O fogo celestial de uma vida em vivência

Buscas

            Há no mundo diversas procuras: da pessoa ideal para a companhia do dia-a-dia, de um emprego cuja reciprocidade vá além das características financeiras, daquilo que se perdeu, daquilo que não mais existe fora da lembrança, enfim, da felicidade. Em todas essas procuras há um sentido, mas nem por isso, há um encontro. Procurar algo, não significa necessariamente encontrá-lo. Procuramos porque temos a esperança de encontrar, mesmo que todas as procuras anteriores não tenham resultado em nada. E, assim, vamos vivendo a vida, de encontros e desencontros, de perguntas respondidas e perguntas sem respostas, de desesperos e esperanças.
Só pode ser percebido como ausente aquilo que um dia esteve presente de alguma maneira, ainda que somente na imaginação. Os sentimentos antagônicos têm essa função em nossa vida: fazem-nos valorizar aquilo que tínhamos perdido e reconquistamos. Dessa forma, a lembrança tem um poder incomensurável, já que, torna presente aquilo que já não existe, mas a sua influência é eterna.
            Em “O fogo celestial de uma vida em vivência” há uma tentativa de abstração feita na intenção de deslocar o leitor para o âmago de um adolescente que vive a situação vivida por muitos outros: o êxodo rural ocasionado, principalmente, por fatores sócio-econômicos. Este acontece em um ambiente de angústia em deixar uma vida toda direcionada e planejada para a vivência de uma vida incerta: eis o “medo do diferente” que acompanha a todo ser humano; afinal de contas, quem nunca teve medo da mudança? Toda opção vem acompanhada de renúncias, mas pode também determinar realizações que acontecem paulatinamente.
Outra idéia subliminar, encontra-se nas atitudes do ser humano que, muitas vezes, estima demasiadamente os momentos não vividos e as renúncias feitas, esquecendo-se de valorizar a felicidade presente em cada momento: porque esperar um momento futuro para ser feliz? Este é o horizonte no qual se deve mirar para que se entenda a mensagem de “O fogo celestial de uma vida em vivência”. Este fogo é a felicidade encontrada pela Esperança, pela Liberdade e pela complementaridade do Amor. Deve-se ter em vista, não somente os fatos, banais como todo acontecimento da rotina diária, mas a reflexão dos mesmos para a vida em vivência.

Curiosidade

Caminhava em uma rua de Petrópolis numa manhã em que o sol desfazia a neblina do dia anterior, dando aos transeuntes uma beleza natural e deslumbrante. Passeava tranqüilamente admirando os monumentos sempre vistos por mim na correria dos dias. Enquanto reparava nas formas de um prédio, antigo Seminário Lazarista construído em 1897, avistei um jovem que parecia ter em média uns vinte anos de idade. Segui aquele jovem com um olhar perscrutador, não parecia ansioso nem estranho no caminhar, mas me chamou a atenção por carregar consigo uma agenda apertando-a no peito com força; quando passou sobre uma ponte, atirou-a no córrego. Em seguida, respirando profundamente, correu sem olhar para trás. Como não satisfizesse a minha curiosidade, desci ao córrego e, com um bambu, puxei a agenda que flutuava na água, mas não seguia a direção das pequenas correntes, estava agarrada entre duas pedras. Não me lembro o que pretendia encontrar ali, mas sei que desejava saber o motivo de tal atitude. Abrindo aquela agenda rapidamente, observei que se tratava de uma história cuja veracidade não era aparente de imediato, apesar das páginas estarem datadas como em um diário. Levei-a para casa e deixei que secasse sob o sol.
No outro dia, quando voltava do trabalho, avistei na janela do ônibus que passava o rosto do jovem que vi no dia anterior. Com certeza estava de partida. Chegando em casa, peguei a agenda e, com dificuldade, li aqueles escritos manchados pela água que contavam a seguinte história...

Perspectivas da Cidade Grande

            Quando descrevemos um fato nunca deixamos de nos lembrar dos detalhes ocorridos e o florimos de acordo com o estigma de emoção que ainda se faz presente. Se assim não fosse, nada do que foi teria a magia da qual é envolvido simplesmente por não mais ser. Exagero se dirá de certos detalhes, mas o que se vive é inefável e pertence a uma ocasião no presente que se tornou passado e que nunca mais voltará a ser o que foi. Eis a origem da magia da ausência.
            Era verão, mas o sol já não parecia transmitir o seu brilho de antes. Sentia a falta de todo o ar puro que me acompanhava nas idas e vindas do interior. O silêncio de um tranqüilo povoado fora agora substituído por um intenso barulho de carros, fábricas e pessoas em contínua pressa e movimento, já que, naquela grande cidade, tempo era dinheiro. As pequenas casas do interior que forneciam um conforto inigualável foram agora substituídas por vultosos edifícios nos quais pessoas vivem em apartamentos (que deveriam se chamar apertamentos, já que nestes, lutava-se continuamente pela falta de espaço). As sombras aconchegantes das árvores, o despertar, ao amanhecer, com o canto do galo que reboava facilmente no silêncio e antecipava o lindo arrebol, o cantar harmonioso dos pássaros, a orquestra sinfônica dos sapos, dos grilos e demais animais ao anoitecer, enfim, tudo o que fazia parte de minha vida dando-lhe a harmonia que, somente agora, valorizava verdadeiramente, desaparecera. Tudo era tão diferente!
            Ninguém parecia se preocupar com um lazer tranqüilo. quando aquelas pessoas paravam para isso, somente buscavam os lugares de grandes complexos como estádios, shows e, quando sós, pareciam ter medo do silêncio, pois a televisão e o rádio não paravam de funcionar e, o que é pior, em alto volume.
            Os momentos mais frutuosos de amizade, amor e afeto pareciam não mais existir, o que fez com que eu achasse que minha vida naquele lugar seria por demais monótona.
            Eu, no momento sem nada poder fazer, ficava estupefato com tanta correria e, mais ainda, com tanto individualismo. Imaginava o que estariam aquelas inúmeras pessoas pensando e para que tinham tanta pressa! Corriam atrás de algo que nunca encontravam e, nesta correria, só se preocupavam consigo mesmas. Era a rotina das grandes cidades que esperava mais um representante para a sua busca de sentido e algo me dizia que o próximo candidato para tal seria eu.
            Como já não bastasse, nem mesmo consegui despedir-me de meus amigos, pois sua tristeza pela morte de um querido padre não deixava que um pouco de atenção fosse em mim despendida. Tudo isso me fazia colocar como incógnita o que poderia me acontecer. Preferi sair silenciosamente e correr atrás de meu futuro, ou melhor, do futuro projetado a partir de então; já que hoje posso dizer com segurança que ele não existe e que a vida é um mistério, planejamos algo, mas nossos projetos são frustrados por inúmeros imprevistos e, o mais certo deles, a morte, chega de uma maneira tão imprevista quanto os demais imprevistos, porém ninguém a espera como uma amiga. Ela chega devagar e, por mais que tenhamos certeza que dela participaremos, nunca aceitamos encará-la frente a frente. Ela é a maior surpresa que se pode ter numa vida tão cheia de planos como a do ser humano: pessoas que nunca andaram de avião de repente morreram em um acidente causado por um avião que caiu em suas casas, crianças que nunca andaram em brinquedos perigosos, de repente, morrem por um leve tombo que atinge uma região fatal. Todas estas reflexões colocavam como incerto não somente o meu futuro, mas também, o tempo que ainda teria para construí-lo.
             Tudo isso me inquietava e me deixava na perspectiva de uma vida tão agitada que não me daria nenhuma chance para viver em sintonia com as pessoas. Vida esta, tão embrenhada na rotina da cidade grande, que poderia acabar me deixando na solidão em meio àquela multidão.

Lembrança de viver

Lembro-me de toda aquela vida deixada no interior: “aquilo que era vida!” Trabalhávamos a semana toda, mas sabíamos que nosso esforço seria recompensado por um descanso que, agora, não seria menos merecido. Dizia eu a mim mesmo, nestas horas de deleite nas quais planejava o meu futuro, olhando o horizonte de uma preguiçosa rede: “Ah Vítor! Um dia nestas roças estarão seus filhos trabalhando felizes, satisfeitos com a vida tranqüila que terão. Sua esposa, bonita e feliz, olhará com você este horizonte que parece não se acabar. À noite, uma viola cantará melodias infinitas aproveitando as noites de luar. Sonhe Vítor, sonhe! Sonhar vale a pena, não custa nada!”. Olhar de criança, olhar de esperança.
Morávamos em uma pequena fazenda próxima de um povoado sem nenhuma infra-estrutura. Todos os dias, pela manhã, levantava às cinco horas para tirar leite, cuidar das criações e, depois de tudo, entrar na lida de um agricultor que trabalhava mais pelo prazer do que pela necessidade. Meus pais eram estudados, tinham ambos o ensino médio, mas depositaram naquela região suas esperanças, até que alguns fatos vieram abalar a confiança que tinham no futuro. Lembro-me, como se fosse ontem, de meus pais discutindo para sair da situação na qual nos encontrávamos nos últimos dias:
- Lourdes, temos que arrumar uma forma de não cairmos na miséria. Produzimos pouco, a seca de meses atrás e a geada dessa semana me fizeram perceber que não temos muitas saídas. Além disso, o governo que nunca pensa nos pequenos agricultores tomou medidas que favorecem somente os grandes latifundiários.
- Toda essa situação é piorada ainda mais com a dificuldade de criarmos nossos filhos para o futuro. A escola mais próxima fica a vinte quilômetros e já não possui mais estrutura para comportar tantos meninos que aparecem todos os dias. Sabemos que até mesmo com estudo é difícil alguém conseguir muita coisa começando do zero, imaginemos como nossos filhos enfrentarão as dificuldades que estão aparecendo dia a dia. Nosso filho, Vítor Augusto, já está com catorze anos e ainda não terminou o primeiro grau. Nossa filha, Eulinda, já está com dezoito anos e, até hoje, nunca pensou em namoro e, seus irmãos, Marcelo e Cristian, nunca pisaram numa sala de aula que não fosse para o catecismo. Ah! George, se pudéssemos voltar à época da qual reclamávamos, mas na qual as coisas eram mais fáceis!
- Nós ao menos demos a sorte de, em nossa época, não ter estado tão difícil a sobrevivência. O mundo que o homem constrói, parece que está fazendo deste um escravo seu e, o que é pior, nenhuma mudança volta atrás.
- Parece não haver outra solução, a não ser, irmos para a cidade e tentarmos fazer a vida lá. Faremos isso pensando mais em nossos filhos que em nós mesmos. Vitória parece uma cidade que poderá dar recursos para continuarmos com nossa difícil missão: criar nossos filhos para o mundo.
Não sabiam eles que eu estava atrás da porta escutando toda a conversa e, naquele momento, simplesmente, chorei. Todos os projetos que eu tinha acabaram caindo no chão juntamente com minhas lágrimas.
O futuro já não era tão certo como outrora e, todas as raízes que ali a família Bresser plantara, agora, como que atingidas pela mesma seca de meses atrás, não poderiam mais produzir. Mas o sulco deixado na terra não se fecharia jamais. É o estigma de quem é levado a enfrentar os dilemas da liberdade mesmo contra a vontade.
Decidi então, viver mais intensamente aqueles dias, o que não conseguiria fazer sem muito lamentar.

Corrida contra o tempo

Depois de sair dali, comecei a pensar em minha triste sorte. Percebi que tudo o que havia planejado para o futuro havia se tornado nada mais que gotas d’água numa panela quente. Minhas sensações alternavam-se entre tristeza e alegria. Alegria por descobrir coisas recônditas sobre minha vida naquele lugar e tristeza por deixar uma vida cujo futuro parecia de concretização de todas as esperanças.
Aqueles com os quais sempre reparti meus projetos nem imaginavam o que se passava em meu interior. Procurei camuflar minha tristeza, mas não consegui, precisava desabafar. Contei primeiramente a Suzy que, calada, escutava. Parecia nem prestar atenção no que eu falava, pois seu olhar fixava-se perdido no horizonte. Para minha surpresa escutei com voz chorosa a triste exclamação:
- O homem faz, Deus desfaz! A sua tristeza não é maior que a minha, pois nunca tive um amigo como você, e você possui vários amigos e, com seu jeito, conquistará muitos outros. Gosto tanto de você! De seu jeito, de sua agradável conversa: uma mistura de saber desinteressado e assuntos do dia-a-dia. Percebo que mesmo estando perto de você agora, parece que já o vejo a quilômetros de distância.
Depois daquelas palavras tão sinceras e comoventes chorei disfarçadamente, pois não desejava causar mais comoção. Nunca havia percebido quão grande era a amizade de Suzy por mim. Pena que precisei sair para tão longe para, então,  perceber algo que era tão explícito em nossas conversas debaixo de árvores que nos ofereciam chuvas de flores a cada carícia do vento primaveril.
Quando as lágrimas secaram em meu rosto, suspirei e, com a alegria de uma grande amizade que só agora eu havia descoberto plenamente, misturou-se à tristeza de não mais poder estar perto de quem gostava tanto de mim. Lamentei mais uma vez a minha triste sorte e me senti como alguém que tinha alguma importância na vida de outras pessoas. E, daquele momento, não saiu nem uma vírgula sequer. As palavras de Suzy, que muito me cativaram, ficaram tão gravadas em meu coração quanto um esculpido sobre um diamante:
- Não se esqueça de mim Vítor. Porque, quanto a mim, por mais que eu tente, não esquecerei de você. O meu consolo, nas horas de recordação de nossos preciosos momentos, será saber que alguém ainda pensa em mim da mesma maneira que eu penso nele.
Aquele momento foi um dos quais sempre darei glórias a Deus. Sabia que seria bem menos doloroso sair sem falar nada com ninguém, mas era preciso que tivesse um motivo bem justo para explicar tanta tristeza que transparecia em meu rosto naqueles dias.
Sempre tinha inspirações para fazer comparações e poemas que expressavam de uma maneira toda especial o que sentia, mesmo na tristeza (achava que tinha vocação para poeta). Desta maneira, nos momentos em que alguém, querendo testar o meu humor, pedia-me para recitar algo, dizia-lhe com toda entonação uma poesia que fiz juntamente com meu pai:

Nos momentos de tristeza
Procuro algo que me demonstre beleza,
Nos momentos de dor
Procuro algo que me demonstre amor,
Nos momentos de solidão
Procuro algo que me demonstre a razão,
Nos momentos de alegria
Procuro algo que sirva aos outros de valia.

