segunda-feira, 16 de setembro de 2019

HENRI BERGSON: INSTINTO, INTELIGÊNCIA E INTUIÇÃO | PROF. CRISTIANO



A idéia de evolução criadora nos permite ir além
das dificuldades e das fal­sidades do mecanicismo e do finalismo, já que a vida
“é realidade que se destaca claramente da matéria bruta”. A vida, em suma, é
evolução criadora, criação livre e imprevisível, é “impulso vital”, que “não
precisa se distender para se estender”. E a matéria nada mais é que o momento
de pa­rada desse impulso vital. A vida é o impulso pelo qual ela tende “a
crescer em número e em riqueza, pela multiplicação no espaço e pela complicação
no tempo”; trata-se de uma contínua criação de formas, onde o que vem depois
não é de modo algum simples recombinação dos elementos que já antes existiam;
ela é “ação que continuamente se cria e se enriquece”, ao passo que a matéria é
“ação que se dissolve e desgasta”, que pro­gressivamente se despotencializa e
degrada, o que é atestado até pelo segundo princípio da termodinâmica.
Para Bergson, “não há coisas, mas apenas ações”. A
matéria é impulso vital degradado, impulso que perdeu em criatividade e que,
desse modo, torna-se obstáculo para o impulso seguinte, como a onda do mar que,
retornando, transforma-se em obs­táculo para a onda que se levanta. A vida, ao
contrário, é “corrente que, atravessando os corpos que ela pouco a pouco
organizou e passando de geração em geração, dividiu- se entre as espécies e se
dispersou entre os indivíduos Para Bergson, a matéria é um refluxo do impulso
vital, que, a partir de unidade originária, se irradia e recai em uma
multiplicidade de elementos cujo impulso e cuja criatividade vão se
extinguindo.
A evolução criadora, portanto, não é um processo uniforme. Ela é
comparável à explosão de uma granada cujos fragmen­tos, por seu turno, também
explodem. Ela também se assemelha a um feixe de colunas, cada uma das quais
representa um caminho diferente da evolução, uma das bifurcações na qual o
impulso vital dispersa sua unidade originária. Em outros termos, a evolução se
abre em leque, em direções divergentes, com os seres vivos se especializando em
funções específicas e precisas. A primeira bifurcação na qual o impulso vital
dispersa sua unidade originária. Em outros termos, a evolução se abre em leque,
em direções divergentes, com os seres vivos se especializando em funções
específicas e precisas. A primeira bifurcação fundamental é a que se tem entre
as plantas e os animais. Enjauladas na noite da incons­ciência e da
imobilidade, as plantas armaze­nam energia potencial; os animais, móveis, vão à
procura do alimento. E a consciência nasce precisamente dessa busca. Os
animais, por seu turno, se bifurcam ou “explodem” em outras direções, uma das
quais leva às formas mais perfeitas de instinto, como nos himenópteros, ao
passo que outra, a dos ver­tebrados, leva, com a inteligência humana, para além
do instinto. A realidade é que “em todos os outros pontos a consciência acabou
em um beco sem saída; apenas com o homem ela prosseguiu seu caminho”.

A vida animal não se desenvolveu em uma direção única. E em algumas
dessas direções, como aquela em que acabaram os moluscos, ela encontrou becos
sem saída. Entretanto, no que se refere à mobilidade e à consciência, encontrou
seu maior sucesso nos artrópodes e nos vertebrados. A evolu­ção dos artrópodes
manifesta sua melhor expressão nos insetos, especialmente nos himenópteros, ao
passo que a dos verte­brados se manifesta no homem. Enquanto, na linha dos
artrópodes, a evolução leva a formas sempre mais perfeitas de instintos,
na segunda ela leva à inteligência, embora certa “franja de
inteligência” acompanhe o instinto e um “halo de instinto” permanece em torno
da inteligência.
Mais precisamente, porém, o que é o instinto, e em que consiste a
inteligência? Como escreve Bergson, “o instinto é a fa­culdade de utilizar e
também de construir instrumentos orgânicos, a inteligência é a faculdade de
fabricar e empregar instrumen­tos inorgânicos [...]. Instinto e inteligência
representam, portanto, duas soluções diver­gentes, mas igualmente elegantes, do
mesmo problema”.
E esse é o problema da vida (de modo que se compreende que,
originariamente, o homem é bomo faber e não bomo sapiens). O instinto funciona
por meio de órgãos na­turais, a inteligência cria instrumentos artifi­ciais. O
instinto é hereditário e a inteligência não; o instinto volta-se para uma
coisa, já a inteligência é conhecimento das relações entre coisas; o instinto é
inconsciente, a inteligência consciente; o instinto é repeti­tivo, ao passo que
a inteligência é criativa. O instinto, justamente, é repetitivo e rígido, é
hábito; ele apresenta soluções adequadas, mas para um só problema, incapaz de
variar.
Por seu turno, a inteligência não conhece as próprias coisas, mas as
relações entre coisas. Por isso, mediante os conceitos, ela conhece as “formas”
e, afastando-se da realidade imediata, pode prever a realidade futura. Por
razões práticas, pois, a inteligência analisa e abstrai, classifica e
distingue, subdividindo a duração real — como em uma película ci­nematográfica
— em uma série de diferentes estados. Mas “mil fotografias de Paris não são
Paris”.
Assim, nem o instinto nem a inteli­gência (e a ciência que esta produz)
nos dão a realidade: “Há coisas que somente a inteligência é capaz de procurar,
mas que nunca encontrará por si só; somente o ins­tinto poderia descobri-las,
mas este não as procurará jamais”.
Entretanto, a situação não é desesperadora. E não o
é porque a inteligência, que nunca está completamente separada do instinto,
pode voltar conscientemente para o instinto. E, quando isso acontece, temos a
intuiçãos que é “instinto que se tornou desinteressado, consciente
de si, capaz de refletir sobre seu próprio objeto e de ampliá- lo
indefinidamente”.
A inteligência gira em torno do ob­jeto e toma o maior número possível
de visões dele a partir do exterior, mas não entra nele; mas, “ao contrário, a
intuição é que nos conduzirá ao interior da vida”. A inteligência produz
análise e despedaça o devir. Mas a intuição atua através da simpatia; e, com
ela, “nos transporta para o interior de um objeto para coincidir com o que tal
objeto tem de único e, portanto, de inexprimível” (inexprimível através dos
símbolos e conceitos da inteligência). A in­tuição “é a visão do espírito pelo
espírito”: ela é imediata como o instinto e consciente como a inteligência.

