Nem sempre fui o que sou
hoje, meu presente comporta um passado não glorioso, mas feliz. Afinal a
existência é nada mais nada menos que a soma dos instantes vividos, mesmo que
mal vividos.
Um dia, quando eu ainda
era parte de minha árvore-mãe, avistei um homem baixo e gordo com uma
moto-serra e gritei desesperada: “Não faça isso, pare, vai doer”. Mas ele
respondeu de forma efusiva: “não, ainda não!”.
Cortando-nos em pedaços,
separou-me completamente de minha árvore-mãe; então, me senti desidratada e
frágil diante da ausência da seiva e disse tristemente: “Já não há mais volta,
eu sei, todavia, deixe-me no chão do qual me tirou para que eu seja adubo a
fecundar a terra de nossos descendentes; mas ele disse com ar de sarcasmo:
“Não, ainda não”.
Tomando o tronco do qual
eu ainda fazia parte, jogou-nos em cima de outros troncos na carroceria de um
caminhão, quando sentimos que estávamos nos movimentando, gritamos todas
juntas: “Pare! Para onde quer nos levar? Deixe-nos, ao menos, nos decompor sob
a ação de nossos irmãos: vento, chuva e sol”. Mas, aquele homem, com um sorriso
no rosto ao receber um pagamento, disse sem se virar: “Não, ainda não”. Nunca
mais vimos aquele estranho homem.
A alguns quilômetros dali
nos levaram até um lugar onde me transformaram no que sou hoje, condenada a
viver só. Fiquei amarela de pavor. O que ainda estaria me esperando? Perdi
traços e ganhei novos traços - como tudo na vida. Mesmo assim, ainda não havia
perdido a esperança, talvez o sofrimento que me fez chegar até aqui seria
compensado.
Diziam que em algum lugar
deste estabelecimento diversas pessoas nos esperavam com ansiedade
recebendo-nos das mais diferentes formas: revoltadas com nossa a demora,
alegres com nossa chegada, surpresas com o que estaria em nós escrito ou
indiferentes. Minha ansiedade era a mesma. Que lugar seria este no qual nossa
existência teria um sentido definido? Seria um mito platônico ou uma esperança
escatológica?
Hoje senti que o dia tão
esperado chegara quando um médico recolheu-me do armário. Todavia, após
escrever algo em mim, escutou a enfermeira dizer: “falta o pedido
antimicrobiano”. Não sei o que ela quis dizer com isso, só sei que, ao ouvir
isso, o médico esmurrou a mesa com violência, mas doeu mais em mim do que nela
aquele soco. Ela (a mesa de origem semelhante à minha), no entanto, continua
ali, servindo de apoio a outras colegas na lida e, eu acabo de me tornar parte
do lixo hospitalar vendo que não servi nem mesmo para aquilo a que fui
destinada ao deixar de ser parte minha árvore-mãe. Pergunto-me se há alguém
para me dizer que sentido teve minha existência e o vazio responde: “não, agora
não”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário