quarta-feira, 16 de março de 2016

Memórias de uma prescrição médica



Nem sempre fui o que sou hoje, meu presente comporta um passado não glorioso, mas feliz. Afinal a existência é nada mais nada menos que a soma dos instantes vividos, mesmo que mal vividos.
Um dia, quando eu ainda era parte de minha árvore-mãe, avistei um homem baixo e gordo com uma moto-serra e gritei desesperada: “Não faça isso, pare, vai doer”. Mas ele respondeu de forma efusiva: “não, ainda não!”.
Cortando-nos em pedaços, separou-me completamente de minha árvore-mãe; então, me senti desidratada e frágil diante da ausência da seiva e disse tristemente: “Já não há mais volta, eu sei, todavia, deixe-me no chão do qual me tirou para que eu seja adubo a fecundar a terra de nossos descendentes; mas ele disse com ar de sarcasmo: “Não, ainda não”.
Tomando o tronco do qual eu ainda fazia parte, jogou-nos em cima de outros troncos na carroceria de um caminhão, quando sentimos que estávamos nos movimentando, gritamos todas juntas: “Pare! Para onde quer nos levar? Deixe-nos, ao menos, nos decompor sob a ação de nossos irmãos: vento, chuva e sol”. Mas, aquele homem, com um sorriso no rosto ao receber um pagamento, disse sem se virar: “Não, ainda não”. Nunca mais vimos aquele estranho homem.
A alguns quilômetros dali nos levaram até um lugar onde me transformaram no que sou hoje, condenada a viver só. Fiquei amarela de pavor. O que ainda estaria me esperando? Perdi traços e ganhei novos traços - como tudo na vida. Mesmo assim, ainda não havia perdido a esperança, talvez o sofrimento que me fez chegar até aqui seria compensado.
Diziam que em algum lugar deste estabelecimento diversas pessoas nos esperavam com ansiedade recebendo-nos das mais diferentes formas: revoltadas com nossa a demora, alegres com nossa chegada, surpresas com o que estaria em nós escrito ou indiferentes. Minha ansiedade era a mesma. Que lugar seria este no qual nossa existência teria um sentido definido? Seria um mito platônico ou uma esperança escatológica?
Hoje senti que o dia tão esperado chegara quando um médico recolheu-me do armário. Todavia, após escrever algo em mim, escutou a enfermeira dizer: “falta o pedido antimicrobiano”. Não sei o que ela quis dizer com isso, só sei que, ao ouvir isso, o médico esmurrou a mesa com violência, mas doeu mais em mim do que nela aquele soco. Ela (a mesa de origem semelhante à minha), no entanto, continua ali, servindo de apoio a outras colegas na lida e, eu acabo de me tornar parte do lixo hospitalar vendo que não servi nem mesmo para aquilo a que fui destinada ao deixar de ser parte minha árvore-mãe. Pergunto-me se há alguém para me dizer que sentido teve minha existência e o vazio responde: “não, agora não”.

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