quinta-feira, 12 de setembro de 2019

RELAÇÃO ENTRE MATÉRIA E MEMÓRIA EM HENRI BERGSON | PROF CRISTIANO

No Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, o tempo espacializado da ciência se opõe à duração da consciência ou tempo da experiência concreta. Essa oposição repercute na outra contraposição entre uma realidade externa, mecânica, nunca nova por ser sempre repetitiva, e uma realidade interna, fundida na unidade do eu, sempre criativamente nova. Chegando a esse ponto, Bergson não podia evitar o problema da relação, ou melhor, da passagem entre as duas realidades. O problema se impunha também pela razão de que, na consciência, ele vira sua possibilidade de solidificar-se equase se petrificar em situações de repetitividade mecânica.

A questão da passagem entre a realidade externa (a matéria) e a interna (o espírito) é enfrentada por Bergson no livro Matéria e memória, onde procura “captar mais claramente a distinção do corpo e do espírito e penetrar mais intimamente no mecanismo de sua união”. Diz Bergson que, no que se refere ao problema da relação entre a matéria ou o corpo e o espírito, alguns pensadores sustentam a teoria do paralelismo psicofísi- co, segundo a qual os estados mentais e os estados cerebrais são dois modos diversos de falar da mesma coisa ou processo. Contra a redução do espírito à matéria, Bergson propõe e reafirma a idéia de que o cérebronão explica o espírito e que “na consciência humana há infinitamente mais do que no cérebro correspondente”.
Para iluminar essa tese, Bergson assume os dados das descobertas de psicofisiologia efetuadas na época, e realiza uma análise aprofundada da atividade da consciência, distinguindo três momentos distintos dela, ou seja, a memória, a recordação e a percepção. A memória coincide e se identifica com a própria consciência. E é precisamente pela e na memória que “nosso passado inteiro nos segue a cada momento”, e o que “ouvimos, pensamos e quisemos desde a primeira infância está lá, inclinado sobre o presente, que está por absorver em si, premente à porta da consciência”.

Dessa memória espiritual — que é a “duração” da consciência — podemos distinguir a recordação. Nosso ser mais verdadeiro e mais profundo está na memória espiritual, mas a vida nos impõe prestar atenção ao presente e toma do passado unicamente o que é necessário para que possamos nos orientar no presente. E essa obra de seleção da recordação útil e do esquecimento do que não serve ao presente é realizada pelo corpo e pelo cérebro: eles tiram do fluxo até abissal da consciência aquelas recordações funcionais para a inserção de nosso organismo na situação do presente, através das percepções. Em suma, pelo cérebro passa apenas uma parte, parte muito pequena, daquilo que é o processo da consciência, ou seja, passa unicamente o que pode se traduzir em movimento. Assim, podemos compreender melhor Bergson quando diz que na consciência há infinitamente mais do que no cérebro correspondente.
Para se realizar, a memória espiritual necessita dos mecanismos ligados ao corpo — já que é através do corpo que agimos sobre os objetos do mundo —, mas é independente do corpo, de modo que uma lesão do cérebro não atinge a consciência, e sim muito mais a vinculação entre a consciência e a realidade: a consciência permanece intacta, ainda que perdendo o contato com as coisas. Para Bergson, a realidade é que, “sempre orientado para a ação, o corpo tem como função essencial a de limitar a vida do espírito, tendo em vista a ação”. E faz isso através da percepção, que é “a ação possível de nosso corpo sobre os outros corpos”. A percepção é o poder de ação de nosso corpo, que se move com destreza entre as “imagens” dos objetos. Como imagem do passado, a recordação orienta a percepção
presente, pelo fato de agirmos sempre com base nas experiências passadas.
Assim, “todo o passado da pessoa encontra-se aberto” até o extremo, que é a ação no presente. Em cada instante de nossa vida temos, pois, uma ligação entre memória e percepção, em vista da ação.
Desse modo, a memória e a percepção se identificam respectivamente com o espírito e o corpo.
A memória funde em uma totalidade a vida vivida; a percepção consiste “em destacar, no conjunto dos objetos, a ação possível de meu corpo sobre eles. A percepção, por conseguinte, nada mais é do que uma seleção”. Conseqüentemente, a liberdade da consciência encontra suas limitações na percepção. E a percepção, por seu turno, entra no fluxo da vida do eu, fundindo-se na memória ou consciência. Eis, portanto, segundo Bergson, em que consiste a verdadeira relação entre espírito e matéria e entre alma e corpo: por um lado, a memória “assume o corpo de uma percepção qualquer em que ele se insere” e, por outro lado, a percepção é reabsorvida pela memória e se torna pensamento. 
Bergson não vê o universo conforme Descartes, como dividido entre a res cogitans e a res extensa. No fundo, para Bergson, o espírito e a matéria, assim como a alma e o corpo, são dois pólos da mesma realidade e não duas realidades diferentes. E precisamente em A evolução criadora (de 1907) — obra que James definiu como “uma aparição divina” — Bergson passa da análise dos dados imediatos da consciência para a elaboração de uma visão global da vida e da realidade, propondo a idéia de um evolucionismo cosmológico.
As teorias da evolução se distinguem em duas grandes classes: as mecanicistas e as finalistas.
O evolucionismo mecanicista explica a evolução em termos da causa eficiente, o evolucionismo finalista com base na causa final; um com base em razões que determinam a evolução por meio do passado, o outro com base em razões que determinam a evolução por meio do futuro. Por conseguinte, tanto o evolucionismo mecanicista como o finalista
são deterministas - e justamente por isso deixam escapar a realidade da evolução. Com efeito, diz Bergson, a exemplo da vida da consciência, a vida biológica não é máquina que se repete, sempre idêntica a si mesma, mas é uma constante e incessante novidade, é criação e imprevisibilidade, é vida sempre nova que, englobando e conservando todo o passado, cresce sobre si mesma.
A idéia de evolução criadora nos permite ir além das dificuldades e das falsidades do mecanicismo e do finalismo, já que a vida “é realidade que se destaca claramente da matéria bruta”. A vida, em suma, é evolução criadora, criação livre e imprevisível, é “impulso vital”, que “não precisa se distender para se estender”. E a matéria nada mais é que o momento de parada desse impulso vital. A vida é o impulso pelo qual ela tende “a crescer em número e em riqueza, pela multiplicação no espaço e pela complicação no tempo”; trata-se de uma contínua criação de formas, onde o que vem depois não é de modo algum simples recombinação dos elementos que já antes existiam; ela é “ação que continuamente se cria e se enriquece”, ao passo que a matéria é “ação que se dissolve e desgasta”, que progressivamente se despotencializa e degrada, o que é atestado até pelo segundo princípio da termodinâmica.
Para Bergson, “não há coisas, mas apenas ações”. A matéria é impulso vital degradado, impulso que perdeu em criatividade e que, desse modo, torna-se obstáculo para o impulso seguinte, como a onda do mar que, retornando, transforma-se em obstáculo para a onda que se levanta. A vida, ao contrário, é “corrente que, atravessando os corpos que ela pouco a pouco organizou e passando de geração em geração, dividiu- se entre as espécies e se dispersou entre os indivíduos Para Bergson, a matéria é um refluxo do impulso vital, que, a partir de unidade originária, se irradia e recai em uma multiplicidade de elementos cujo impulso e cuja criatividade vão se extinguindo.

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