Naquele momento, porém (voltando a falar do momento em que conversava com Suzy), não posso explicar o que senti. Sabia que nenhuma palavra sairia de minha boca facilmente. O silêncio foi a melhor forma de dizer o quanto me cativaram aquelas palavras. E foi dessa forma que dela me despedi, apesar de faltarem ainda alguns dias para mudarmos para a cidade. Se eu tivesse algum motivo que determinasse a minha ida para outro lugar, se dependesse de mim, Suzy seria o motivo suficiente para que eu ficasse.
Na volta, encontrei amigos com os quais eu partilhava um divertimento numa “pelada” durante os sábados no pasto. Parecia ter visto um fantasma e estar sofrendo, até então, os efeitos do susto. Breno, que nunca tinha me visto num estado tão deprimido, me perguntou:
- O que entristece você? Você parece outro? Não joga mais com aquele ânimo que nos impulsiona mesmo quando nosso time perde de tantos gols! Diga-me, o que está acontecendo?
Não era necessário ser um bom psicólogo para perceber que algo me incomodava. Sabia que aquelas palavras não partiram do nada, mas sim do que transparecia, de uma mente que não sabia fazer outra coisa a não ser sofrer por algo que ainda estava para vir. Não podendo mais esconder, discorri de forma melodramática:
- Não sei se devia adiantar uma notícia tão triste para mim, mas tão breve de se realizar quanto a chuva que sabemos que vai cair já pelas nuvens a se formar...
Contei-lhe então todo o diálogo que escutei de meus pais e sua decisão. Atentamente me escutou como alguém que poderia me ajudar de alguma maneira, mas sabia, no entanto, que nada que fizéssemos mudaria uma decisão tão irreversível quanto a metamorfose de uma lagarta.
O sarcasmo dessas comparações é tão eloqüente quanto a dor que sinto ao relembrar esses acontecimentos que pungem com veemência em minha alma. Evidentemente, não usei esta mesma linguagem com a qual recordo o passado. De fato, sempre recorro a estes artifícios para não me banhar em lágrimas e não molhar com elas o papel no qual escrevo o que se encontra marcado em minha memória.
Filipe, meu melhor amigo, foi o único que não notou o estado em que eu me encontrava. Isso, naquele momento, não me chamou a atenção: preocupava-me, somente em relatar toda a minha angústia, pronto para receber um retorno, o qual não veio.
Por um instante, ao anoitecer, parei e pensei na maneira egoísta com a qual ele conversou comigo: só falava de si, de suas angústias, de suas esperanças e de suas indecisões, mas, ao parar para refletir, percebi que o egoísmo que a ele atribuí, na verdade era meu; por um anseio de satisfação de meus desejos egoístas, queria que todos estivessem ao meu redor lamentando a minha partida. Não percebi que meu amigo estava passando por momentos tão decisivos em sua vida quanto os meus: Luanda, sua namorada, queria que ele tomasse uma decisão séria em relação ao seu futuro, ou o casamento ou o término do namoro. Ele não sabia o que fazer, afinal de contas, tinha apenas dezoito anos e nem sequer tinha um emprego que garantisse a formação de uma família, porém angustiava-se ao se ver sozinho, sem aquela que amava. Ela? Só pensava em sair de casa e ficar livre de seus pais que não deixavam que desse um espirro sem sua permissão. Veio então Filipe a seu melhor amigo (apesar da grande diferença de idade entre nós) para relatar a sua indecisão, mas eu me preocupava somente com meus interesses. Minha atitude egoísta fez com que eu chorasse amargamente mais uma vez, não por causa do que antes me preocupava, porém por ser tão vulnerável a erros que poderia, em uma semana, perder não somente a presença física de meus amigos, mas, também, toda a amizade que por mim ainda teriam, mesmo após a minha partida.
Um dia de tantos acontecimentos foi aquele que, por nele pensar, fiquei até as duas horas da manhã sem dormir. Parecia que uma tomada tinha sido ligada em minha mente e não desligava. Por mais que eu tentasse dormir, pensando até mesmo no que sonhar, não saía de minha mente tudo o que naquele dia se passara. Para tentar dormir, resolvi rezar o terço, devoção que cultivei desde criança. Neste momento, o sono chegou juntamente com a décima Ave-Maria, razão pela qual não terminei de rezar e, dormi em cima do terço, acordando com o mesmo, no outro dia, grudado em meu rosto.
Você já percebeu a infinidade de coisas engraçadas que acontecem quando estamos tristes? Pena, que não as podemos enxergar, a não ser no futuro quando delas nos lembramos. Somente quem as vive sabe como elas realmente se fixam, por mais banais que pareçam.
 

Hábitos do cotidiano


No interior, tínhamos vários costumes. A vida era tranqüila e solidária. Quando alguém necessitava de algo e contava com a ajuda de outro, imediatamente, todos se juntavam e seu problema era resolvido à medida do possível. A solidariedade era uma característica marcante em nossa vida, participávamos sempre de mutirões. O povo tinha algo que o unia em profundidade, não sabia o quê, nem de que forma. Imagino que a religião era uma das causas disso. A simplicidade devota daquele povo fazia-o colocar em Deus toda a sua segurança.
Toda semana, aos domingos, íamos à missa e dela participávamos alegremente. Este era um dia diferente: a rua se encontrava repleta de crianças brincando; os bares cheios de jogadores que desfrutavam, depois da dura lida da semana, de um lazer agradável com os colegas; das casas ressoavam sons de rádio ou de viola. Nada poderia estragar aquele dia. Algumas vezes, excessos na bebida causavam brigas, mas, na semana seguinte, tudo voltava ao normal, pois lá quem não vivesse em harmonia, não conseguiria nunca fingir a inexistência de seus inimigos num lugar onde todos se conheciam e se viam todos os dias.
Até mesmo a forma de nos vestirmos era diferente. Durante a semana mamãe não se preocupava com a roupa que vestíamos a menos que estivesse suja ou rasgada, mas, aos domingos, nos vestia com as roupas mais novas que possuíamos. Era o dia mais alegre da semana e o mais esperado. Realmente aquele dia era dia de festa!
Durante a semana, íamos a diversos terços. Minha mãe, mulher devota de Nossa Senhora da Conceição, não perdia um terço sequer. Ora para rezar a pedir por um doente, ora por causa do falecimento de um amigo, lá estava ela rezando, cantando e louvando a Deus.
Naquele ambiente fui criado sem me preocupar com o futuro, apesar dos inúmeros planos que para ele fazia. Era extrovertido e falava muito. Buscava a atenção das pessoas em todo momento. Diziam que eu era um garoto especial. Tudo isso me fazia acreditar em minhas próprias capacidades e, com orgulho, exclamar sempre a mim mesmo: “ah Vítor, Você chegará longe!”. Apesar disso, buscava ser humilde e acreditava que só conseguiria alcançar meus objetivos se fosse ajudado por uma ‘força superior’.
Naquela última semana, até mesmo os terços eram diferentes. As orações se voltavam para a incerteza do futuro de nossa família na cidade grande. Meus pais não tinham a ilusão de resolver todos os problemas ao tomar aquela decisão; vários amigos nossos, depois de algum tempo na cidade grande, voltaram cabisbaixos falando das dificuldades enfrentadas. Alguns deles chegaram até mesmo a mendigar para conseguir o dinheiro necessário para voltar. Para minha família, no entanto, aquela decisão era tão necessária quanto é necessário respirar para sobreviver (talvez nem tanto, mas era o que parecia). Tudo isso era objeto de muita oração e ansiedade.



Chegada à cidade grande


            Finalmente chegou o dia da partida. Passamos todo o dia anterior preparando a mudança. O sol ainda não tivera coragem de aparecer, eram apenas três horas da manhã e a natureza parecia dormir, pois nada nela demonstrava o lamento de nossa partida. Meus pais escolheram esta hora para fugir das despedidas ao passar pela pequena cidade. Muitos amigos nossos, como nós, também não gostavam de despedidas, mas, ao partir, não conseguiam esquivar-se das dolorosas e comoventes partidas. Nós, porém, partimos sem que ninguém ainda estivesse acordado. Algumas horas depois todos se dariam conta de que já não estávamos em seu meio, mas talvez não nos julgariam mal por aquela atitude.
            Viajamos cerca de seis horas até Vitória. Um vento gelado entrava pela janela do caminhão. Meus irmãos dormiam tranqüilos; eu, porém, ansiosamente, olhava para toda a paisagem como se dela me despedisse. Nada do que eu imaginava parecia com aquela cidade que agora contemplava. Toda aquela correria, todo o movimento, as imensas construções, deram-me um enorme sentimento de insegurança. Sentia-me como um cachorro a correr com medo dos fogos de São João. Evidentemente eu não latia, nem mesmo corria. Estupefato perguntava a mim mesmo: o que vai ser de mim neste lugar?


Primeiros dias de aula


            No interior, freqüentei a escola poucas vezes. A professora depositava em cada aluno, além do desejo de crescimento, uma amizade materna. Minha mãe sempre dizia que ela seria a nossa segunda mãe, afinal de contas, metade de nosso dia era passada com ela. Quanta saudade tinha daquela professora com a qual tantas vezes demonstrei rebeldia para atrair-lhe à atenção sobre mim. Não sei o que mais me fazia relembrar saudosamente dela: sua tão doce voz ou a paciência com que nos ensinava.
            Naquela cidade, porém, ao meu modo de ver de criança, os professores pensavam estar falando com gravadores. Falavam como quem espera que o outro já saiba. Quando alguém fazia uma pergunta, por mais bem formulada que fosse, era o próximo candidato às chacotas da sala pelos berros da professora. No primeiro dia de aula, uma professora, com ar sisudo e com inúmeros livros de matemática, entrou, fechou a porta e, sem nada dizer, deixou o quadro repleto de operações matemáticas. Ninguém perguntava nada, alguns cochichavam: “essa é aquela professora!”. Automaticamente todos copiavam. Todas aquelas atitudes pareciam técnicas para impor respeito à turma. Mais tarde percebi que ninguém aprendera realmente aquela disciplina. Todos a estudávamos com o maior empenho, mas nenhuma das questões das provas parecia semelhante às questões que mecanicamente decorávamos.
            Na aula de história, um professor de olhar penetrante, encantou as alunas da sala que, imediatamente, puseram-se a lhe fazer diversos elogios. Primeira pergunta do dia:
- Quanto você quer tirar num ano letivo cuja maior nota é cem.
Para minha infelicidade, fui o primeiro a responder:
- Cem!
Todos me acompanharam dizendo o mesmo. Quando o último aluno respondeu, imediatamente, escutamos o professor gritando de forma irada:
- Nunca pensei que teria alunos tão ambiciosos e orgulhosos. Onde foi parar a humildade que aprenderam? Se seus pais não lhes ensinaram a ser humildes, eu vou lhes ensinar.
Um aluno, alto e magro, cujos óculos descia a todo o momento ao escorregar pelo nariz levantou-se e sentou-se novamente por medo de ser mandando para fora da sala de aula; mas, tremendo, disse:
- Sempre aprendi que não devemos ser medíocres.
- Você está me desafiando? Lembre-se de que o professor sempre tem razão, mesmo que esteja errado. Ele é seu superior e sabe a hora certa de dizer a verdade ou escondê-la.
Eu me sentia o culpado de toda aquela confusão e, por isso, perguntei com voz baixa:
- Professor! Tem hora que falar mentira é certo?
Para minha surpresa ele me respondeu no mesmo tom e, agora, com calma:
- Às vezes procurar a verdade é mergulhar num oceano de inquietações.
Não compreendi o que ele me disse, mas percebi que era melhor não questionar demais para não ser mal visto por ele.
Nada daquilo era compatível com a minha realidade. Levei um grande susto quando a professora de matemática iniciou operações com hambúrgueres. Esta palavra era mais estranha para mim quanto um extraterrestre o é para o ser humano. Com voz estridente, virou-se para mim e disse:
- Diga Vítor! Você tem três hambúrgueres, sua prima tem o dobro e seu irmão tinha o triplo, mas acabou de comer um. Quanto dá a soma dos hambúrgueres seu, de sua prima e de seu irmão?
Pensei em várias alternativas para escapar àquele problema. Poderia falar que minha prima não gosta de hambúrguer. Pensei tanto que acabei me esquecendo que na matemática o que importam são os números e perguntei:
- O que é um hambúrguer?
Naquele momento, mesmo os que pareciam dormir durante toda a aula, dispararam a rir. Eu não sabia qual era o motivo da graça, mas percebi que aquele não era o momento certo para fazer aquela pergunta quando ouvi ao meu lado um cochicho: “ele é doido, não sabe com quem tá brincando!”. Todavia a professora nada disse, fixou os olhos em mim e mandou-me ao quadro escrever enquanto ditava:
- Xis mais duas vezes xis mais, abre o parêntesis, três vezes xis menos um é igual...
Outra dificuldade que enfrentei foi a adaptação de meu jeito extrovertido e alegre. No interior, as pessoas pareciam muito mais alegres e davam mais abertura ao humor pelo humor. Na cidade, havia algo que mais tarde defini como: síndrome da tristeza; pois, o riso só era permitido quando fosse causado por uma satisfação sádica de chacota aos outros. Por estar risonho a todo instante, a turma me cognominou com vários apelidos aos quais eu reagia com certo nervosismo. Percebi que quando damos valor ao que os outros falam de nós ou ao que eles querem fazer de nossa pessoa, neste momento aproveitam-se para liberar suas potencialidades sádicas. Então, resolvi não mais dar ouvidos ao que falavam a meu respeito.
Certo dia, percebi que um colega chorava. Não sabendo do que se tratava perguntei-lhe o que havia que, se virando, me empurrou dizendo:
- Te espero após aula. Vou encher a sua cara de socos.
Ao sair da escola, fizeram uma roda em volta de nós esperando a briga iniciar. Gritavam como loucos, pareciam um bando de peruas num alvoroço. Recebi um soco no braço direito. Senti-me importante por atrair tanta atenção e, por isso, não reagi, ao contrário, dei altas gargalhadas. Percebi que isso deixou o meu colega mais irritado e falei:
- Você não me fez nada, nem eu lhe fiz coisa alguma; por que estamos brigando?
Na mesma hora todos se afastaram e, de longe, escutava as vaias e os gritos. Nenhum deles, porém, me deixaram irritado; ao contrário, fiquei feliz por ver os valores que cultivei desde criança estarem agora me servindo de valia. O que ganhei com tal atitude? Mais chacotas, contudo, mais um amigo.

