me sentiria mais eu
comigo e, por isso, menos só.
Senti que permanecer calado em certas ocasiões seria mais
difícil que gritar até que minhas cordas vocais se arrebentassem, mas esse
grito em nada mudaria o meu tédio. Sinto que algo acontece de diferente ao meu
redor e eu não posso fazer nada para impedir. Ainda bem que não passam de
sentimentos e os sentimentos nos mergulham em contínuas angústias toda vez que
lhes atribuímos valor inestimável.
Correr...Para onde? Procurar...o quê? Aceitar...como?
Nada que eu fizer me tirará desta escuridão. Liberdade...não a conheço, pois
apesar de não ser submisso a ninguém, sou escravo de mim mesmo e, o que é pior,
escravo de um ser vulnerável, fraco e inseguro de seu futuro.
Já sei!!! A única escapatória para não cair no desespero
é entregar-me ao amor. Ele é a única forma de dar sentido a esta existência
sedenta...
Neste momento, sons ritmados, como que de uma orquestra
de três mil componentes ressoam, vozes cantam o hino mais belo que possa
existir, raios cortam os céus acompanhados de trovões tão fortes que fazem toda
a terra tremer, mas, de repente, faz-se um silêncio que me inquieta e, depois
deste extraordinário espetáculo de som, beleza e vigor, tudo volta para a sua
monotonia do tempo e da rotina fatigante.
Como já amanhece, ao despertar deste profundo sono,
levanto-me da cama, me arrumo e saio, na procura de viver profundamente mais um
dia de buscas, derrotas e conquistas.
Princípio da caminhada
Mesmo a mais bela pedra preciosa precisa ser
lapidada.
Vitor finalmente encontrou o caminho que o levaria, passo
a passo, à felicidade almejada. Iniciou um trabalho leigo juntamente com seus
amigos. Nas simples atitudes em benefício dos excluídos da sociedade obtinha os
remos para o barco da vida, mas era preciso remar. Encontrar o caminho não é
tudo, é preciso caminhar. Nunca mais se deixou levar pelas correntezas do
acaso. Não era o presidente do Brasil, nem mesmo um herói que entregou sua vida
pela nação, seu nome não estaria nos jornais como o “Salvador da Pátria”, não
seria lembrado em celebrações religiosas como um santo que deu seu corpo às chamas
por causa da fé, mas seu trabalho renderia frutos de libertação. Disso tinha
profunda certeza. Assim como uma semente não dá frutos imediatamente, as
atitudes de Vitor não renderam frutos imediatos. No princípio, impacientava-se,
mas aprendeu a esperar, pois seu íntimo lhe dizia que nada que fizesse em
benefício das pessoas seria em vão. Não que esperasse uma recompensa para si.
Sua recompensa era a própria alegria alheia. Sabia que aos sentidos tudo é
minúsculo, como é minúscula uma pequenina bola de chumbo; porém, o peso de
atitudes como as suas era também semelhante a essa pequena bola; afinal, o que
pesa mais? Uma bola de chumbo ou dez bolas de isopor de mesmo tamanho? Todavia
há coisas inefáveis só compreensíveis a quem as experimentam.
Em todos os finais de semana Vítor se juntava a vários
grupos desprovidos de interesses próprios, voltados integralmente para o bem
estar do próximo. Eram grupos provindos de diversos setores da sociedade: eram
espíritas, católicos, evangélicos, pobres, ricos... E várias outras
denominações. Mas ninguém se considerava mais importante. Todos se tratavam
igualmente. Evidentemente, alguns atritos surgiam inusitadamente, mas logo se
dissipavam, já que o único interesse era comum a todos: trazer dignidade
àqueles que a perderam. Vítor colaborava nesses projetos incansavelmente. Pela
manhã, acompanhado por muitas pessoas do grupo, percorria várias casas da
cidade numa tentativa de sensibilizar a população a respeito do problema da
desigualdade social. Não tinha pressa, parava, conversava, respondia perguntas
e até debatia com argumentos convincentes a quem se interpunha àquele projeto
colocando-se fora do padrão da responsabilidade social. Tais diálogos eram
anotados assim que chegasse em casa. Esperava encontrar neles novas orientações
para as novas atitudes a serem tomadas. Certa ocasião, enquanto preparavam o
“Natal dos Excluídos”, mergulhado em tais reflexões, numa reunião do grupo a
que se juntara, falou em tom desafiador:
- É preciso fazer mais pelas pessoas. Combatemos a
pobreza, mas nos limitamos a podar a planta do sistema social. Rapidamente ela
brota, e outros ramos, mais numerosos surgem. É preciso cortar o mal pela raiz.
