quarta-feira, 30 de março de 2016

Diário de um dia que esqueci





            Prezado diário, escrevo em ti aquilo que no futuro poder-me-á a ajudar a compreender as loucuras e arrependimentos que marcaram minhas experiências passadas. O dia de hoje foi como o de ontem, e o de ontem como todos os demais de minha existência. Não é a memória enfraquecida que me faz desdenhar o que foi vivido, é a própria insignificância de minha vida. Acordei... Quisera eu permanecer sonhando, sonhava com um mundo diferente deste no qual vivo. Ainda bem que não me interrompes enquanto escrevo, pois, do contrário, perderia a coragem de escrever em ti aquilo que ninguém nunca saberá. Como dizia, acordei... Mas meu sonho era tão real! Quem poderá fazer com que eu compreenda que era apenas um sonho? A realidade é tão dura, às vezes insana. Voltando a relatar o meu dia, acordei...Será que acordei para a realidade? Ou a realidade é o que vivi no meu sonho? Tudo perfeito. A ausência do egoísmo dava a todos a plena alegria igualmente repartida. Mas, como já disse antes, acordei... Não era preciso dizer nada, um gesto ou um olhar eram o suficiente para que as pessoas compreendessem a sinceridade de minhas atitudes. Não vivia no ócio, mas trabalhava na alegria da reciprocidade de meu trabalho. Todavia, a partir do momento no qual acordei... O sonho se parecia com a utopia dos esperançosos e a banalidade dos pessimistas... Sabe de uma coisa, vou dormir, relatar as inúmeras coisas que fiz durante este dia deixou-me profundamente cansado.

Água mole em pedra dura tanto bate até que... acaba a água


            Todos os dias, uma figura misteriosa andava pela cidade a gritar em alta voz palavras incompreensíveis. O sotaque alemão impunha respeito e impedia mesmo aos mais corajosos a revolta do despertar do sono no meio da noite. Talvez aquele homem estaria com sede, já que, das palavras desconexas a única a ser compreendida era “água”. Naquele bairro de classe média, ninguém ousava levantar-se e pedir àquele homem que se calasse. Meses se passaram e as autoridades foram informadas. Viaturas percorriam o local atrás do criminoso a desacatar a ordem pública. Nunca o apanharam, sempre que estavam em um bairro, ele estava em outro a gritar. Novos telefonemas eram dados e, com a chegada dos policiais, aquele homem desaparecia sem deixar rastros (talvez andasse somente no asfalto) nem pistas. Empresários, cansados pela noite mal dormida, projetavam em seus funcionários a frustração de seus desejos; mulheres, fuxicando a vida alheia, tentavam descobrir quem era o misterioso homem a gritar pela água; policiais, diante dos depoimentos das testemunhas, concluíram que o insano homem deveria estar repetindo um vocábulo alemão que, mau compreendido, assemelharia à palavra água no português.
            Mais outros meses se passaram, e o homem, louco para alguns e excêntrico para outros, desapareceu. Faltava um minuto para a chegada do ano de 2010 e todos, com seus apetrechos supersticiosos, se posicionavam diante do relógio e do champanhe para a contagem regressiva. Iniciou a contagem regressiva: “dez” e um pensava na família distante sofrendo com a seca do nordeste, “nove, oito, sete” e outro pensava nas crianças mortas pela fome e pela guerra; “seis, cinco, quatro” e outro, com seu egocentrismo exacerbado só pensava na carreira que seguiria após ter conseguido se livrar de um concorrente a um emprego”; “três, dois”; Maria tinha ido à cozinha para lavar os copos e não voltara até então; “um” ...e, em todas as casas do mundo, naquele mesmo instante, ouviu-se a triste exclamação: “não há mais água”.

A esperança é a ultima que morre

 


            Eram três irmãs: Fé, Esperança e Caridade. Barnabé, homem simples do interior da Bahia, ao ouvir um sermão do padre de sua paróquia sobre as três virtudes teologais, decidiu colocar nas filhas que tivesse os nomes das três virtudes. Quarenta anos depois, Dona Esperança contemplava as fotos das irmãs. Quanta saudade! Acabara de voltar do velório de uma delas. Dona Fé, apesar do jeito alegre e extrovertido, não contou com a longevidade de sua irmã Esperança e morreu por um enfarte. Dona Esperança chorava ao lembrar-se de Caridade, sua irmã mais nova, que nem ao menos ultrapassou a adolescência devido a uma tuberculose. Como explicar a solidão que sentia? Mesmo, após os pais terem ido para um bom lugar (apesar da alma não ocupar espaço), viviam as três em contínua harmonia. Esperança, a mais velha, nunca se colocou como autoritária, juntava-se às outras em tudo, até mesmo nas quadrilhas e quermesses. E foi assim que, na solidão de sua casa, abandonada, até mesmo, pelos animais de estimação já mortos de velhice, Dona Esperança resolveu não mais viver. Mas a salvação parecia bater-lhe à porta. Rodolfo, um senhor, já dono de uma prole de sete filhos, viúvo havia cinco anos, resolveu declarar-se, estava apaixonado por ela; e lhe disse palavras tão doces ao ouvido que ela não hesitou em dispensar a solidão como companheira tomando-o em seu lugar. Como não poderia deixar de acontecer, casaram-se, mas não tiveram nenhum filho, seis anos depois, resolveram fazer um passeio em família. Todos gostavam de Dona Esperança, simples e humilde, tinha somente uma preocupação, não ofender e não ser enfado aos outros. Na estrada, o filho mais velho de Rodolfo, tomava todas as precauções necessárias para uma boa viagem. Numa curva, repentinamente foram cortados por um caminhão em alta velocidade. Uma roldana férrea, que não estava bem presa ao caminhão que a carregava, soltou-se e atingiu o carro. Todos, com exceção de Esperança, morreram. Esperança, depois de dois meses de cuidados intensivos, teve alta hospitalar. Chegando em casa, contemplava a foto do marido. Quanta saudade! E, diante de várias alternativas para extinguir a solidão, Dona Esperança morreu só. E, nenhum parente veio em seu enterro, Dona Esperança não os tinha mais, todos morreram antes dela. Esperança morreu de solidão.
 