O desconhecido bate à porta


            Na vida de todas as pessoas um dia aparece esse desconhecido. Todo ser é por ele dominado e nenhuma de suas ações acontece sem ele. É uma voz que chega devagar e possui a pessoa por completo, convida-a a nele encontrar sem restrições, sem medo de ser feliz, toda a sua realização. E, por mais que a pessoa tente escapar, ele a captura de uma maneira tal que ela já não vive em si mesma; seus pensamentos viajam por montanhas e colinas e, por isso, seu corpo é algo que já não a segura no local onde jaz. O mundo parece se reduzir a ele e o tempo é o único inimigo: corre rápido quando se quer que demore uma eternidade e corre devagar quando a ansiedade não deixa o momento presente ser vivido. A pessoa já não é mais a mesma, o que antes estava nela escondido, agora aparece como um tesouro oculto no fundo do mar, um sentimento recôndito no fundo da alma, uma necessidade semelhante ao ar que se respira ou ao alimento que a sacia. Sutil, penetra nos corações sem que estes possam percebê-lo e, depois que isso acontece, a pessoa se entrega a ele voluntariamente. Na mitologia grega, esse desconhecido foi tomado como o mais velho (pelo valor de sua sabedoria) e o mais jovem (pela sua beleza) de todos os deuses. A própria vida é obra deste grande artista. Todos o conhecem, mas não sabem como explicá-lo. Sua vultosa força faz com que toda pessoa dele participe, mesmo que não o demonstre em suas ações ou não o admita como parte inerente a todo ser. Por isso, ele é o fator mais conhecido empiricamente no mundo, já que ninguém foge ao seu poder e também o mais desconhecido entre os homens, pois sempre age de uma forma distintamente nova. Seu nome resume bilhões de palavras que o tentassem explicar. Entre os Gregos contava-se uma história na qual talvez se espelhe todo homem diante da inelutável força deste desconhecido, o amor: Na origem, os homens eram dotados de órgãos duplos. Eram extremamente ousados. De tanta ousadia que, certa vez, resolveram atacar o próprio Olimpo. Os deuses, enfurecidos, resolveram vingar-se. A partir de então, os homens foram separados em duas metades. O amor nasceu daí: é a eterna procura, o eterno desejo que os homens sentem de procurar a outra metade que um dia perderam. Quando alguém a encontra, encontra também a felicidade.
Repito: nenhuma pessoa escapa ao seu poder, nem mesmo eu escapei. Até então, sentia-me tranqüilo, porém, numa vida rotineira e num crescente individualismo. Vivia somente em função de mim e de meus projetos. Quando pensava em formar uma família, fazia-o sem cogitar a existência de uma pessoa que me completasse, família para mim, era uma instituição convencional da qual ninguém escaparia. Planejava a felicidade, mas somente a minha felicidade. Já acostumado aos moldes capitalistas da posse, imaginava conseguí-la como uma dona de casa que vai à feira e escolhe as frutas de boa qualidade. Atitudes egoístas rodeavam meus planos e os faziam acontecer até que fui tomado pela inefável força do amor.
O que fez com que eu me tornasse tão diferente? Fiz muitas amizades, sorria em todo momento. Ocasionalmente escutava: “há um bom tempo lhe conheci, mas só agora percebo como você é realmente, que bom seria se não julgássemos pelas aparências!”. Na verdade, aquelas palavras eram a prova incontestável de meu isolamento, mas o que afinal aconteceu para ocorrer uma mudança tão repentina?


Faces da paixão


Já havia passado dois meses de aula e ela chegou. No princípio, sentou-se em uma das carteiras do fundo da sala de aula e não conversou com ninguém. Nada falou quando lhe apresentaram aos alunos da classe. Mas, no passar de três dias, já havia feito amizade com todas as alunas. Seu nome era Jéssica Sousa e tinha 14 anos de idade. Nunca havia contemplado beleza tão rara: seus cabelos castanhos, soltos ao vento, irradiavam a luz do sol como se fizessem parte de sua essência luminosa; seu olhar de criança era tão penetrante que parecia saber o que estava escrito na alma de cada pessoa; seu sorriso, sempre presente em todos os momentos que a via, demonstrava uma alegria que contagiava a quem dela se aproximasse.
Sempre a via rodeada de amigas, mas uma presença me intrigava: Willian, nosso colega de classe. Ele não a largava nem mesmo um minuto à hora do recreio. Sempre os via voltar para casa juntos. Aquilo era o martírio para mim. Que destino o meu, apaixonar-me por uma garota que já tinha namorado! Todavia, nem mesmo isso me fez esquecê-la. Olhando no dicionário, a folheá-lo distraidamente, encontrei: Paixão – entusiasmo, ardor, amor, sofrimento... Pensei: “tudo iniciou no entusiasmo da primeira vez que a vi, seguiu-se o ardor de não me esquecer dela nem um segundo sequer, já estava, tendo as primeiras noções do que seria o amor e deparei-me com o sofrimento”.
Certa vez, fizemos uma excursão, fomos à praia para conhecer o mar e analisar geologicamente as diferenças entre costas altas e costas baixas. Para minha tristeza, Jéssica não foi, estava com uma forte gripe. Chegando lá, percebemos a realidade degradante do ser humano que destrói o mundo em que vive. Exatamente no local para onde fomos, encontramos inúmeras redes de esgoto deixando na praia uma gordurosa mancha de dejetos cujo mau cheiro era sentido à distância. Imediatamente, fomos para outra parte, onde grande número de pessoas desfrutava das belezas naturais naquela tarde de sufocante calor. Contemplamos aquela magnífica paisagem, mas não entramos n’água imediatamente. Uma das professoras quis dar um sentido de pesquisa àquele passeio e dividiu-nos em duplas para que fizéssemos uma redação sobre a poluição litorânea. Chamou-nos dois a dois e deu-nos uma prancheta para que nela descrevêssemos a sensação que tivemos ao deparar com os dois lugares cujas diferenças só dependiam das conseqüências das atitudes humanas. Para minha surpresa, ela me chamou e disse:
- Você Vitor, irá fazer o trabalho junto com o Willian.
Quis pedir a ela que me deixasse fazer aquela redação com outra pessoa, mas não teria argumentos para justificar tal preferência. Pegando a prancheta, fui para um lado da praia, esperando ser seguido por aquele que era a razão de meu ciúme para com Jéssica. Foi assim que o senti bater-me, como um amigo, às costas e pensei em descarregar a ira que tinha acumulado instantaneamente naqueles últimos dias, mas ele me disse:
- Ali há um quiosque. Vamos para lá e, enquanto escrevemos, pago-lhe um refrigerante.
Aquele balde de água fria fez com que eu respondesse calmamente:
- Não precisa se preocupar, eu já trouxe tudo em minha mochila.
Lá, escrevemos rapidamente nossa redação. Tínhamos opiniões iguais em tudo. Até mesmo me esqueci dos sentimentos que acumulara contra ele anteriormente. Quando terminamos um lanche, encorajei-me e perguntei:
- E Jéssica, por que não veio?
Eu sabia perfeitamente qual era motivo de Jéssica não haver ido àquela excussão, pois vi o bilhete de sua mãe nas mãos da professora, mas queria saber o que havia entre ela e Willian. Ele, abaixando a cabeça, disse:
- Mãe não a deixou vir. Na verdade, nem mesmo quis que eu viesse, mas Jéssica insistiu para que ela me deixasse vir e, depois eu lhe contaria o que eu vira. Nem nossa irmã mais nova, Liliane, pôde vir...
Meu coração queria saltar do peito ao ouvir aquilo: Willian era irmão de Jéssica. A partir deste momento, tudo o que ouviram de mim naquele passeio foram anedotas, altas risadas e pieguices. Uma professora, quando voltávamos, disse sarcasticamente:
- Ah, Vitor! Viu passarinho verde, hein!
Se Jéssica tivesse ido àquela excussão, não sei quanto tempo mais, eu viveria na dúvida de outrora, mas tudo aquilo determinou a emoção que se entranhou em meu ser e, a partir daqueles dias, a paixão voltou a significar ardor.


Obra do acaso


Estávamos no mês de maio, já haviam passado três meses desde que a conheci, ou melhor, desde que a vi pela primeira vez, pois, até então, nunca tinha tido a coragem de dela me aproximar.
Distraía-me quase sempre durante as aulas, não me juntava à roda dos bagunceiros da sala e, nem mesmo me importava com as chacotas que faziam a meu respeito. A vida que antes planejara tornou-se banal e os sonhos povoaram as minhas noites como por um encanto. Provavelmente outras mudanças viriam por em risco novamente a minha felicidade ilusória. Por mais que tentasse escapar aos pensamentos, neles me deleitava. O sabor daqueles pensamentos dava-me uma sensação estranha, a de um conflito entre forças opostas: alegria e tristeza, êxtase e angústia, ansiedade e preocupação...
O melhor dia da semana passou a ser a segunda-feira. Os dias mais angustiantes de minha vida eram os do final de semana. Passava-os definhando-me em pensamentos ansiosos e reflexões sem sentido. Aos outros, parecia que algo muito sério me preocupava. Todos me perguntavam o que havia acontecido ao meu constante bom humor, mas nada me tirava daquela sensação de solidão. Todos os pensamentos eram direcionados para ela e, por mais que eu soubesse que, de nela pensar, só me angustiaria, não fazia outra coisa a não ser isso.
Apesar da força de meus sentimentos, não fui capaz de procurá-la nem mesmo para conversar. Deixei-me levar pelo pensamento de que aquilo era algo passageiro e fui vivendo meus dias na procura de voltar à estabilidade emocional na qual me refugiaria. Na verdade, aquela era a forma que encontrei para justificar a minha falta coragem. Além de tudo, sabia, ou melhor, imaginava que ela não sentia o mesmo por mim. Dessa forma, passavam-se os dias, mas nenhuma iniciativa de minha parte era tomada. Preferi ficar na falsa segurança de nunca escutar um não, a arriscar dar um passo para a minha felicidade.
Certa ocasião, na escola, a professora de matemática organizou grupos de trabalho. Nomeou na sala aqueles que tinham maior facilidade em sua disciplina para que ajudassem aos outros. Novamente, uma professora me ajudaria mesmo sem tal intenção, a me aproximar de alguma forma daquela que fazia parte de meus sonhos de garoto apaixonado. Fui designado ajudante do grupo de Jéssica e, nesse dia, as esperanças se tornaram mais vivas do que nunca. O Grupo era composto por pessoas muito interessadas, o que facilitou a minha atuação. Jéssica era muito arguciosa, não sabia eu o que fazer para ajudar uma pessoa que até mesmo me corrigia em minhas somas. Havia algo que fazia com que eu não me concentrasse quando iria ajudá-la. Evidentemente, não é necessário falar o quê.
            A partir daquele grupo, uma amizade, jamais imaginada por mim, crescia como uma flor regada com água e com muito amor. Ao pronunciar o seu nome, eu estremecia da cabeça aos pés com o receio de que ela não me escutasse. Aquela insegurança foi com o tempo superada, mas eu ainda não tinha a coragem de dizer o que sentia por ela.

