Todos os dias, uma figura misteriosa andava pela cidade a
gritar em alta voz palavras incompreensíveis. O sotaque alemão impunha respeito
e impedia mesmo aos mais corajosos a revolta do despertar do sono no meio da
noite. Talvez aquele homem estaria com sede, já que, das palavras desconexas a
única a ser compreendida era “água”. Naquele bairro de classe média, ninguém
ousava levantar-se e pedir àquele homem que se calasse. Meses se passaram e as
autoridades foram informadas. Viaturas percorriam o local atrás do criminoso a
desacatar a ordem pública. Nunca o apanharam, sempre que estavam em um bairro,
ele estava em outro a gritar. Novos telefonemas eram dados e, com a chegada dos
policiais, aquele homem desaparecia sem deixar rastros (talvez andasse somente
no asfalto) nem pistas. Empresários, cansados pela noite mal dormida,
projetavam em seus funcionários a frustração de seus desejos; mulheres, fuxicando
a vida alheia, tentavam descobrir quem era o misterioso homem a gritar pela
água; policiais, diante dos depoimentos das testemunhas, concluíram que o
insano homem deveria estar repetindo um vocábulo alemão que, mau compreendido,
assemelharia à palavra água no português.
Mais outros meses se passaram, e o homem, louco para
alguns e excêntrico para outros, desapareceu. Faltava um minuto para a chegada
do ano de 2010 e todos, com seus apetrechos supersticiosos, se posicionavam
diante do relógio e do champanhe para a contagem regressiva. Iniciou a contagem
regressiva: “dez” e um pensava na família distante sofrendo com a seca do
nordeste, “nove, oito, sete” e outro pensava nas crianças mortas pela fome e
pela guerra; “seis, cinco, quatro” e outro, com seu egocentrismo exacerbado só
pensava na carreira que seguiria após ter conseguido se livrar de um
concorrente a um emprego”; “três, dois”; Maria tinha ido à cozinha para lavar
os copos e não voltara até então; “um” ...e, em todas as casas do mundo,
naquele mesmo instante, ouviu-se a triste exclamação: “não há mais água”.
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