Presença penetrante



            Estando presente ela não precisou pedir licença, foi invadindo meu ser como um mau elemento a macular a imagem do MST. Invadiu-me e não se contentou com um instante apenas, aqui jaz até agora. Desde aquele momento minha respiração se tornou ofegante, meus olhos diferentes, minha boca em movimentos bruscos demonstra a conseqüência de tal intromissão. Tentei tirá-la, pois aqui ela não poderia ocupar mais um espaço, mas ela entranhou como uma raiz e tornou-se quase inexorável. Todos, percebendo a minha mudança, perguntam-me por ela e eu lhes respondo: “continua a mesma, mas não quer me largar”. Noites sem dormir fazem meus pensamentos divagar no infinito do espaço, dias mal vividos fazem com que eu reconheça a minha vulnerabilidade diante dela. Muitos a tiveram em suas vidas e muitos conseguiram dela se desfazer rapidamente, mas eu, admitindo-me subjugado por ela exclamo a maior certeza que já tive em minha vida: “nunca pensei que uma simples gripe conseguisse vencer minha determinação quase inabalável”.

terça-feira, 29 de março de 2016

Perguntas X respostas








            Há dias que insistem em sua fadiga. Cansado de mais um dia de trabalho, saí do hospital onde trabalho, mas tinha comigo uma tarefa a mim destinada por um amigo: encontrar um quartel de polícia onde poderia procurar seu nome numa listagem para saber o local onde este faria as provas de um concurso público. Já na porta do hospital, iniciou o meu martírio num dia em que a impaciência se atestava visivelmente em mim:
            - Você poderia me informar que horas são?
            - Hoje saí de casa sem dar corda em meu relógio e até agora não parei para regulá-lo. Infelizmente não posso lhe informar as horas. Devem ser Sete horas mais ou menos.
            Frustrado saí. Escutar uma verborréia daquela da qual não poderia aproveitar nada! Ela poderia ter respondido apenas: “Meu relógio parou” e rapidamente eu deduziria o restante. Para aumentar a minha ansiedade, devia chegar ao quartel antes das 7:30 h e assim, desistindo de perguntar a outra pessoa sobre as horas, corri a atravessar a rua na qual certamente encontraria o quartel. Quando parei no jardim central, enquanto esperava o sinal de trânsito fechar para os carros, resolvi arriscar novamente algo para apaziguar minha ansiedade. Então, vendo um rapaz ao meu lado, também esperando para atravessar a rua, perguntei-lhe educadamente:
            - Você tem relógio aí.
            - Não! Você quer saber as horas?
            Pensei em “soltar-lhe os cachorros”. Para que eu gostaria de saber se ele tinha relógio? Evidentemente, estava querendo saber as horas. Se estivesse querendo assalta-lo, não perguntaria se ele tinha relógio. Mas respondi disfarçando meu nervosismo:
            - Sim.
            Então ele tirou um celular da bolsa e disse:
            - São 7:15 h, ou melhor, 7:16 h.
            Com certeza eu consegui dissimular com sagacidade de ator meu nervosismo. Uma resposta daquelas “talhou-me o sangue”. Ora, que diferença fazia entre um minuto para que ele refutasse a informação prestada? Caminhando mais adiante, acalmei-me reconhecendo nessa atitude um símbolo de ser prestativo. Mas, quando cheguei ao prédio onde pensara ser o Quartel de Polícia, tive outra decepção. Era somente mais um prédio hospitalar. Naquele momento, perguntei ao porteiro:
            - Você pode me informar onde se encontra o quartel?
            - De polícia?
            Respirei profundamente. O mundo estava unido para deixar-me enfurecido e respondi em tom áspero, porém, em voz baixa:
            - Sim. O Quartel de Polícia. Você sabe onde ele se encontra?
            - Várias pessoas vieram aqui hoje pensando ser aqui o Quartel de Polícia. Mas, eu não sei onde ele se encontra.
            Não sabia por que as pessoas perdem tantas palavras em vão. Talvez agora saiba, já que isto é o que faço neste momento. Apressado, segui a rua na tentativa de avistar o quartel. Poucas pessoas eu encontrei pelo caminho. E, se arriscava fazer a pergunta já estereotipada em minha boca naquele dia. Recebia quase sempre a mesma resposta:
            - Não sou daqui, mas, acho que ele pode se encontrar mais à frente.
            Apesar da educação ao agradecer amigavelmente a quem me dera alguns segundos de atenção, eu pensava: “não ser daqui não implica necessariamente em não saber onde se encontra o quartel”. Sabia eu que o “acho” daquelas pessoas demonstrava a mesma certeza que eu tinha: nenhuma.
            Foi assim que “aos trancos e barrancos” cheguei ao Quartel onde um policial me barrou na portaria dizendo:
            - Há um minuto atrás os portões estão fechados para o público externo.
            Lembrei-me, então, do rapaz do celular.