Período obscuro


            Às vezes eu me achava o homem mais feliz do mundo por ter uma amizade tão linda com uma pessoa tão bela como Jéssica. Nossas oportunidades de conversas aumentaram paulatinamente. Sempre, ao sair da escola, ela me esperava para que juntos conversássemos sobre a aula, sobre os planos para o que restava do dia e para, junto com alguns colegas, cantar e contar anedotas. Insistia eu em sempre me lembrar de algo que pudesse interessá-la. Todo silêncio era inquietante: deixava-me numa sensação de vazio e, o melhor que eu poderia fazer quando acabavam os assuntos era despedir-me.
            Um dia fiquei sabendo que ela escutava um programa de rádio às onze horas da noite e, como eu estudava até esse horário, passei a escutá-lo. Quando ouvia músicas que eram oferecidas por amigos, namorados e parentes, imaginava escutar o meu nome. Sonhava com o dia em que, no meio de uma programação, escutaria uma mensagem de Jéssica a mim dirigida. Um dia resolvi oferecer-lhe uma música pelo rádio. Fiquei acordado até as doze e quinze da noite até escutá-la. No outro dia, esperava que Jéssica viesse a mim e, com um simples sorriso comentasse sobre isso, mas quando a vi, não sorriu e nem falou coisa alguma. Naquele dia não parou após a aula para conversarmos. Aquela atitude nunca fora explicada. Fiquei durante todo o dia a imaginar o que teria acontecido. Teria estragado nossa amizade ou ela simplesmente não havia escutado à programação daquela noite. Em outro dia, perguntando-lhe sobre isso, nada me respondeu. Não se lembrava de tal dia. Essa é uma das coisas que o presente ao se tornar passado toma de nós: a realidade sem mistificações ou esquecimentos.
Em muitas ocasiões, Jéssica dizia querer falar algo após a aula. Naquele dia, todo empenho para concentrar-me era inútil. Meus esforços somente se dirigiam para a tentativa de descobrir o que ela queria me falar. O tempo passava devagar e, após a aula, subíamos juntos o morro que levaria tanto à minha casa como à dela. Nessa subida, falávamos sobre os vários assuntos de sempre, mas nunca sobre o que ela gostaria de me falar (era o que eu imaginava). No final do caminho eu perguntava:
- O que é que você disse que gostaria de falar comigo?
E ela respondia com um sorriso inquestionavelmente convincente:
- Não se preocupe, não é nada importante!
Naquele dia, não conseguiria fazer mais nada a não ser pensar no que ela poderia ter falado a mim. Mais uma vez, continuaria me definhando na procura de meios para afastar-me daquela sensação de alegria triste, angústia macabra e morbidez tétrica que todo silêncio me transmitia. E nesse dia, meus versos eram desprovidos de rimas e muito estranhos:

Meu espírito está tão mórbido, como um enterro;
Minha sorte parece dar ouvidos às vozes da sexta-feira 13;
Meu dia parece nublado apesar de tanto sol;
Os únicos amigos que me restam são o vinho
E o gato preto que encontrei hoje na encruzilhada
A devorar um despacho por mim oferecido.

Muitas vezes alguém lia versos como estes sobre a minha mesa e me perguntava qual era a razão de tanto pessimismo e eu, tentando disfarçar, respondia sorrindo:
- A rapadura é doce, mas não é mole, meu amigo. É a vida que nos faz sermos o que somos e estar como estamos e isso é só o que eu tenho a lhe dizer.
E escutava como resposta:
- Seja otimista, a rapadura é dura, mas é doce! Se está passando por um momento difícil faça de conta que está numa canoa furada remando contra a maré só para exercitar.
- Eu já ouvi isso em algum lugar!
- Então deixe que essas palavras façam reviver seu otimismo! Veja, não é preciso fechar os olhos, basta olhar a realidade de outra forma.


Agindo contra o sentimento


Certa ocasião, no último dia de aula do semestre, Jéssica disse novamente que gostaria de falar comigo. Já haviam passado quatro meses desde que com ela conversei pela primeira vez. Desta vez, imaginava que nada impediria que ela falasse o que realmente tinha a me dizer: seus olhos demonstravam indecisão, sua fala fora cortada como se tivesse levado um susto, seu sorriso tão constante já não aparecia com a mesma facilidade. Eu já não estava tão ansioso como das outras vezes, algo parecia me dizer que aquele não era o meu dia de sorte, apesar de que a mesma parecia bater em minha porta. Após a aula, como de costume, encontrei-a tão ansiosa para falar como nunca e perguntei sorrateiramente:
- O que você queria me falar?
Sem precisar insistir ela começou a andar devagar e falou:
- Vítor! Você é a única pessoa na qual tenho tanta confiança. Já disse a você várias vezes que não tenho iniciativa para nada. Aliás, no mundo de hoje, pobre da mulher que tem iniciativa e diz o que sente a alguém...
Imaginei: “esta indireta deve estar se referindo a mim”. De repente ela silenciou como se esperasse uma resposta, mesmo sem ter perguntado coisa alguma. Como eu também nada dissesse ela prosseguiu:
- Você sabe o que as pessoas dizem de nossa amizade? Dizem que somos apaixonados um pelo outro. Não sei, mas...
Por mais que eu tentasse, nada consegui dizer. O silêncio pairou, este incomodava tanto a mim quanto a ela. Ambos esperávamos uma iniciativa um do outro. O que fazer? O que dizer? O acaso havia feito a sua parte, mas eu não conseguia fazer a minha. Andamos silenciosamente cerca de três minutos até que ela disse:
- Último dia de aula é tão cansativo. Os professores insistem em lançar matéria, mesmo com todas as notas fechadas. Não sei se estou cansada por causa da aula ou do sono, esta noite dormi uma hora da manhã...
Notei que ela conseguira um bom meio para cortar aquele assunto que parecia não ter fim. Eu tremia por inteiro e não sabia o que dizer, só esperava escutar. Ela falava como uma mulher que coloca remendos aqui e ali numa roupa rasgada. Mudava de um assunto para outro sem que nenhum deles tivesse relação entre si. Mas, de repente, escutei algo que preferiria não ter escutado:
- David, aquele meu colega da aula de música que você conheceu outro dia, pediu para namorar-me. Pedi um tempo para pensar e, agora, encontro-me nessa indecisão. O que você acha?
Aquelas palavras foram duras demais para mim. Pelo seu olhar ou pelo meu orgulho sabia que naquela interrogação estava incutida uma indagação: “Se você não quiser namorar-me, aceitarei namorar o David”. Pensei: “Se ela estivesse realmente gostando dele, não teria indecisão alguma!”. Eu, naquele momento, com a coragem mais minguada do que sempre, agia como se fosse uma pessoa à parte daquela história. Não queria que ela fosse influenciada por meus sentimentos e achei que seria melhor esperar que o tempo demonstrasse a ela o que eu sentia. Como já não bastasse não ter um pouco de ousadia em falar-lhe, disfarcei minha angústia aconselhando a ela:
- Veja quais são as intenções de David, talvez ele seja a pessoa que você tanto procura!
Não posso explicar o que me fez agir daquela maneira. Sei somente que esperava que ela não concordasse comigo como das outras vezes. Infelizmente, desta vez não pude evitá-lo.
Jéssica se despediu e foi para casa. Seu olhar, outrora indeciso, agora parecia esconder uma tristeza. Seria a decepção do que eu lhe dissera ou a indecisão diante da proposta de David? Talvez era simplesmente a aparência do cansaço que relatara. Não sei se fiz o certo, mas, mais uma vez, fui castigado por omitir o que sentia e não aproveitar as chances que me foram dadas pelo acaso. Mas não há nada tão ruim que não possa piorar mais um pouco.

Agora eu lamento por não ter feito o que quis,
Lamento profundamente
Por não ter sido eficiente
Em minha busca de ser feliz.


Coincidência ou azar?


            Terminaram as férias. Era chegado o momento de me reencontrar com aquela que já fazia parte de meu viver, apesar de, talvez, não estar ciente disso. Jéssica havia viajado, visitaria alguns parentes no interior. Isto fez com que eu deixasse de aproveitar do descanso que me era apresentado.
            Tentando ludibriar o tempo, trabalhei excessivamente, mas, nada do que fiz, fez com que o tempo agilizasse em seu trajeto. Cada minuto parecia um século. A inimizade entre o tempo e eu era vigente por minha ansiedade. Ansiedade em revê-la, ansiedade em falar-lhe, ansiedade em saber o resultado de nossa última conversa: teria lhe perdido? Não tive coragem de me declarar a Jéssica, contudo alimentava a esperança de não perder a sua amizade, esta era a única motivação a favor de minha falta de iniciativa. O que aconteceria se eu realmente tivesse me declarado a ela? Quem saberia, quem saberá?
            Chegou o dia tão esperado. As aulas iniciariam no meio de uma semana, pois o primeiro dia letivo, também era o primeiro do mês. Naquele dia, acordei uma hora antes que o de costume e, quando abriram os portões da escola, lá estava eu. Professores que me viram chegar, falavam de mim, em voz baixa, entre si, mas eu pude escutar uma das frases que dizia: “viu aquilo que lhe falei? Há ainda alunos interessados que esperam ansiosos por voltar às aulas!”. Quando entrei na sala de aula, ri daqueles que pensavam saber o que ia escondido dentro de minhas atitudes.
            Para aumentar mais ainda a minha ansiedade, Jéssica não compareceu àquele primeiro dia de aula. Aliás, nem mesmo metade da turma comparecera. Os professores ocuparam o tempo, conversando sobre as férias e todas as coisas banais que sempre fazemos quando não temos mais nada para fazer.         Naquela semana, não pude matar minha saudade, ela é quem quase me matou. No final de semana, resolvi sair de casa. Meus colegas, que não me viram em nenhum dia das férias a passear pelo centro, estranharam ao ver-me naquele domingo. Ficaram comigo até as oito horas da noite num shopping. Quando foram embora, resolvi assistir a um filme no cinema que começaria às dez horas. Ao chegar em casa regulei o rádio-relógio para despertar no horário em que eu pudesse sair com tranqüilidade para a aula no outro dia. Os sonhos daquela noite foram uma mistura de vários elementos desconexos e sem nenhuma ligação entre si: Jéssica e eu fomos ao Shopping e, lá, dois garotos nos pediram autógrafos. Não importávamos em dá-los, pois, neste sonho éramos atores de teatro. De repente Jéssica me chamou, tínhamos que fazer uma gravação para um filme que seria passado em duas horas. Eu estranhei tal atitude, mas não questionei. Quando entramos no cinema, percebi que no lugar do palco estava o quadro negro e no lugar das cadeiras acolchoadas estavam as carteiras ocupadas pelos alunos. Iria começar a aula e o novo professor entrou: era David que, com uma régua repreendeu o irmão de Jéssica que me perguntava quantas horas eram. Ao olhar para o relógio, percebi que eram seis e meia. Nesta hora acordei. Quando olhei para o rádio-relógio, não pude saber as horas. No meio da noite, com certeza, por algum motivo, foi interrompido o fornecimento de energia elétrica e meu rádio-relógio piscava marcando doze e trinta. Levantei-me e fui à cozinha onde vi relógio de parede que marcava sete e meia. Não havia mais tempo, não poderia entrar na escola naquele horário.
            Pensei que teria pelo menos um subterfúgio para encontrar Jéssica naquele dia: saber que matéria o professor tinha lecionado; mas, quando bati à porta de sua casa, sua mãe atendeu e, simultaneamente, saía trancando a porta. Perguntei-lhe:
            - Jéssica está? Eu queria...
            - Não repare. Eu já estou de saída. Jéssica foi à aula de música com um amigo.
            Quando disse as últimas palavras já estava do outro lado da rua. Aqueles dias realmente não pareciam meus dias de sorte. Indo para casa, liguei o rádio. Esperava me distrair um pouco. Quando aumentei um pouco o volume, escutei minha mãe a gritar do quarto: “desligue essa porcaria, quero silêncio, estou com dor de cabeça!”. É estranho uma pessoa pedir silêncio a gritar. Ri quando nisso pensei, mas, quando o silêncio voltou, senti-me inquieto, precisava fazer algo para disfarçar o vazio que aumentava gradativamente pelas obras do acaso.