Todos do grupo sentiram-se constrangidos com tal
afirmação. Afinal! Já não faziam tudo o que podiam para diminuir o sofrimento
de inúmeras pessoas com problemas tão diversos? E foi assim que uma mulher,
idosa e doente, porém sempre animada a ajudar no que fosse preciso, disse sem
se levantar do banquinho no qual sentara:
- Ora, Vitor! Já não fazemos o bastante. Conte nos dedos,
quantos jovens drogados, pais desempregados, alcoólatras, meninos de ruas e
tantos outros foram atendidos por nosso empenho. Você mesmo é um dos maiores
responsáveis por tais maravilhas. Deixe de ser pessimista!
O diálogo parecia tomar o rumo de uma discussão, mas
Vítor logo explicou:
- Sei do empenho de todos, mas se os números são a prova
comprobatória da veracidade do que digo, contem quantos jovens fugiram de
nossas mãos para voltar ao convívio das ruas? Acham-se livres por não
conhecerem a verdadeira liberdade. Quantos alcoólatras e drogados se deixaram
tombar novamente pelo vício? Quantos pais de família nunca mais voltaram a
trabalhar apontando inúmeros subterfúgios para não fazê-lo? Nosso trabalho é
belo, mas não pode parar no assistencialismo. É preciso ir além. Sei também que
muitos aqui vêem nessas pessoas objetos de sua salvação. Não podemos
canonizá-las!
Durante longo tempo durou aquela discussão. Ao sair dali,
ninguém se sentia desanimado. Todos se perguntavam sobre a melhor forma de agir
sem cometer os mesmos erros de outrora. A partir daquele dia, porém, alguns
deixaram aquele grupo. Mas o trabalho continuou sem atropelos. Era preciso
caminhar, parar no tempo esperando uma solução eficaz seria imprudência. Da
mesma forma que um náufrago num barco desorientado deve arriscar uma das
direções para não ficar toda a vida no oceano, assim deveria ser feito com o
projeto do grupo. Apoiaram-se no ditado: “o amanhã pertence a Deus”, mas sentiam
que precisavam fazer a sua parte.
Tudo fazia Vítor parar e se encontrar consigo mesmo. Pela
introspecção, percebeu que já não se sentia sozinho, mas tinha inúmeras dúvidas
das decisões a serem tomadas. E, a pior delas era essa: “deveria injetá-las naqueles
que, com tanto empenho semeavam sobre as pedras na tentativa de colher alguns
frutos?”. Quando se age de uma certa maneira, ou se valorizam os frutos ou se
valorizam os espinhos que machucam os frutos impedindo-os de serem totalmente
belos. Vítor, absorto, contemplava a
ambos e viajava para as profundezas de seu oceano pessoal:
Mais uma vez encontro-me
numa encruzilhada: O que fazer? Para onde ir? Todos me dão sugestão do melhor
caminho a ser tomado. Indefinidamente ninguém consegue me dar uma única
direção. Esta liberdade que agora respiro é a angústia de viver e ter que
optar. Não sei se é imaturidade de minha parte, mas às vezes sinto-me tranqüilo
como se a melhor alternativa fosse deixar o barco navegar de acordo com a
corrente. Outras vezes, como agora, sinto que minha liberdade será exercida
cada vez que navegar contra a corrente. Mas como navegar contra a corrente num
mar onde várias correntes vão em várias direções. Se pelo menos as pessoas nas
quais confio a minha insegurança tivessem unanimidade em indicar um determinado
caminho! Todavia a dúvida permaneceria: aceitar estes conselhos ou refutá-los?