Que a intuição seja um processo real é demonstrado pela intuição
estética, onde as coisas aparecem privadas de todos os laços com as
necessidades cotidianas e com as premências da ação. E é também a intuição que
nos revela a duração da consciência e o tempo real, e que nos torna conscientes
da liberdade que somos nós mesmos. A intuição é o órgão da metafísica: a
ciência analisa, mas a metafísica intui, fazendo-nos assim entrar em contato
direto com as coisas e com aquela essência da vida que é a duração.
A intuição é sondagem da essência do real e a metafísica é “a ciência
que se propõe superar a barreira dos símbolos construídos pelo intelecto”. A
intuição, como escreve Bergson, “alcança a posse de um fio: e ela própria deverá
ver se esse fio sobe até o céu ou se se detém a alguma distância da terra. No
primeiro caso, a experiência metafísica se vinculará à dos grandes místicos — e
eu posso constatar, por minha conta, que essa é a verdade. No segundo caso, as
experiências metafísicas permanecerão isoladas umas das outras, sem, no
entanto, contrastar entre si. Em todo caso, a filosofia nos terá erguido acima
da condição humana”.
O impulso vital, que se detém nas outras espécies
vivas, enrijecendo-se na repetição fixa de comportamentos sempre idênticos, no
homem supera os obstáculos, expressando-se na atividade criadora hu­mana, cujas
principais formas são a arte, a filosofia, a moral e a religião. Em sua última
obra, As duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson dirigiu sua atenção
preci­samente para o tema da criatividade moral e religiosa do homem. Assim,
partindo do estudo da consciência, ele, com A evolução criadora, passa para uma
teoria do universo e conclui com uma teoria dos valores (mo­rais e religiosos).
Em sua opinião, as normas morais têm duas fontes: a) a pressão social e
b) o impulso de amor.
a) No primeiro caso, as normas são precisamente o fruto da pressão
social e ex­pressam as exigências da vida associada dos diversos grupos
humanos, assim como eles se deram e se dão na história. E é a história que nos
ensina que o indivíduo se encontra em sua sociedade de modo análogo ao modo em
que uma célula está no organismo ou uma formiga no formigueiro. Geralmente,
o indivíduo segue o caminho que encontra já trilhado pelos outros e
codificado pelas normas de sua sociedade, conforma-se às regras dessa
sociedade, exalta seus ideais e procura se adequar a eles. O que está na base
da sociedade é apenas o hábito de con­trair hábitos. E, em análise profunda,
isso é o único fundamento da obrigação moral. Mas essa moral da obrigação e do
hábito é a moral da sociedade fechada, onde o indi­víduo age como parte do todo
e esse todo é um grupo determinado, como a nação, a família ou o clube.
b) Entretanto, segundo Bergson, a pressão social
não é a única fonte da mora­lidade e não consegue, como pretenderam os
positivistas, explicar a vida moral do homem em sua totalidade e em suas
características mais típicas. Na realidade, não existe so-mente a moral da
obrigação e do hábito, isto é, a moral relativa às várias sociedades fechadas
da história, mas também existe a moral absoluta, que é a moral da sociedade
aberta. Essa é a moral do cristianismo, dos sábios da Grécia e dos profetas de
Israel. Essa moral é obra criadora — criadora de valores universais — de heróis
morais como Sócrates ou Jesus, que vão além dos valores do grupo ou da
sociedade a que pertencem para ver o homem enquanto homem, a hu­manidade
inteira — e a humanidade inteira é a sociedade aberta. O fundamento da moral aberta
é a pessoa criadora; seu fim é a humanidade; seu conteúdo é o amor para com
todos os homens; sua característica é a inovação moral, capaz de romper com os
esquemas fixos das sociedades fechadas. A moralidade aberta é algo que não se
ensina: é a moral dos grandes místicos e reveladores, e de todos os que seguem
a inspiração que os induz a segui-los.








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