Conseqüências de um agir


            Na terça-feira, não faltei à aula. Por prevenção, coloquei para despertar-me, além de meu rádio-relógio, um pequeno relógio famosíssimo pelo seu alarme. Muitos naquela cidade o possuíam. Eu não sabia onde fora fabricado, alguns diziam que era produto de contrabando paraguaio, outros, que era um material de refugo japonês, apesar da gravação: fabricado em Manaus. Não me importava de onde vinha, mas, naquele dia, fez com que eu não deixasse de ir à aula. Infelizmente, ele durou somente uma semana. Contudo, eram os dias nos quais eu achava que precisaria mais dele.
            Cheguei à escola dez minutos antes, não conseguia controlar o meu nervosismo. Quando lá cheguei, não esperava encontrar, tão cedo, aquela que esperava ansiosamente em rever. Lá estava ela, mais bela do que nunca. Sua face demonstrava o efeito que as férias tiveram sobre ela: sorria como uma criança que acaba de ganhar em seu aniversário o brinquedo que tanto esperava. Sua animação era grandiosa, principalmente quando gesticulava contando os fatos de suas animadas férias juntamente com suas primas. Após a aula, como esperava, Jéssica me chamou. Conversamos seguindo o trajeto até nossas casas. Nesse dia, nenhum de nossos colegas seguiu com a gente. Falava alegremente de seu descanso e de suas aventuras. Mas uma atitude deixou-me inquieto: quando falava sobre algo relacionado às conversas que tivera com suas primas, fixava seu olhar no alto do morro e mudava repentinamente de assunto. Parecia que me ocultava alguma coisa.
            Na sexta-feira daquela semana, saímos mais cedo. A professora de matemática não pôde comparecer, estava de licença por um motivo que eu desconhecia. Pensei que poderia ficar mais alguns minutos ao lado daquela que era a razão de meus sonhos, mas, quando a avistei, notei que abraçava alguém. Não aproximei, ao contrário, afastei-me fingindo não tê-la visto, andando rapidamente ia à frente deles. Não sabia quem a acompanhava, eu estava cego de ciúme, porém sabia que não era Willian seu irmão, este não fora à aula naquele dia. A curiosidade venceu o ciúme, comecei a andar vagarosamente, esperava escutar a voz de meu algoz. Foi assim que escutei Jéssica gritando:
            - Que pressa é essa? Vai pegar um avião ou tirar o pai da forca?
            Quando me virei, avistei a razão daquela sensação: David. Eu não sabia o que dizer, nem como me portar diante de Jéssica. Gaguejando, dei uma desculpa esfarrapada:
            - É que eu estava querendo... Ou melhor, são vocês que estão andando devagar. Nessa vagareza almoçaremos às duas horas! Mas deixa pra lá. O almoço já deve estar esfriando lá em casa.
            Não pude conter o ciúme que se manifestou através de várias racionalizações. Antes, todas as vezes que conversávamos após a aula, não nos preocupávamos com o tempo. Não era difícil entender o porquê de tanta pressa. Acredito que Jéssica entendia, porém disfarçava numa indiferença. Mas se sabia, porque me colocou contra a parede daquela forma? Nem mesmo os donos das atitudes têm certeza do porquê destas.
            Naquele dia senti como se o meu coração tivesse sido congelado, atirado ao chão e quebrado, formando partículas tão minúsculas como o vidro de uma lâmpada fluorescente quebrada. Tentei achar o lado positivo de tudo isso pensando: “quem ama quer ver a pessoa amada feliz”. Quis fazer desta frase um escudo para combater minha aflição, mas meu escudo derreteu, seu brilho cristalino não vinha do diamante, mas da água. Belíssima frase, mas seu efeito durou pouco: quem deseja a felicidade do outro não pode deixar de pensar na própria felicidade. Seria egoísmo de minha parte? A vida deu-me um escorregão e eu procurava argumentos em sua defesa, agi como uma vítima de um assassinato que ressuscitasse e declarasse a inocência de seu assassino.
           

Surpresa inesperada


Poderia parecer estranha uma surpresa que não fosse inesperada, já que toda surpresa é uma surpresa e não a concretização de algo já previsto. Todavia, há surpresas que somente são surpresas pela incerteza que temos de que algo irá acontecer; a surpresa vem do fato de que este algo, previsto, mas incerto, acontece repentinamente. Por exemplo, se um menino brinca com uma faca, pode ser surpresa que ele se machuque, mas não imprevisão. Naquele dia, porém, deparei-me com uma surpresa realmente inesperada.
Karine, minha colega de classe, havia me chamado para ajudá-la nas lições de escola. Seu irmão, Douglas – dizia ela – também precisava de minha ajuda. Combinamos que estudaríamos, nós três, no final daquela semana. Na sexta-feira resolvi compor algumas músicas; nunca fui um bom violonista, mas sabia me divertir com aquele hábito. Até as duas horas da manhã, escrevi diversas melodias e sentia-me feliz, cada vez que a elas voltava para aperfeiçoá-las com um novo acorde ou solo. No sábado, ao amanhecer, acordei às nove e dezessete. Virei-me para dormir mais um pouco e, como se tivesse levado um choque, levantei-me da cama e comecei a trocar de roupa. Havia combinado com Karine que as oito da manhã estaria lá para estudarmos.
            Subi o morro às pressas. Chegando à casa de Karine, chamei-a do portão e escutei lá de dentro sua voz:
            - Pode entrar!
            Ao entrar na sala, notei, espalhados pelo piso da sala, vários cadernos e livros. Karine, deitada sobre o chão, escrevia as respostas de alguns teoremas. Aquilo era o sinal de que estava realmente interessada em aprender.
            Sentei-me no chão ao seu lado e esperei que ela me perguntasse algo em relação às dúvidas que dizia ter. Ela não parava de escrever. Nem mesmo levantou a cabeça, olhou para mim somente quando terminou o que fazia. De súbito, reparei que estávamos a sós e perguntei:
            - Onde está o seu irmão, Douglas? Ele também não precisava de minha ajuda?
            Ela respondeu imediatamente, como se já tivesse, minutos antes, a resposta pronta para a pergunta que eu lhe fizera:
            - Ele e meus pais foram passar o dia de hoje no sítio de nosso tio. Disse a eles que precisava estudar, por isso não se importaram em me deixar aqui sozinha.
            Apesar de estranhar tudo aquilo, disse-lhe:
            - Então, mãos a obra! Pergunte o que quiser e eu vou tentar ajudá-la.
            - Não tenho dúvidas em nenhuma disciplina da escola. Minha ansiedade vem de outra matéria para a qual eu não consegui até hoje nenhum professor eficiente.
            Naquele momento, comecei a compreender o real motivo de minha ida até ali. Sem que eu lhe interrompesse, continuou:
            - Estou gostando de um jovem rapaz e tenho medo de falar a ele o que eu sinto. Ajude-me, por favor. O que devo fazer para isso?
            Seus olhos azuis brilharam demonstrando a grande expectativa pela resposta que eu lhe daria. Evidentemente ela escolhera a pessoa errada para dar-lhe sugestão naquele assunto: não tive coragem de falar a Jéssica o que sentia por ela e, agora, deveria ajudar uma outra pessoa a fazer o que eu não consegui. Para disfarçar meu conflito interior tentei exclamar dissimulando tranqüilidade e convicção:
            - Graças a Deus eu não precisarei falar isso a ninguém, a menos que...
            Senti-me perdido, como se tivesse falado algo além do que deveria. Mas ela se interessou:
            - Continue!
            - A menos que eu crie um pouco mais de coragem, apesar das circunstâncias nas quais a pessoa de quem eu gosto se encontra.
            Começaram então vários questionamentos no intuito de saber quem era a pessoa da qual falava. A estes eu respondia com muito cuidado para tentar encobrir a angústia na qual vivia nos últimos dias.
            - Ela mora na mesma rua que você mora?
            - Não.
            - Ela mora neste bairro?
            - Sim.
            - Estuda na mesma escola que nós estudamos?
            - Sim.
            - Na mesma sala?
            - Sim.
            - Como ela é? É loura?
            - Não.
            Repentinamente ela parou de questionar e falou com um ar de desapontamento:
            - Deixa pra lá. Isto não é de minha conta mesmo!
            Voltei ao assunto anterior e lancei-lhe os mesmo bombardeio de mísseis que ela lançou contra mim:
            - E o jovem para o qual você quer declarar-se? Como ele é?
            Ela já não queria falar mais no assunto e, somente após muita insistência, disse-me:
            - Ele mora na mesma rua que eu, estudamos na mesma escola, e seus cabelos e olhos são castanhos.
            Aquela descrição não dava margens a certezas. Na escola em que estudávamos havia mais de cem alunos com estas mesmas características. Insisti:
            - Diga-me de uma vez, se é que quer que eu lhe ajude. Qual é o nome dele.
            Tentando alongar ainda mais aquela conversa que não levava a lugar algum disse, como se brincássemos de cruzadinha.
            - A primeira letra do nome dele é V e a última é R.
            Naquele momento, tremi como as cordas de meu violão, minhas mãos se esfriaram ao imaginar que ela falava da pessoa que eu mais conhecia com aquelas características peculiares. Todavia, dissimulei impaciência e perguntei novamente:
            - Ainda não respondeu o que eu lhe perguntei!
            Karine gritou impaciente:
            - É tu!!!
            Não sei que reação eu teria tido se imaginasse qual era a intenção de Karine, mas, como resposta à sua maneira ríspida de me esclarecer o que pretendia, disse-lhe em tom de segurança:
            - Eu já imaginava! Você é realmente muito calculista. Chamou-me para estudar matemática, mas os problemas que queria resolver eram outros.
            Ouvindo isso, Karine abaixou a cabeça como se sentisse arrependida. Pensei no que lhe falei e voltei a tremer. Senti-me culpado por falar tão rudemente com alguém que demonstrava tanto afeto por mim. Meu corpo se endureceu e eu não saí do lugar. Ela, respirando profundamente, levantou-se e seguiu para a cozinha. Eu não sabia o que dizer, não sabia o que fazer. Levantei-me sem fazer barulho e deixei aquela casa com uma estranha sensação: uma mistura de arrependimento por ter dito a ela o que sentia por outra pessoa e de alegria por me ver cativado por alguém que, daquela forma, demonstrava gostar de mim.
            Em outra ocasião pensei e não agi, agora, porém, havia acabado de agir sem pensar. Concluí que a verdade é um hábito terrível para certas ocasiões e passei a compreender o que havia dito o professor de história um ano antes.


A força da palavra


            Em várias ocasiões encontrei com Karine após aquele dia. Sentia uma forte necessidade de sempre dela me lembrar. Aquelas palavras não saíam de minha cabeça: “é tu”. Eu permanecia longas horas pensando no que ainda faltava para que fôssemos felizes e, sem medo, pudéssemos sempre estar juntos.
            No princípio, por causa daquela para quem anteriormente meus pensamentos se voltavam, não mergulhei naquela repentina paixão. Sabia plenamente que aquele sentimento que agora experimentava era a conseqüência de duas palavras escutadas em todos os momentos nos quais me encontrava sozinho com Karine: “te amo”.
            Tantas vezes escutei Karine dizendo que me amava, que passei a acreditar na banalidade do amor. Imaginava até então, um poder transcendental que seria a razão de minha entrega. Não acreditava na paixão, desejava amar sem ilusões. Por isso, relutava para não me precipitar.
            Tinha receio das pedras que poderiam surgir em meu caminho. Não acreditava no que estava acontecendo. Quando algo é integralmente alvissareiro nos dá a sensação de insegurança. Era o que eu sentia. Um dos receios que povoou a minha mente era a não aceitação de meu namoro com Karine, pelos seus familiares; por isso, visitava-a várias vezes na semana, desejava aproximar-me deles e descobrir quais seriam os desafios a serem enfrentados.
            Um dia, estávamos Karine, sua mãe e eu assistindo às programações de domingo na televisão. Conversei durante alguns minutos com a mãe de Karine, falávamos da péssima qualidade dos programas de televisão, em especial os reservados ao domingo. Num determinado momento, a mãe de Karine se levantou e foi para a cozinha. Sentei-me então ao lado de Karine, no chão. E olhei em seus olhos tentando penetrar-lhe a alma. Imediatamente ela exclamou:
            - Ah! Vítor! Tome cuidado, a carne é fraca.
            Eu o sabia. Por isso, continuei a instigar-lhe para que tomasse uma iniciativa que, de minha parte não sairia a menos que eu tivesse certeza plena de que não seria podado em tal. Ela olhou-me com o mesmo olhar que o meu e nos abraçamos apaixonadamente. Meu coração que antes parecia morto, agora dava sinais de vida querendo escapar-me pela garganta. Ela, curvando-se sobre o meu ouvido, disse baixinho:
            - Te amo.
            Estas palavras nunca me provocaram nenhuma reação. Escutava-as como um ruído repetido continuamente por máquinas. Naquele momento elas significaram algo mais, uma força extrínseca a elas. Penetraram no fundo de minha alma, ali reboaram como um grito do alto de uma montanha. Não posso explicar o que senti, talvez nem aja explicação. Sei somente que respondi como se tivesse sido movido por um encanto.
            - Eu também Karine, eu também te amo!
            Surpresa, Karine olhou para mim com os olhos mais reluzentes que duas esmeraldas ao sol e disse:
            - Até que enfim! Há quanto tempo espero uma correspondência ao que sinto por você!
            Após aquelas palavras, nos abraçamos novamente. E a união de nossos lábios levou-me para o infinito.
            Nem um segundo sequer daqueles dez minutos em que a mãe de Karine foi à cozinha, poderia ser esquecido. Representaram a eternidade, representaram o princípio de um romance jamais cogitado por mim. 