Analisando o processo que me levou a estar aqui neste momento, voltado para meu
ego, ansioso pela felicidade, percebi que decidi estar aqui por vontade
própria. É bem verdade que pedi sugestão a amigos que muito me incentivaram em
tal intuito, mas o primeiro impulso foi o meu; afinal de contas eu poderia
permanecer estático, deixando que tudo ocorresse de acordo com o acaso. Mas
não, percebi que a ausência de algo é melhor forma de valorizá-lo. Voltando
atrás, descobri que o fato de não estar bem seguro do que decidi é que me levou
a duvidar de minha decisão e a mergulhar em contínuos dilemas. Do contrário,
combateria qualquer vento que viesse em outra direção. Se meu destino fosse
determinado, ao perceber ventos contrários, abaixaria as velas e esperaria que
estes voltassem a ir à direção que escolhi. Porém, como meu barco não é forte,
deixei que o vento me levasse para o meio do oceano no qual me encontro agora.
Navegar de acordo com a corrente, nem sempre é seguro, há correntes que têm seu
fim em um lugar do qual partem correntes em várias direções. Na verdade,
acredito que o que me fez decidir não foram os outros, mas meu receio em
afastar cada vez mais das praias nas quais repousava tranqüilo. Só Deus é quem
sabe o que farei, onde meu barco irá chegar. Na vida é preciso de um sentido,
assim como ao navegante é preciso de uma referência. Mas como fui imprudente,
saí para o mar sem saber ler no céu a posição na qual me encontro, levei uma
bússola que se perdeu quando enfrentei os primeiros tubarões. Agora nada me
resta a não ser navegar, mas preciso de uma direção única, do contrário
navegarei em círculos e sempre chegarei de onde parti.
Essa tempestade me impede
de enxergar um palmo de distância à minha frente. Mas o que busco enxergar no
meio de um oceano? O céu se encontra com a terra, tudo parece o mesmo. Querendo
alcançar o céu, percebi que este já estava junto de mim. E agora, que pretendo
retornar à terra, percebo que os desafios de nela permanecer se ampliaram. Isso
já era de se esperar, talvez a previsão dos mesmos é que foram a maior
motivação para que eu partisse. Sinto que não retornar, é a covardia diante dos
desafios vindouros. Ambos os destinos podem me trazer desafios, não há opção
que não venha acompanhada de renúncias, mas é preciso optar por aquele cujos
desafios são intrínsecos à minha natureza. Juntar a emoção e a razão na
resolução deste dilema é tão difícil quanto misturar a água e o óleo. Se a água
é a razão e o óleo é a emoção, só há uma única solução: deixar que a água
purifique para que o óleo possa ungir.
Graças ao bom Deus, a
tempestade já se foi, não pode chover o tempo todo. A razão me diz que a única
forma de não me arrepender depois é não me precipitar baseado nos sentimentos
de aprovação ou reprovação das pessoas, de mistificação do real ou do medo da
solidão. A emoção me diz que todos os caminhos levam a ela. Logo, concluo que
ficar aqui parado esperando que a solução para este dilema caia do céu, é
entregar-me ao desalento e à pusilanimidade; é perder o sentido, ou melhor, é
deixar de dar o sentido para a vida. É deixar de ser livre e entregar meu
direito de escolha às circunstâncias ou a seres cuja existência é tão efêmera e
cheia de incertezas quanto a minha. A estes a minha única motivação para uma
decisão qualquer será: somente procuro o mesmo que você: a felicidade na terra
e no Céu.
