quarta-feira, 23 de março de 2016

O fim da picada




            Seu nome era Augusto, todavia, em nenhum outro lugar alguém o reconheceria assim. Seu apelido, João Garrafa já havia impregnado à sua existência tanto quanto o álcool ao seu sangue. Dois casamentos foram o suficiente para derrubá-lo e fazê-lo trilhar num caminho quase sem volta. Logo depois de seu casamento, na noite de núpcias, um enfarte em sua esposa levou-a ao fundo da terra e, com ela, enterrou as esperanças de uma vida feliz e tranquila.
            Vários anos se passaram e, vivendo da pensão da segunda esposa dada pelo filho que com ele permaneceu, nunca deixou os bares da cidade. Era o mais solidário amigo dos traídos que, numa mesa de bar, caíam no porre. De vez em quando, juntava-se a algum grupo destinado a levantar um barraco ou a bater uma laje, ansioso, é claro, pela comemoração posterior. Levantava-se às doze horas, engolia qualquer coisa e saía para o bar. Lá chegando, era recebido com ensejo, mas não bebia imediatamente; com voz firme exclamava críticas ao governo, às instituições (dando especial atenção ao casamento) e, ao terminar, era aplaudido como um orador famoso. Somente aos domingos, esta rotina mudava, arrumava garbosamente e seguia para a igreja assistindo fielmente às celebrações.
            Júnior, agora com 26 anos de idade, não dizia nada a respeito do pai. Não demonstrava vergonha, mas não buscava a sua atenção. Abandonado pela mãe que partiu para os EUA com um funcionário da embaixada e vivendo com a sua tia no barracão construído sobre a casa do pai, nunca demonstrou entusiasmo por nada; durante toda a vida, aceitava as sugestões da tia, noviça convertida a Presbiteriana e, assim, formou-se em direito.
            Certa ocasião, Júnior visitou um amigo e, pela primeira vez, em 26 anos, falava sobre o que sentia. Falou de toda a angústia recôndita na ausência do pai nos momentos mais importantes de sua vida, na saudade da mãe que o deixou quando tinha oito anos de idade. Seu amigo José, mergulhado em ceticismo devido a um relacionado mal sucedido, não lhe deu atenção; chamou-o para o bar mais próximo e, lá, Júnior experimentou pela primeira vez em sua vida aquela que substituiu ao pai as duas esposas que perdera. O êxtase tomou conta de ambos, e, assim, José disse com tenacidade:
            - A vida não tem sentido. A morte não é a consumação da vida, é o único sentido para ela. Veja, tudo tende para a morte. Até mesmo os mais nobres homens que deixaram sua memória marcada, nunca poderão se deleitar com a fama posterior...
            Júnior caminhava devagar, o discurso do amigo tocou-lhe profundamente. Cambaleava andando sem rumo, apedrejava as janelas dos prédios públicos, demonstrava a revolta antes oculta. Repentinamente, parou, e seu estômago devolveu todo o rum misturado à cerveja que bebera naquela noite. Minutos depois, sentia-se consciente, mas o discurso de seu amigo ainda surtia o efeito da revolta. Pensou na mãe distante nos EUA, pensou no pai distante na boemia, pensou na tia distante no fanatismo, pensou na vida distante do sentido... Quebrou uma das garrafas...
            No outro dia, o velório de Júnior estava cheio: amigos da faculdade, todos os parentes, a mãe que passava uns tempos no Brasil, o pai vivendo um raro dia de sobriedade. E todos que se aproximavam de seu caixão exclamavam quase sempre o mesmo:
            - Tão jovem, um futuro pela frente! Nunca o vi debandar por nenhum caminho não aprazível à sociedade. O que o destino quis? Tirar da terra a prosperidade de um jovem advogado, com casamento marcado, e com uma família que tanto o amava? Como explicar o aparecimento daquela cascavel em seu quarto?

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