Coincidências


Numa manhã de domingo, Karine e eu fomos a um bairro próximo. Queríamos, como todas as pessoas que para lá se dirigiam, fugir da rotina diária. Caminhávamos tranqüilamente a escutar os pássaros que, com uma melodia inigualável, tornavam sublime e solene o nosso passeio. Despreocupadas, as pessoas caminhavam para todas as direções. O vento debelava a poluição apesar de que o parque se localizava no centro da cidade. Quando me recordo disso, penso naquilo que me faz recordar tanto de um momento tão trivial: os acontecimentos não têm poder em si mesmos, nós é que lhes destinamos o valor de acordo com a emoção que nos sobrevier em determinado instante. Aquele era o instante da paixão, aquele era o momento que a vida proporcionou a mim e a Karine.
            Caminhamos por todo o parque em busca de um lugar aconchegante e o encontramos. Sentamos debaixo de um coqueiro, mas logo deixamos aquele lugar por causa de dois incidentes inesperados: uma galha caiu sobre minha cabeça e, como já não bastasse, Karine sentou-se em um formigueiro. Saímos soltando altas gargalhadas, nada poderia estragar aquele dia. Continuamos a caminhar sem nos cansar, conversando sobre vários assuntos de nenhum interesse pré-estabelecido. Aquele domingo me trazia à lembrança a vida deixada no campo, porém, não mais com o lamento de antes: nada era mais importante para mim que estar ali e, principalmente, com Karine.
            Passamos todo o dia naquele parque, vez por outra, comprávamos algo para comer nas inúmeras barracas que lá eram armadas em todos os domingos. Quando percebemos que a hora já estava avançada resolvemos deixar o parque, mas, ao sair, encontramos Jéssica e seu namorado, David. Nunca poderia descrever a sensação que tive ao vê-la ali, a me olhar daquela forma. Contudo, Karine parou para conversar com ambos. Decidiram então voltar ao parque e sentar um pouco para conversar.
            Não pude ir embora, não poderia dizer o real motivo de minha pressa. Resolvi acompanhá-los em silêncio. Falavam sobre vários assuntos, mas insistiam em lembrar fatos da escola. Sentia-me incomodado: estudávamos a semana inteira, encontrávamos com os mesmos rostos exigentes de professores muitas vezes insatisfeitos com a profissão que escolheram e, para completar, desperdiçaria um fim de tarde de domingo a falar sobre isso? Este incômodo somava-se à angústia de ver Jéssica ao lado de outro. Estava perdidamente apaixonado por Karine, mas não conseguia aceitar... Aliás, quem nunca se arrependeu por aquilo que deixou de fazer?
            Jéssica não parecia indiferente. Olhava-me com o mesmo olhar penetrante de sempre parecendo envolver-me de questionamentos, apesar de nada perguntar.
            David e Karine perceberam que aquele assunto já tinha se tornado enfadonho. Acho que observaram quando Jéssica e eu silenciamos como se nem mesmo soubéssemos do que falavam. Foi Karine que interrompeu a David dizendo:
            - E por falar em dormir na aula de matemática, veja como estão estes dois. Parecem que dormem enquanto falamos!
            Naquele momento, percebi que falavam de Jéssica e eu. Tive receio, pensei que poderiam deduzir que havia algo entre nós dois. Todavia, fomos embora sem que houvesse qualquer desentendimento. Pegamos o ônibus que nos levaria ao nosso bairro.
            Naquele dia, prometi a mim mesmo, evitar que um novo encontro com Jéssica e seu namorado viesse me trazer aquela sensação. Desejava viver a vida ao lado daquela que, agora, parecia interessada em ser feliz junto comigo. Se a felicidade era a aceitação do destino – pensava eu – estava no caminho certo.


Ciúmes


            Após saber realmente o que sentia, resolvi falar aos familiares de Karine sobre minha decisão de namorá-la. Desejava ter maior liberdade em estar a sós com ela. Depois disso, tudo mudou. Karine já não era a mesma, adquirira um ar de ironia em seus traços femininos. Insistia em ficar ao lado de sua mãe quando poderíamos estar a sós e, diante de seus familiares, fazia inúmeras brincadeiras ao meu respeito deixando-me desconcertado e tirando-me as poucas iniciativas que ainda cultivava para a vida.
            Sua mãe era bastante conservadora e nem imaginava que sua filha já havia namorado vários rapazes da escola, mas às escondidas. A imagem que tinha da filha era bastante protetora. Para conseguir algo, Karine se utilizava de racionalizações bem elaboradas e quase inquestionáveis. Eu conhecia a sua capacidade intelectual em elaborar planos convincentes o bastante para conseguir o que quisesse.
            Karine se tornou estranha. Quando estávamos sozinhos, agia como se eu fosse a pessoa mais importante do mundo, algo de valor inestimável que não possa ser perdido, o homem mais visto por todas as mulheres do mundo e, por elas, idolatrado: um Dom Juan. Eu tentava encontrar naquelas atitudes algo de positivo: se ela desejava provar algo a mim, o fazia pelo medo de perder-me, pois eu significava muito para ela. Porém, com o passar do tempo, as conversas sobre “as outras mulheres” tornaram-se carregadas de incômodo. Decidi então deixar que ela mesma tomasse qualquer iniciativa e, às acusações de traição feitas contra mim, responder simplesmente com o silêncio, a melhor resposta para aquele que já sabe qual é.
            Karine demorou a perceber a diferença de meu comportamento em relação a ela. Escreveu-me uma carta e, carinhosamente, mencionava que nunca mais iria incomodar-me com aquelas acusações “sem pé e nem cabeça”. Eu sabia que aquele jeito inseguro de agir não desapareceria por uma simples força de vontade, mas não custava nada tentar.
            Como imaginava, aquelas atitudes não cessaram. Karine voltou a demonstrar o ciúme doentio de antes, ou melhor, aumentou a sua intensidade. Foi o que percebi quando, numa tarde em que lhe deixei sem graça diante de seus familiares respondendo ironicamente a uma de suas brincadeiras de mau gosto, me disse:
            - Você não gosta de mim. Agiu daquela forma, pois já está querendo se livrar de mim. Sei qual era a sua paixão de tempos atrás, apesar de você não haver me contado. Jéssica nunca sairá de seus pensamentos!
            Karine descobriu o que estava guardado em meu interior, trancado a sete chaves. Não sei como, mas ela falou acertadamente quando disse: “Jéssica nunca sairá de seus pensamentos”. Eu não tinha as esperanças de antes em relação à Jéssica, desejava me dar bem em meu relacionamento com Karine e, dessa forma, deixaria o passado ser enterrado deixando fora da terra a cruz de sua lembrança. Por isso, repensei as palavras que escutei e concluí que as atitudes de Karine não eram atos de amor, mas atos de insegurança ou de falta de confiança na pessoa que se ama. O que é de nós hoje é a conseqüência do que nos aconteceu ontem. Karine não tinha o direito de mexer em meu passado a menos que este interferisse em nosso presente. Nunca procurei dar motivos para que ela me repreendesse daquela forma. Mas seu ciúme era contraditório: se achava que eu ainda gostava de Jéssica, por que manifestava um ciúme doentio com as demais mulheres do mundo?
            Com o passar do tempo, comecei a me acostumar com a idéia de ser o centro das atenções. Já não tinha medo de ofendê-la com o meu falar. Falava de tudo e de todos sem me preocupar: das mulheres que fizeram amizade comigo, das festas que fui sem levá-la, dos passeios que fiz solitariamente no parque da cidade. A partir de então, não demonstrava mais ciúmes, agia da mesma forma que eu, como se quisesse voltar à lei de talião: “olho por olho, dente por dente”.
            Alguns dias depois, Karine voltou a agir de outra forma. Comparei-a a lua que ora está nova, ora crescente, ora minguante, ora cheia. Agora, falava de maneira chorosa, colocando-se como vítima em tudo, demonstrava a insatisfação com seu cabelo, seu rosto, suas mãos, seu peso... Depois se colocava como a mulher mais desejada por todos os homens da cidade, como o ícone da beleza e da juventude... Estas últimas atitudes doíam-me no fundo da alma, pois havia aprendido, na escola do acaso, a gostar dela. Já não me via sem ela em meus projetos e planos para o futuro. Eis a ironia do destino.


Traição


Já haviam passado quatro meses desde que comecei a namorar Karine. Na realidade, a nossa convivência não era tão boa quanto parecia aos olhos das pessoas. Em casa – o único lugar no qual as pessoas sabiam a realidade – começávamos conversando no quarto e acabávamos brigando e discutindo. Depois íamos para a sala como se todos tivessem que saber de nossas brigas e decepções...
            Percebi que pouco a pouco Karine se afastava de mim. Achei estranho como uma paixão tão grande acabava-se assim, tão repentinamente. Preferi deixar de lado o orgulho de ser a pessoa mais importante em sua vida e voltar a permanecer em silêncio em qualquer discussão que iniciássemos. Desta maneira, pensava que conseguiríamos sair daquela instabilidade relacional.
            Certa ocasião, fui a uma festa juntamente com alguns amigos. Neste dia não levei Karine. Combinamos que não iríamos levar nossas namoradas, pois desejávamos reatar os laços de amizade que deixavam de existir cada vez que um de nós iniciava um namoro.
            Naquela festa, desejava descobrir o que havia em comum entre nossos relacionamentos. Talvez encontraria a solução para os problemas que surgiam como uma reação em cadeia. Todavia, os diálogos que escutei tinham a sua peculiaridade em cada caso:
            - Minha garota é demais. Faz tudo o que pode para me agradar. Não esconde o seu ciúme, mas sabe controlá-lo.
            - Tome cuidado. Muitos casamentos não dão certo porque as pessoas mistificam a pessoa amada de tal forma que ela deixa de ser humana e, após o casamento, o fetiche desaparece. Lembre-se que as dificuldades financeiras também podem aparecer...
            Silenciosamente, escutava tudo. Meus pensamentos pegavam o ônibus da esquina e iam à casa de Karine, lá encontrava o medo do futuro presente no diálogo de meus amigos. Mas ali, ele não correspondia ao futuro, mas ao presente. Subitamente meus pensamentos, voltaram, mas à velocidade da luz. Aquele não era o futuro que me esperava, aqueles fatos iriam acontecer, mas de uma forma madura, quando conhecêssemos melhor um ao outro. Conhecia muito pouco sobre Karine, mas já descobrira a maneira engenhosa pela qual ela encobria minhas desconfianças através de inúmeras mentiras. Não nos conhecíamos, não confiávamos um no outro, não agíamos como se acreditássemos na fidelidade de nosso relacionamento.   Naquela mesma festa, algumas garotas desejaram me conhecer. Apresentei-me a elas, mas, conhecendo as suas intenções através de um amigo, não lhes alimentei as esperanças: quem quase se afoga num rio, não deve mergulhar no mar.
            Ao voltar daquela festa, mais ou menos às doze horas da noite, resolvemos passar em uma praça do bairro e curtir um pouco mais a alegria daquele momento tão raro nos últimos tempos. Eu já tinha certeza do que fazer. Sabia que eu também era o culpado pelo mau andamento de meu namoro com Karine. Tracei planos, desejava voltar à primeira paixão. Achei que com ousadia e determinação, passaria por cima de todas as pedras do caminho sem precisar de delas me desviar. Meu espírito estava tranqüilo, parecia ter encontrado a solução, todavia, quase saltou do corpo quando eu escutei um de meus colegas que me perguntou:
            - Veja lá! aquela não é  Karine? O que ela faz com o Carlos? Você não me disse que haviam terminado!
            Aquelas inúmeras interrogações não foram respondidas por palavras, mas por gestos. Ninguém no mundo duvidaria de que meu olhar era uma perfeita manifestação de ira e ciúme. Contudo, controlei-me; não me aproximei e, virando-me, deixei meus amigos na praça, talvez a se perguntar o que realmente acontecera.
            Entendi, a partir daquele momento, inúmeras coisas: a tranqüilidade de Karine quando avisei que iria a uma festa sem ela, sua autodefesa com acusações mentirosas e fraudulentas a meu respeito e o aumento de seu orgulho antes camuflado numa falsa humildade. Senti um certo alívio, quando novamente me vi livre das brigas e desentendimentos, isto amenizava o meu ciúme e a minha decepção.


