quarta-feira, 30 de março de 2016

Água mole em pedra dura tanto bate até que... acaba a água


            Todos os dias, uma figura misteriosa andava pela cidade a gritar em alta voz palavras incompreensíveis. O sotaque alemão impunha respeito e impedia mesmo aos mais corajosos a revolta do despertar do sono no meio da noite. Talvez aquele homem estaria com sede, já que, das palavras desconexas a única a ser compreendida era “água”. Naquele bairro de classe média, ninguém ousava levantar-se e pedir àquele homem que se calasse. Meses se passaram e as autoridades foram informadas. Viaturas percorriam o local atrás do criminoso a desacatar a ordem pública. Nunca o apanharam, sempre que estavam em um bairro, ele estava em outro a gritar. Novos telefonemas eram dados e, com a chegada dos policiais, aquele homem desaparecia sem deixar rastros (talvez andasse somente no asfalto) nem pistas. Empresários, cansados pela noite mal dormida, projetavam em seus funcionários a frustração de seus desejos; mulheres, fuxicando a vida alheia, tentavam descobrir quem era o misterioso homem a gritar pela água; policiais, diante dos depoimentos das testemunhas, concluíram que o insano homem deveria estar repetindo um vocábulo alemão que, mau compreendido, assemelharia à palavra água no português.
            Mais outros meses se passaram, e o homem, louco para alguns e excêntrico para outros, desapareceu. Faltava um minuto para a chegada do ano de 2010 e todos, com seus apetrechos supersticiosos, se posicionavam diante do relógio e do champanhe para a contagem regressiva. Iniciou a contagem regressiva: “dez” e um pensava na família distante sofrendo com a seca do nordeste, “nove, oito, sete” e outro pensava nas crianças mortas pela fome e pela guerra; “seis, cinco, quatro” e outro, com seu egocentrismo exacerbado só pensava na carreira que seguiria após ter conseguido se livrar de um concorrente a um emprego”; “três, dois”; Maria tinha ido à cozinha para lavar os copos e não voltara até então; “um” ...e, em todas as casas do mundo, naquele mesmo instante, ouviu-se a triste exclamação: “não há mais água”.

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