Vítor buscava, mais do que nunca, a sua própria
felicidade, mesmo quando agia de forma altruísta. Não era egoísta, mas sincero
consigo mesmo.
Ajudando a se ajudar
Não há caminho no mundo isento de pedras, mas há
pedras que não precisavam estar no caminho, se estão, alguém que nele passou
antes de nós, as colocou, mas, nem sempre, intencionalmente.
Vítor não queria se envolver exageradamente naquele novo
trabalho de gratuidade e fraternidade, mas a ele foi atraído cada vez mais. A
reciprocidade era inigualável. Aqueles aos quais se juntou, possuíam histórias
semelhantes à sua. Não formavam uma instituição formalizada nos moldes
governamentais, tinham medo de serem interceptados num agir que se opusesse aos
grandes poderosos da sociedade. Diante disso, Vítor reconheceu formas de
combate aos males sociais cujo resultado seria realmente louvável. Percebeu que
muitos excluídos eram dos altos escalões sociais, o que significava algo mais
que uma simples questão financeira. Um dia conversava sobre isso com um rapaz,
psicólogo recém formado que trabalhava juntamente com os demais num apoio a
diversos deficientes: excepcionais, cegos, mudos, surdos, aleijados... E lhe
disse:
- Daniel! O que você faz com os relatórios que produz
durante as entrevistas com os beneficiados pelo nosso trabalho.
- Levo para casa e reúno com minha esposa e uma amiga,
ex-colega da faculdade. Estamos juntos escrevendo um livro que trata das
diversas questões relacionadas ao psíquico dos diversos ramos da sociedade. Mas
estou dedicando especial apoio aos ajudados pelo trabalho de nosso grupo;
afinal de contas, estes não têm quase ninguém por eles. Precisamos ajudá-los,
mas, antes, fazer com que cada pessoa no mundo reconheça a parcela de
responsabilidade em todos os males sociais.
- Falando dessa forma,
você parece um líder sindical.
- Deve ser a convivência.
Jéssica, minha amiga de que falei há pouco, é filha de um empresário e se
envolveu num movimento sindical. Evidentemente foi expulsa de casa. Agora está
morando num apartamento que comprou. Lá também, montou seu consultório de
psicologia.
Aquelas últimas palavras
fizeram o coração de Vítor bater forte. Era como se tivesse encontrado
novamente aquela a quem, tempos atrás, dedicara grande parte de seus poemas.
Pensou: “seria muita coincidência, afinal de contas ela decidiu mudar-se para
outra cidade... estaria ela envolvida em movimentos populares, não, creio que
não”. Vítor se distraiu e, por alguns minutos não respondia a nada que seu
amigo lhe perguntava até que, estralando os dedos, Daniel chamou-lhe à atenção
falando:
- Conhece a Jéssica? Ficou
estranho quando dela falei!
- Não, não sei se estamos
falando da mesma pessoa.
- É fácil descobrir. Como
ela é?
Vítor tentou de todas as
formas dissuadi-lo a não prosseguir naquele assunto, mas, seu colega, usando
dos estratagemas de seu curso, fez de tudo o que pôde e acabou convencendo-o.
- A Jéssica que conheci há
alguns anos é filha de um gerente de uma multinacional que estava prestes a se
aposentar. Não é alta, seus olhos são castanhos, seus cabelos são compridos
e...
- Talvez estejamos falando
da mesma pessoa, afinal de contas tudo muda neste mundo. Mas, minha colega
Jéssica, além do que já lhe disse, tem os cabelos loiros e curtos...
- Definitivamente não
estamos falando da mesma pessoa. Jéssica nunca cortaria seus cabelos,
orgulhosamente exibia-os como quem exibe um troféu, além do mais, nunca se
envolveria em movimentos sindicais...