Desmascarando


No outro dia, Karine veio ao meu encontro dissimulando uma grande tranqüilidade e uma enorme alegria ao me ver. Percebi que meus amigos lhe ocultaram o que eu sabia a seu respeito da noite anterior. Não é necessário relatar ‘que bela noite’ tive após aquela decepção. Karine falava entusiasmada, como se nada tivesse acontecido. Olhava-me como alguém que olha admirado para uma obra prima em um museu. Pensei: “Sonho ou realidade?”. Com certeza ela não mudara da noite para o dia, havia algo escondido, ou melhor, tentava esconder o que eu já havia descoberto. Inesperadamente ela se aproximou e me beijou, parecia realmente interessada em comprovar a nova força de sua paixão. Pensei em esquecer o que havia acontecido e tentar voltar a ponto de partida, mas não pude: meu orgulho foi amordaçado e ferido. A hemorragia estancaria, mas a cicatriz me faria sofrer novamente a dor do dilaceramento. Com um olhar severo disse a Karine:
            - Viram você e o Carlos ontem na praça, o que me diz disso?
            - Ah! Não sabia que você tinha amigos tão fofoqueiros. Estava na praça com o Carlos, mas só conversávamos. Ele tem alguns problemas com a namorada e veio...
            Fingi não ter visto o que vi, ainda tinha esperanças que Karine, com a verdade, se redimisse. Contudo, para maior decepção de minha parte, cinicamente exclamou:
            - Se falaram algo mais, peça a quem lhe disse tal mentira que venha aqui e fale em minha frente!
            Parecia ter uma resposta pronta caso isso chegasse aos meus ouvidos. Tinha várias frases, previamente formuladas e bem justapostas. Realmente ela era muito inteligente quando se tratava de formular racionalizações bastante convincentes, entretanto, não estava preparada pra o caso de eu mesmo tê-la visto na noite anterior. Como ela não parasse mais de tentar se justificar, falei, tremendo por medo de perdê-la, apesar de tudo, e por tamanha indignação que ultrapassou este medo:
            - Nunca mais conseguirei acreditar em você, mentiu para mim da forma mais vil existente. Como confiar em alguém que contradiz até mesmo aquele que a acusa de algo por tê-lo visto concretamente? Ninguém me contou. Se tivessem me contado, talvez eu ainda colocaria o último voto de confiança em você. Porém, eu próprio vi o que digo e sofro até agora por tal fato. Não tente me enganar. Você enganou a si mesma. A mim não mais enganará, pois, a partir de agora, está tudo terminado!
            À medida que eu falava, ela chorava. À medida que ela chorava eu quase me embarcava em remorsos pelo que dizia, mas, ao lembrar da cena da noite anterior e das inúmeras acusações injustas que ela fazia contra mim, voltava a falar com a convicção de que não haveria conserto para aquela situação. Desabafei toda a mágoa ressentida e, prontamente, parei esperando escutar algo de sua boca após o desmanchar de suas máscaras. E ela falou:
            - Realmente você não é como eu imaginava. Você, na verdade, nunca gostou de mim. Só quis passar o tempo ou esconder o seu medo da solidão. E, agora que encontra uma oportunidade, termina comigo como se eu fosse a vilã dessa história! Ponha a mão na consciência e veja qual de nós dois está errado.
            Aquelas palavras foram duras demais para mim. De juiz passei a réu. Mesmo depois de tudo o que fez comigo, ela ainda conseguiu me ferir mais uma vez. Aquela era uma maneira bem geniosa de sair ganhando. Preferi calar e me retirar, pois sabia que acusações em cima de acusações poderiam gerar um ódio destruidor. Foi o que fiz. Demonstrei estar convencido de minha hombridade, mas, quando me afastei, não pude conter as lágrimas e, nem mesmo, desvencilhar-me do sentimento de culpa em mim inserido por aquelas últimas palavras de Karine.
            Uma semana depois, ao passar em frente à casa de Karine, lá estava ela, mais alegre do que nunca, ao lado daquele com o qual finalizou a tarefa de se livrar de quem ela dizia gostar. Ao ver isso, o sentimento de culpa incutido em mim desapareceu e eu, mais seguro de que havia feito a coisa certa, voltei à tranqüilidade de outrora.


Determinação


A vida continuou a me trazer surpresas, como traz a todo ser humano, sejam elas boas ou ruins. No princípio, ansiamos por algo e, com todas as nossas forças o desejamos. O tempo, infinito para a mente, nos dá a solução esperada: desfaz os nossos projetos como uma tecelã que desfaz um ponto mal feito. Mas a vida volta a nos dar esperanças daquilo que se perdeu misteriosamente.
            Já havia retomado minhas forças para continuar a caminhar sem ter receio de ser feliz. Várias melodias, antes sem sentido para mim, agora me pareciam descrições de minha vida. Em quantas ocasiões, fiz crítica acirrada a diversos tipos de música. Para mim, elas eram o fruto de gostos convencionados e representavam a impessoalidade do ser humano que se deleita naquilo que os outros lhe dizem que faz parte da moda. Todavia, ouvindo o rádio, escutei várias vezes a mesma música, repetida a todo instante. Irritado com tal insistência desliguei o rádio e saí, desejava aproveitar o fim de tarde. Entre os prédios, avistei a lua cheia, tinha uma cor avermelhada. Muitas pessoas paravam para observá-la, mas eu não parei. De repente, ao atravessar a rua, ainda olhando para o alto, escorreguei e caí num bueiro aberto; somente meus braços ficaram ao lado de fora. Algumas pessoas me ajudaram a sair, muitas riam e outras perguntavam preocupadas: “Você está passando mal?”. “Machucou-se?”. Não senti vergonha alguma, pelo contrário, comecei a rir daquela situação. Voltando para casa, com as costas à altura dos rins, dolorida e arranhada, comecei a cantar:

“Agora vou viver sem ter medo de ser feliz,
O que passou, passou, como o ditado diz;
Vou seguir meu caminho, sozinho, não volto atrás
Só sei que seu amor, não quero mais.”

            É interessante notar como aquilo que nos desagrada nos atormenta mesmo ausente, o pensamento é a sua arma, pois não se esquece daquilo que se quer esquecer. Contudo, aquela música representava bem mais que uma simples revolta contra as convenções sociais, era a exposição da convicção da nova vida que adotaria a partir de então. Já não temia a vida, os golpes que ela nos dá são certeiros, mas que ganha o homem em angustiar-se com os mesmos? A solução é “esperar pela tarde para ver se o dia é belo”, como dizia Sófocles. Esperar contra toda desesperança e unir-se àqueles que vivem a vida por saberem a sua essência.
            Naquele dia a vida me reservou uma nova surpresa, surpresa essa, que parecia defini-la dali para frente. Alguém já disse: “todo momento de prazer vem quando o êxtase há muito terminou”, acho que vi esta frase num filme. Seja lá de onde ela surgiu, ela define exatamente os acontecimentos que estavam por vir: não mais vivia o dia em contínuas ansiedades, não mais me interessava por tantas distrações e estudos a fim de buscar neles algum conforto para a minha alma solitária. Aquelas atitudes haviam desaparecido temporariamente de minha vida. Mas por quê temporariamente?
            Em certa ocasião, saí de casa à procura de um emprego, fui a vários mercados e deixei meu currículo. Com uma estranha paciência respondia com um “muito obrigado” a quem, bruscamente me falava: “É estudante e está bem adiantado, mas não têm experiência nenhuma. Somente admitimos funcionários com, no mínimo dois anos de experiência”. Ao sair, não me sentia revoltado, mas ria da ironia de uma sociedade capitalista onde todos querem lucrar sem pensar humanitariamente. Como poderia ter experiência se nem mesmo conseguia arranjar o primeiro emprego? Deve ser por este motivo que os meninos de rua, assaltam desde crianças, quando maiores, já possuem experiência claramente comprovada!
            No ônibus que peguei ao voltar para casa entrou uma jovem de andar elegante. Não me virei para vê-la, observei-a de costas pelo reflexo do vidro, pois estávamos de pé e não havia lugares para sentar. Suas roupas eram semelhantes às de um homem, mas seus cabelos expressavam a sua sensualidade feminina a cada momento que passava por eles os dedos bem esmaltados. Observei naquele momento que talvez não seria casada, pois não usava nenhuma aliança ou anel. À minha frente, levantou-se uma senhora e, quando me curvei para sentar, levantou-se o senhor ao seu lado. Sentei-me no lugar próximo à janela e surpreendi-me quando aquela mulher que antes eu observava, sentou-se ao meu lado e perguntou-me: “quantas horas, por favor?”. Quando me virei para responder ambos falamos ao mesmo tempo: “Você aqui!”. Era Jéssica. Havia algum tempo que não a via (fugindo ao assunto, é até engraçado aos ouvidos esta frase anterior!). Desde o dia em que a encontrei no parque juntamente com o seu namorado, nunca mais a vi. Um forte vento entrava pela janela dos lugares da frente, o ônibus estava cheio, por isso não pedi que a fechassem. Jéssica prendeu os cabelos com uma caneta. E contou-me que estava fazendo um curso profissionalizante em outro colégio e, por isso, passava uns tempos com seus tios durante a duração do curso. Falou-me de diversas outras coisas de uma forma jovial. Sua face resplandecia uma beleza agora mais reluzente, o brilho de seus olhos estava tão penetrante como da última vez em que a vi, seus cabelos, agora presos, venciam a força do vento que, de forma impetuosa, lançava-se sobre eles e tinham algo novo: uma mecha descolorida. De repente, um curioso sentimento tomou conta de mim. Lembrei-me de David e de Karine, aqueles que fizeram com que nossas vidas tomassem rumos tão diferentes. Nada me intimidava a interrogar-lhe sobre as muitas curiosidades a seu respeito, contudo, em nenhum momento, perguntei-lhe sobre o seu namoro com David.
Descemos do ônibus e seguimos o nosso caminho conversando. Relembrávamos as inúmeras vezes que passávamos por ali sem nos preocupar com o tempo ou o assunto. A saudade daqueles tempos tomou conta de mim e, acredito, que também de Jéssica. Ela falava de si, mas de vez em quando, perguntava-me algo sobre mim. Quando me perguntou sobre o meu namoro com Karine, contei-lhe todos os detalhes, como se estivesse sob juramento num tribunal. Ao terminar, senti que chegara o momento oportuno para satisfazer a minha principal curiosidade, e perguntei: “e vocês, como vão?”. Falou-me então dos últimos acontecimentos em seu relacionamento com David e, para ser direto, deixou-me esperançoso: havia terminado o namoro meses atrás.
Naquele dia, ao deitar, rememorei todos as vicissitudes de minha vida. Perdi o sono, mas não ansiava em dormir, a volúpia deixava-me em êxtase. Ligando o rádio, escutava as programações de uma hora da manhã. A conversa daquela tarde originou uma esperança viva e renovada. Durante quase toda  noite, virava de um lado para o outro na cama e imaginava-me ao lado de Jéssica. Havia muito tempo não tinha aquela sensação; para mim, era a plenitude de meus desejos.
Quando acordei no outro dia, não sentia cansaço algum, num salto e já estava de pé arrumado para ir à escola. Os sonhos que tive no curto espaço de tempo em que dormi, concretizavam minha esperança. Sabia que não veria Jéssica lá, ela já teria voltado à casa de seus tios. Contudo, nada naquele dia me faria perder o humor, nada me pareceria adverso, tudo no mundo parecia existir com um único objetivo: transmitir-me felicidade.