Aquela conversa durou
somente mais alguns minutos, pois, já era tarde e, no outro dia, Vítor faria
uma visita juntamente com uma freira a dois lugares para os quais, olhares
preconceituosos se voltavam com asco: um meretrício e uma prisão. Despediu-se
de seu amigo e foi-se embora. Não mais se perguntou onde estaria aquela que lhe
retornara à lembrança naquele dia. Afinal de contas, que dúvidas poderia o
simples pensar eliminar?
Fugaz como o amor
Não existe no mundo nada que seja completo, isso
é o que dá a todos a alegria de sempre buscar. O que é bom sempre pode ser
melhor, o que é ruim sempre pode ser melhor; ‘piorar’ é um verbo sem
conjugação.
Vítor sonhou naquela noite que estava numa cadeia a
gritar pedindo água. Inesperadamente, surgiu dentro de sua cela uma mulher
vestida com roupas de prostituta, mas cuja beleza parecia intocável. Sabia que
não poderia se mexer e nada falou. Vagarosamente ela entornou um cantil de água
que trazia e, no chão, formou-se a figura de um mapa. Ela lhe disse: “Nunca
encontrarás consigo mesmo sem percorrer as terras de seu eu. Os mapas de seu
mundo são os fatos. Leia nos sinais que lhe apresento todos os dias o caminho a
ser seguido; mas lembre-se nunca caminhe sozinho”.
Quando acordou, Vítor se lembrava nitidamente de todas as
palavras ditas por aquela mulher de seu sonho, mas não sabia o que elas
significavam. Quando rememorou as grades da prisão, lembrou-se dos personagens
dos sonhos de outrora: ele sob o cognome de Mancara e seu bando. “O que
significavam aqueles sonhos?”. “Seriam a previsão da vida ativa e
transformadora em favor dos marginalizados? Mas se não eram, que diferença isso
faria?”. Foi assim que descobriu o significado das palavras marcantes do sonho
daquela noite: não poderia perder tempo em pensar estaticamente, pois os
projetos não têm sentido se não forem concretizados, mas diante do primeiro
passo de concretização já são dotados de tal sentido. Era como se dissesse:
você está no caminho certo, siga em frente sem se preocupar, tenha um horizonte
em sua mira e descobrirá que rumo tomar. O barco de sua vida, agora navegaria
sobre as águas de um rio calmo e silencioso em direção ao oceano da realização.
Naquele dia, como era de se esperar, passou por muitas
experiências emocionantes. Descobriu que, apesar de defender idéias liberais,
possuía a sua dose de preconceito. Isto ficou mais claro para ele diante de
dois diálogos; um no meretrício: “Já sei o que vocês vêm falar: que eu tenho
que entregar meu coração pra Deus e que minha vida vai mudar. Mas, saibam que
não tenho por quê fazer isso. Meu pai é rico e se estou aqui é porque quero
viver minhas aventuras. Há aqui mulheres que têm que se entregar pelo dinheiro,
mas eu, somente quero a minha liberdade para vingar-me daqueles que se achavam
donos de minha vida!”; e o outro na prisão: “Você não passou, nem mesmo pela
metade do que eu passei. Quando eu sair daqui, vou infiltrar bombas por toda a
cidade. Todos vão pagar pelo que fizeram a mim!”.
Em geral, todas as prostitutas eram atenciosas e choravam
amargamente a sua condição. O mesmo acontecia aos presos que prometiam mudar de
vida, caso saíssem dali. Aqueles dois, porém, eram pessoas rudes e não se
mostravam nem um pouco interessados em qualquer conselho que lhes fosse dado.
Achavam-se os donos de seus destinos. Isso mostrou a Vítor, que nada no mundo é
simplesmente o que aparenta aos nossos olhos. Quem poderia realmente descobrir
o que ia escondido nas atitudes daquelas pessoas? Quem poderia ajudá-los?
No final da tarde, encontrou-se novamente com Daniel e,
com ele conversou longas horas sobre as visitas realizadas naquele dia.
Escutando atentamente, Daniel anotava tudo e, com um forte suspiro, disse:
- Acabo de escrever o meu livro.
Vítor queria fazer inúmeras perguntas a respeito de seu
livro, mas não o fez. Preferia saborear a novidade que poderia trazer-lhe
aquele a quem confiou muitas de suas dúvidas. Assustou-se quando,
repentinamente, Daniel falou:
- Mudando de assunto... Vítor, você nunca sai de casa? Só
envolve nestes trabalhos?
- Na verdade sim. Além de minha profissão a minha única
ocupação é o “Projeto”.
- Mas não tem namorada ou alguém com quem vá fazer algo
diferente durante os finais de semana?
- Não! Quem precisa disso para ser feliz?
- Não precisa iniciar suas elucubrações filosóficas. Só
quero saber, porque não tem namorada! Se é por medo de enfrentar uma nova
responsabilidade nesta área ou se é porque não encontrou a pessoa certa.
- Fico com a segunda.
- Foi o que eu pensei. Mas como vai encontrar alguém se
não sai senão a trabalho. Lembre-se ninguém vai atrás de você, ninguém tem
estrela na testa. Mas se espera por alguém, me diga como que o ajudarei.
Vítor sentiu-se incomodado com aquelas interrogações.
Aquele se tornara um de seus melhores amigos havia muito pouco tempo e já
começava a opinar sobre sua vida. Mas lembrou-se do sonho da noite anterior e,
levantando-se, balançava as mãos ao ar como um poeta ao recitar um soneto a um
grande público:
- Quero uma mulher que seja sorridente, mas que seu
sorriso seja sincero; quero uma mulher que seja sincera, mas que a sua
sinceridade seja humilde; quero uma mulher que seja humilde, mas que sua
humildade seja sublime; quero uma mulher que seja sublime, mas que na sua
nobreza seja carinhosa; quero uma mulher que seja carinhosa, mas que seu
carinho seja sinônimo de liberdade!
Batendo palmas, Daniel se levantou e disse:
- Bravo! Bravo! Mas sonhador, seria possível imaginar
algo de acordo com a realidade?
- Escute o que agora eu lhe digo. As coisas magnânimas da
vida acontecem quando menos esperamos, mas nunca tarde demais se as soubermos
aproveitar.
Vítor falava como quem tem convicção no que diz e, com um
sorriso aberto, despediu-se de Daniel. Este sentiu uma sensação que há muito
não experimentava. Queria analisar as atitudes de Vítor, mas não sabia explicar
o que agora sentia. Uma força inexplicável partira das palavras de Vitor. Como
poderia um jovem solitário emanar tanta alegria? Mais adiante, Vítor caminhava
lentamente, porém, agora se sentia vazio como um jarro que derramou toda a sua
água para dar vida a uma flor. Mas, porque aquela sensação alojou-se em Vítor? De
qualquer forma, achava ter cumprido a missão daquele dia.
Poder do amor
O hoje nos pertence não deixemos que ele se torne
ontem para chorar por ele amanhã.
Quando lemos ou escutamos um desenrolar de fatos,
sentimo-nos senhores do universo. Uma história sempre é concluída com a
realização de todas as procuras de quem a tem vivido, mas isso aos olhos de
quem não a vive. Lamento informar, que o futuro é imprevisível e que não se
pode iludir com a vida. Somos responsáveis pelo nosso destino, em conjunto,
isto é, ninguém é capaz de determinar as suas realizações, isolado dos demais
seres. A harmonia está na multiplicidade. Em outras palavras, a nossa liberdade
é condicionada. Eis o paradoxo da existência. Estamos sozinhos no mundo,
todavia nada podemos sozinhos.
Vítor, durante muito
tempo, envolveu-se em combates contra as divisões geradas pelos homens. Não
queria um lugar de destaque, mas ajudando aos outros, acabou ajudando a si. Não
dedicava todo o seu tempo em benefício dos outros. Na verdade, a maior parte do
tempo que lhe sobrava utilizava escrevendo suas memórias.