O dia quase D


Uma boa nova se apresentou a mim. Jéssica, em busca de maior aprofundamento para uma entrada na faculdade, deixou o curso profissionalizante em que estava. Uma semana depois estávamos novamente na mesma sala de aula. Naqueles dias, reativamos a nossa antiga amizade. Jéssica mudara em muitos pontos, mas, em nenhum deles, para pior. Estava mais segura de si. Eu, ao contrário, parecia nada ter aprendido: voltei a angústia de meses atrás, encontrava-me em todo momento confuso, sem saber como fazer o que eu mais desejava, sem perda de tempo, sem correr o risco de perdê-la novamente, sem deixar que o acaso interceptasse o meu caminho rumo Jéssica.
            Na terça-feira daquela semana, ao voltar da escola, encontrei Mércia que desejava me falar algo. Pelo seu estranho sorriso, temi voltar a cometer os erros do passado. Pensei em inventar uma desculpa e escapar do que ela poderia me dizer, ou melhor, de qualquer coisa que me fizesse mergulhar em novas dúvidas. Mas, como somos indubitavelmente condenados à liberdade, decidi escutar o que Mércia desejava me falar, com certeza seria melhor do que passar meu precioso tempo a imaginar o que seria.
            - Posso lhe fazer uma pergunta sem que você se zangue?
            - Claro! Mas lembre-se que não existem respostas para todas as perguntas que fazemos.
            - Sei disso. Mas, para as perguntas que lhe farei, não são necessárias respostas longas. Responda-me: sim ou não.
            - Então deixe de rodeios e pergunte logo!
            - Você tem namorada?
            Tudo levava a crer que eu estava certo, o conteúdo daquela conversa levava ao mesmo ponto de partida: eu. Pensei: “Devo tomar muito cuidado com o que vou dizer”.
            - Não! Mas estou tranqüilo. O que estiver reservado para mim virá às minhas mãos.
            - Porém é preciso tomar cuidado, há pássaros que fazem seu ninho e nem mesmo nele permanecem.
            - O que você que dizer com isso?
            - As oportunidades vêm, mas é preciso agarrá-las como se agarra um copo preste a cair da mesa.
            - Continuo não compreendendo!
            - Mas vai compreender: há uma garota que está apaixonada por você, mas, há muito tempo, espera uma iniciativa de sua parte. Ela tem medo de perder a sua amizade, por isso nunca se declarou.
            Pensei: “Mércia não pode estar falando de si mesma, nós nunca fomos amigos tão próximos”. E lhe disse:
            - Diga-me logo, quem é esta?
            - Jéssica!
            Novamente se faz desnecessária qualquer descrição do que senti. Percebi que meu caminho estava traçado sob medida para minha passagem. Agora, tinha certeza de que qualquer iniciativa de minha parte seria bem vinda a Jéssica. Mesmo assim, não queria precipitar as minhas atitudes, tentei criar um momento para falar a Jéssica de tudo o que senti por ela desde o primeiro momento em que a vi, mas não consegui, seu irmão não a deixava um minuto sequer a sós comigo, parecia imaginar as minhas intenções. Se antes, sozinho com ela, não conseguia lhe falar sem esconder o que sentia realmente, agora tudo era dificultado por essa nova companhia.
            Na sexta-feira daquela semana, cheguei em casa cansado e nervoso, havia dormido mal na última noite e não fiz uma boa avaliação na escola. Ninguém na minha família se atreveu a perguntar o que havia, todos se calaram e me fizeram enxergar a minha ignorância. À noite, resolvi comentar sobre meus propósitos. Não foi uma boa idéia de minha parte, todos relacionaram os fatos daquele dia ao que agora desabafava e pensaram saber o motivo de minhas atitudes. A tentativa se deu por frustrada completamente quando minha mãe falou:
            - Vítor, Vítor, o que é que você foi me arrumar. Você sabe que não tem condições nem mesmo de estudar numa escola de qualidade!
- O que isso tem a haver com o que pretendo fazer? Uma escola pública como a minha é mais procurada pelas pessoas de classe média do que as escolas particulares.
- Você sabe que não é disso que eu estou falando! Estes namoros, quando não são planejados, acabam em um casamento precipitado. Você está quase se formando e, quando isso acontecer, poderá trabalhar com seu tio no Rio.
- Agora foi você que saiu do assunto. Não estamos falando de escola...
- Não se faça de desentendido e cultive um pouco mais de respeito ao se referir a mim, não se diz você, se diz senhora! Sabe que se houver algo que lhe prenda aqui, será difícil arranjar outro emprego como este. Você sabe a minha opinião, aja como quiser.
Aquela última frase fechou a discussão. Minha mãe sempre arranjava meios para me deixar confuso apelando para costumes que não mais cultivávamos em nossa família depois que viemos para esta cidade.
Aquilo foi um choque para mim. Estranhei a maneira pela qual todos em minha família me tratavam. Acho que, na verdade, tinham medo que eu acabasse entrando no mesmo dilema do namoro anterior. Mas esta nova pedra em meu caminho poderia ser retirada facilmente, bastaria a compreensão de que tudo na vida tem o seu momento. Com o passar do tempo - pensava com meus botões - ao ver-me feliz ao lado de Jéssica, não mais me incomodariam com sua irritante mania de pensar conhecer o futuro por um simples sinal do presente.
No outro dia, após aquelas repreendas de meus familiares, resolvi procurar Mércia a fim de que ela me ajudasse com alguma sugestão já que, falando-me de Jéssica, tornou-se minha amiga. Resolvi contá-la toda a minha história desde o dia no qual me apaixonei. Mércia chorou, dizia nunca ter escutado de um homem, tantas palavras imbuídas de sentimentos tão sinceros. Para ela, os homens eram uma espécie de máquina, calculistas e frios, agiam satisfazendo seus impulsos imediatos e buscando seu interesse. Depois, como um sábio que proclama a sua doutrina, disse em tom sereno e calmo:
- Você pensa demais. Por que não falou a Jéssica o que sentia por ela? Não se arrependa de não ter feito o quis, não tenha medo de ser feliz!
Muito mais me falou Mércia, mas aquela frase de tom poético, fixou em minha mente definindo claramente para mim as atitudes óbvias a serem tomadas.
Jéssica fora ao sítio de seus parentes e voltaria na segunda-feira. Mesmo que ela não fosse à aula, estava disposto a procurá-la em sua casa. Nada me impediria de lhe falar o que guardava comigo havia mais de um ano. Quando a vi entrar na sala de aula, percebi que o destino havia feito a sua parte. Peguei um livro e fingi estar lendo, tinha medo de olhar em seus olhos. Ela passou em minha frente e disse sorridente:
- Bom dia, Vítor!
Respirando profundamente disse-lhe:
- Bom dia! Depois da aula, eu gostaria de conversar com você.
Quando terminaram as aulas daquele dia, Jéssica encontrou seu irmão na porta da escola, mas disse-lhe que fosse na frente, pois precisava conversar comigo. Subindo o mesmo morro de sempre, perguntou-me:
- O que queria falar comigo?
Não hesitei, cada minuto aumentaria mais o meu nervosismo.
- Queria? Não é à toa que esta conjugação é do pretérito imperfeito! Vamos ao presente que é o indicativo da realidade. “Quero” lhe fazer uma pergunta: você gosta de mim tanto quanto eu gosto de você?
Sem nenhuma surpresa por aquela interrogação, respondeu:
- Não é preciso lhe dizer. Eu sei que você sabe e você sabe que eu sei o quanto nós gostamos um do outro!
Cheio de entusiasmo perguntei imediatamente:
- Então... se você sabe...quer namorar comigo?
Ela, sem nenhum entusiasmo – o que me surpreendeu – me disse que queria um tempo para pensar. Estranhei aquela atitude, quem não estranharia uma pessoa tão decidida manifestar aquela incerteza? Pedi-lhe uma explicação, mas ela simplesmente me falou:
- Preciso de um tempo para pensar. Depois você vai saber o porquê disso. No momento, peço que não me pressione.
- Mas, o tempo é infinito, qual é a partícula dele da qual fará uso? Um dia ou dois?
Ela sorriu e disse:
- Você é demais! Deve estar divagando muito nas aulas de filosofia. Tome cuidado para não ficar louco! Lembre-se: “Deus fez os loucos para confundir os sábios!”.
Percebi que ela fazia uma digressão em sua fala. Estava tentando escapar de minhas interrogações, todavia, eu não desejava viver, mais outro tempo indefinido naquela angústia da espera.
- Deus fez os sábios para confundir aqueles que acham que não são loucos! Mas você está querendo escapar-me por entre os dedos. Diga-me, o que mais pode impedir que sejamos felizes juntos?
- Daqui a uma semana você saberá!
Havia esperado tanto e, agora era intimado a esperar mais um pouco. Meu espírito parecia trilhar o incógnito, mas não sei dizer o que realmente sentia: novamente, sensações antagônicas tomavam conta de mim.


O dia D


Não sei por quê todo aquele que ama tem que sofrer. Não sei por quê todo sofrimento vem exatamente quando pensamos que tudo vai dar certo. Não sei por quê devemos esperar tanto para sermos felizes. Na história, a segunda chance que a vida deu aos seus agentes, quase sempre terminou em fracasso: Luís Bonaparte, ao imitar o 18 Brumário do tio para formar um novo Império Napoleônico em 1851, fracassou ao ser derrotado pelas forças militares da França; Getúlio Vargas ao retornar à presidência do Brasil com uma política populista em 1950 acabou sendo levado ao suicídio devido às pressões opostas às suas ações governamentais; a Itália, inspirada no Antigo Império Romano, une-se à Alemanha num expansionismo imperialista, mas, em 1944, no dia D, o projeto de sua história muda de rumos com a repressão soviética, americana e inglesa. Também eu tive meu dia D, D de destruidor dos novos projetos que fiz esperançoso na segunda chance que a vida parecia me dar.
            O que mais me inquietava era o medo de que Jéssica e eu não tivéssemos a mesma amizade antes. Mesmo que não estivéssemos juntos como namorados, não suportava a idéia de vê-la longe de meus projetos. Tentava, como sempre fiz, desviar meus pensamentos, porém todo esforço era inútil. O rádio, a televisão, os comentários de colegas, tudo me fazia recordar daquela responsável por tanta inquietação. Todos agiam com o mesmo propósito: aumentar minha ansiedade e torná-la torturante.
            Naquela semana, apesar de estudarmos na mesma sala de aula, não me aproximei de Jéssica, desejava deixá-la em paz para melhor refletir. Nossos encontros eram sintetizados num “bom dia!” ou “bem?”.
            Chegou o dia esperado. Novamente, chamei Jéssica para conversar. Ela repetiu as mesmas atitudes da semana anterior pedindo que seu irmão fosse adiante. Eu já não me encontrava tão ansioso, não me sentia nervoso, mas estava disposto a descobrir, qualquer que fosse a sua resposta, o motivo de sua relutância ou de sua decisão. Quando me vi a sós com ela disse-lhe em tom de brincadeira:
            - Desembucha! Diga qual é a sua decisão e o porquê de tal!
            Ela me olhou como jamais me olhara e disse com voz chorosa:
            - Vítor, você sabe qual seria a minha decisão se nada nos impedisse, mas vejo que terei muitos problemas pela frente e poderei lhe trazer muitos outros. Não quero ser causa de divisão em sua família e nem ser um estorvo em sua carreira. Gostaria que todos concordassem com o meu jeito e com as suas decisões, entretanto, vejo que isso não corresponde à realidade.
            Percebi que alguém já lhe tinha falado sobre a opinião de minha família a seu respeito e sobre os planos que todos faziam para mim. Perguntei a ela quem havia lhe contado, argumentei que fatos são passados de boca em boca e aumentados consideravelmente. Sabendo o porquê de minha curiosidade, Jéssica me respondeu em tom de censura:
            - Ninguém, que não fosse da sua família, veio falar comigo. Seu irmão Cristian me alertou para a situação que eu iria deparar ao namorar você. Talvez tudo isso possa ser temporário, porém desejo a sua felicidade mesmo longe de mim e não quero que você perca a união com sua família por minha causa.
            Tentei alterar aquela situação através de várias indagações que demonstravam uma certa independência de minha parte em relação aos meus familiares. Ela, querendo me poupar o esforço, disse-me decidida:
            - Um dia você vai me agradecer por isso!
            - Mas, Jéssica, ninguém pode interferir em minha vida dessa forma! Isso aqui não é “Romeu e Julieta” e não precisaremos morrer por amor. Você está fazendo “tempestade em um copo d’água”. Os planos que fazem não são meus...
            - Quem sabe um dia! Por enquanto vamos ser apenas amigos!
            Tinha medo de perder a amizade de Jéssica, mas agora compreendia como era difícil ser amigo de quem eu tanto gostava. Senti-me como uma criança assustada procurando abrigo nos braços de sua mãe e lhe disse:
            - Me abrace!
            Apesar de tudo Jéssica era tímida, e demonstrou isso quando, desconcertada, respondeu:
            - Aqui? Já não lhe abracei tantas vezes...
            Em certas ocasiões da vida temos atitudes de criança e agimos como se fossem normais tais atitudes. Transformei aquele momento num conto de novela de final dramático. Dissimulei uma saída dizendo:
            - Esqueça!
            Ela, percebendo a minha desilusão, chamou-me e abraçou-me como jamais havia abraçado. Quem passou por aquela rua e nos viu, com certeza pensou: “vejam só os dois pombinhos!”. Mas ninguém, além de Jéssica e eu, saberia o que significava aquele abraço: o adeus da despedida.
           

Esperança


Acabo de voltar de um enterro. Um grande amigo acaba de deixar esta vida, para o incógnito. Meu eufemismo é mais realista: como posso afirmar que deixou esta para melhor? Fora do horizonte da fé, não posso concebê-lo. Todavia, não consigo aceitar a dura realidade do ser humano: buscar a felicidade na terra e morrer na esperança de encontrá-la em outro lugar. Mas, se eu disser que a felicidade não é possível, perderei o sentido para a existência. Será que somos realmente os maiores responsáveis pelo nosso destino? Será que a nossa liberdade é o sinônimo da angústia originada pelas escolhas cotidianas? Será que a paixão é como o fogo da vela que observei há pouco: dá a ela um sentido, mas a consome pouco a pouco? Será... Talvez... Se... Ó incerteza que definhais o ser humano! Até quando o atormentareis?
A dor daquele dia plantou morada em meu ser e me acompanha a em todo momento de minha vida até agora. Hoje, recordo da grande possibilidade que tive de ser o homem mais feliz do mundo. Tenho notícias de Jéssica, mas a nossa amizade nunca mais foi a mesma: eis a única certeza que possuo. Tomamos rumos totalmente opostos e as lembranças são as únicas que ainda me fazem companhia.
Vivi solitário, saudoso e desanimado. Todos os planos que fiz foram parar no poço das recordações. Aquele grande amigo me perguntava antes partir: “ainda tem esperanças?” E eu lhe respondia: “A esperança é a última que morre, darei a ela uma chance de me tornar feliz!”. Mas ele partiu primeiro que a esperança e me deixou a contemplar a execrável condição humana: a vida do homem é efêmera e a da esperança é imensurável, pois, nascer é esperar, viver é esperar, morrer é esperar. Enfim, buscar nem sempre é alcançar, mas ter a certeza de que sem trilharmos o caminho obscuro do mistério, em nenhum lugar poderemos chegar. “Que ele ocupe um bom lugar”, dizia a uma amiga no velório e ela me respondeu: “o espírito não ocupa lugar no espaço!”.
            Lá fora, uma chuva incessante me traz a recordação dela. Cada gota de chuva que cai na poça d’água que se formou no passeio em minha frente atrai-me ao fundo, mergulhando-me no oceano dos desejos. Cada desejo é uma palavra dos versos que escrevo. Volto a pensar na realidade humana: há realmente uma força inefável que rege o universo e o faz dar voltas sem cessar. A gota que cai é a mesma que subiu aos céus. A esperança que retorna a mim é a mesma de tempos atrás. Mas que força é essa que me reconforta neste momento?
            Durante muito tempo deixei de viver a vida lamentando o que não aconteceu. Vou sair, vou atrás de algo que me tire dessa solidão, chega de esperar, vou dizer adeus ao passado, vou entregar-me ao presente!


Descoberta de um tesouro


            As folhas daquela agenda haviam terminado e, com elas, a história de Vítor. Na contra-capa estavam os seguintes versos:

Agora lá fora chove,
            Na hora em que se chora foge
            A angústia amiga e inimiga
            Que cultivo e que quero matar.
            Pode até parecer mentira
            Que a saudade que me causa intriga
            Comece agora a germinar.

            A chuva, que o calor externo
            Veio agora matar,
            Maldosamente, este calor interno
            Deixou a me sufocar.

            Estes versos não são de um poeta
            E o único que os atesta
            É quem os está a escrever.
            Eles não são nem mesmo uma seta,
            Pois espero de Deus com paz inquieta
            O futuro que eu quero saber.


            Não conheço aquele jovem, nem reconheço a veracidade desta história, mas, mesmo sem conhecer-me, deu-me o que eu havia perdido: a capacidade de me admirar com o que outros pensam. 

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