Muito poderia relatar
sobre Vítor, mas o que tenho são lembranças de alguém que aqui esteve e deixou
a sua marca. Quando foi visto pela última vez, estava partindo com sua esposa
para um trabalho voluntário no sertão nordestino. Vítor acabara de se formar em
medicina e pretendia pôr-se a serviço dos flagelados da seca.
O futuro é imprevisível,
mas isso não lhe confere a peculiaridade do terror. Se os infortúnios são
imprevisíveis, o que se diria dos fatos alvissareiros? Todos sabemos que não há
tristeza, somente os momentos tristes, mas insistimos em supervalorizar estes a
aqueles. Vítor percebeu isso depois de muito tempo, mas não tarde. Agora sabia
o que era amar, agora experimentava a liberdade. Juntou-se a uma mulher que
também o aprendera com a vida e juntos deram as suas forças numa entrega de si
mesmos àqueles que não sabiam o que era viver, àqueles que eram o sentido para
suas existências sedentas de justiça.
Imagino que você esteja se
perguntando quem tocou o coração de Vitor com o fogo do amor. Imagino que você
já imagina, mas adianto-lhe que não gosto de finais felizes, aliás, não
acredito que a felicidade seja finita. O final é triste, simplesmente por ser
um final. A alegria não pode ser colocada sob os fatores paradigmáticos do
tempo e do espaço. Por isso, o que direi de Vítor? O que ele viveu ou o que ele
sentiu? Direi que entregou sua vida pelos que amava com um amor ágape. Direi
que entregou a sua vida a uma causa, à causa da liberdade. Sabia que se
alcançasse a felicidade perderia o sentido para existência, se soubesse qual é,
perderia a vontade de buscá-lo, se o alcançasse sem esforço não o teria por
algo tão valioso. Foi isso o que fez com que Vítor amasse Jéssica de maneira
infinita desde o primeiro momento em que a viu. Acredito que você não está
surpreso com esse desfecho! Não é meu interesse surpreendê-lo, mas sim, mostrar
que na vida tudo é regido pela lei dos ciclos: a matéria se transforma, o tempo
traz o passado que já é parte do presente, os planetas giram ao redor do sol, a
lua gira ao redor da terra, a vida gira ao redor dos projetos... Muitos desvios
os rios de suas almas tiveram, muitos leitos estreitos os fizeram transbordar,
mas, agora, juntos no oceano da plenitude, podiam gozar da grande vida
tranqüila que lhes era reservada. Entretanto, poder nem sem sempre é querer,
tranqüilidade não é sinônimo de felicidade. Juntos pretendiam mais, juntos
alcançaram mais e muito alcançariam se não fossem interceptados pelo destino.
Quando se aproximava o
natal Vítor e Jéssica comemoravam, juntamente com vários pequenos agricultores,
um assentamento de terras conquistado mediante reivindicações pela reforma
agrária. Sabiam que agora começaria a mais árdua luta, mas sentiam-se felizes.
Não possuíam muito se olharmos com os olhos humanos, mas possuíam tudo o que
alguém possa querer na vida, se olharmos com olhos divinos. Ao voltar para
casa, um dos filhos de um antigo latifundiário, ex-proprietário das terras
agora divididas, veio ao encontro deles e apontou-lhes um revólver, mas não
atirou. Mandou que implorassem a salvação dos céus, pois seus minutos na terra
eram contados. Chamando um dos capangas deu-lhe ordem para que atirasse.
Covardia igual, Vítor nunca presenciara em toda a sua vida. Quando viu apontar
a arma para Jéssica pulou em sua frente na tentativa de salvá-la.
Até hoje, quem passa
naquela rua e vê duas cruzes belamente ornadas diz com tristeza e determinação:
aqui jaz um homem e uma mulher que misturaram seu sangue para fecundar a terra
de nossa libertação.
E o amor eternizou suas
buscas.
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